Felix Valente está com Dora Santa Cruz.
Aviso de textão. Textão imprescindível da companheira Dora Santa Cruz.
Camarada Fernando Santa Cruz
Presente. Agora e sempre.
"Falo em uma dor que não cessa e em uma ferida que não cicatriza. Hannah Arendt fala que "toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história". Falo do Desaparecimento Político de meu irmão, Fernando Santa Cruz, em fevereiro de 1974, ocorrido no Rio de Janeiro, no momento em que ele foi se encontrar com um companheiro de militância política, Eduardo Collier Filho. A dor de um familiar de desaparecido político, a dor que sinto ao contar uma história que ocorreu em 1974, é até hoje um sofrimento, pois parece que estamos vivendo os piores dias de nossas vidas. Meu irmão Fernando era estudante de Direito, da UFF , era casado com Ana Lúcia Valença de Santa Cruz, tinha um filho Felipe Santa Cruz, que na época tinha quase 2 anos de idade. Era servidor público, concursado, do Departamento de Águas e Energia de São Paulo, e para trabalhar, trancou sua matrícula no curso de Direito da UFF.
Também militei junto com meu marido, José Mário Coelho, na Ação Popular Marxista Leninista, APML, a mesma organização em que Fernando militava, mas éramos considerados simpatizantes porque tínhamos emprego fixo e três filhos pequenos, e sobrava pouco tempo para contribuirmos para a organização. Sempre cedíamos nossa casa para os dirigentes estudarem e escreverem suas teses sobre o movimento político e a posição da APML. É verdade que também corríamos riscos de sermos pegos como tantos de nossos companheiros. A nossa família foi barbaramente atingida e perseguida durante a Ditadura Civil Militar, minha irmã Rosalina Santa Cruz e meu cunhado Geraldo Leite foram presos no Rio de Janeiro por mais de 1 ano e bastante torturados. Meu irmão Marcelo Santa Cruz foi cassado da Faculdade de Direito da UFPE, pelo artigo 477, decretado pelo AI 5, para perseguir os estudantes e militantes e, por fim, veio a pior dor que minha família sofreu até hoje, o desaparecimento forçado de Fernando, em 1974.
Logo depois do desaparecimento de Fernando, viajei de Recife, cidade em que morava, para o Rio de Janeiro, fiquei hospedada na casa de minha irmã, Marcia Santa Cruz Freitas, no bairro de Santa Tereza. Durante uma semana, eu e Márcia percorremos todos os locais possíveis, inclusive o I Exército onde falamos com o comandante. Confesso que nunca tremi tanto, minhas pernas pareciam uns mulambos balançando, meu coração disparando, nunca senti tanto medo e angústia. Fomos também na Cruz Vermelha, falamos com o Professor Gastão várias vezes, e ele nos informou que Fernando e Eduardo estavam presos. No mês de abril, passados dois meses do desaparecimento de Fernando, cessaram as informações e ele falou para meus irmãos que não tinha mais o que informar. Fomos também na ABI, na OAB e no Instituto Médico Legal. Depois minha irmã Márcia continuou uma minuciosa pesquisa no IML.
Na época morava em Recife, tinha três filhos e era Professora Universitária da UFPE, e em 1975, estava terminando minha Dissertação de Mestrado em Nutrição em Saúde Publica, quando resolvi fazer uma homenagem a Fernando. Fui censurada por homenagear meu irmão desaparecido, e tive que retirar o oferecimento da minha dissertação, sob pena de não defendê-la e até sofrer uma demissão branca como era chamada na época, foi muito difícil para mim suportar este tipo de opressão. Tinha dedicado todo meu tempo disponível para escrever este trabalho, e procurar Fernando através de denúncias e cartas que minha mãe redigia e levávamos para serem divulgadas, através de Dom Hélder Câmara, e da irmã de Ariano Suassuna que trabalhava na Embaixada dos Estados Unidos e entregou a Rosalin Cárter uma carta que denunciava vinte e cinco desaparecidos políticos, a advogada Mercia de Albuquerque que nos informou que Fernando estava no DOI CODI em São Paulo. Todos esses contatos eram comunicados para os nossos irmãos, Marcelo, Rosalina e Marcia, que moravam no Rio de Janeiro e em São Paulo. Não posso esquecer os gemidos de meu pai durante as madrugadas: ele gritava "Ai Meu Deus! Aí Meu Deus!". Uma vez meu marido perguntou ao meu pai: "Dr Santa Cruz por que o senhor geme tanto de madrugada? E meu pai respondeu: "Zé, faço isso para não gritar o nome de Fernando".
Também me recordo de minha mãe me telefonando todos os dias, falando de sua angústias, que estava sentindo uma sensação ruim, apertando o coração dela.
Em 1978, me mudei de Recife para o Rio de Janeiro, já com quatro filhos e fui ensinar na UFF, local em que Fernando tinha estudado. Em 1979, o DCE da UFF recebeu o nome de "DCE Fernando Santa Cruz", em uma homenagem inesquecível. Todos os estudantes e militantes queriam conhecer a irmã de Fernando, e assim eu era sempre convidada para proferir palestras e entregar os prêmios dos festivais de música e poesia que eles faziam.
Continuei na minha militância política, em defesa da Universidade Pública, Gratuita e de Qualidade, e também na luta pela Anistia, pelas Diretas- Já.
Fui professora da Universidade particular
Santa Ursula, e no dia em que jogaram uma bomba na OAB, através de uma correspondência, e explodiu nas mãos de Dona Lida, secretária do Presidente da OAB. Fui para o enterro de Dona Lida, no cemitério São João Batista, levando um cartaz com a foto de Fernando, e a pergunta: "Onde está Fernando Santa Cruz?" Quando passava próximo à Santa Ursula, vi que estavam lá os dirigentes, Decano, Chefe do Departamento e Coordenador do curso, os quais me perguntaram quem era aquele jovem do cartaz, e respondi que era meu irmão desaparecido político. No dia seguinte, fui chamada pelos três dirigentes que me indagaram o motivo de eu não ter dito quando fui entrevistada para o emprego sobre o meu parentesco com um desaparecido político. Respondi que eles não haviam me perguntado. Então me avisaram que estava na mira para ser demitida. Voltei a dar minhas aulas; mas não consegui ser conivente com aquilo, então denunciei o constrangimento que sofri em reunião do Departamento, e fui demitida pelos meus colegas na Congregação, por nove votos a sete.
Foi desesperador, sofri muito, pois era Professora Titular, reconhecida pelo MEC para validação do Curso de Nutrição.
Talvez essa raiva e minha impotência perante os algozes tenha se agravado porque eu já havia sido afastada da Sociedade Brasileira de Nutrição, local em que o Presidente e o Vice eram militares e eu tinha vindo para assessorar o Congresso Internacional de Nutrição, que seria realizado no Rio de Janeiro, em 1978.
Todos sofrem e de uma forma ou de outra são também atingidos para nos fazer calar. O desaparecimento de Fernando deixou uma cicratriz muito forte em mim e em todos os meus irmãos, pois não tivemos o momento de chorarmos juntos, de enterrar o corpo de nosso irmão e até mesmo de nos despedir. Não vivenciamos o processo de luto pela perda de um ente querido.
Não só perdemos Fernando, mas também muitos amigos e companheiros como Rui Frazão, Rubens Paiva e Ramires Maranhão do Vale. Cada um reage de uma maneira diferente, nós somos dez irmãos muito unidos e politizados. Meu pai respondeu com muita tristeza e impotência diante do fato, diferente de minha mãe que não chorava como meu pai e estava sempre denunciando. Muito corajosa, foi à Brasília várias vezes, e até mesmo à Argentina, e lá se encontrou com as Mães da Praça de Maio, com um lencinho branco na cabeça e o livro "Onde está meu filho?", em suas mãos, e teve a oportunidade e a coragem de denunciar o desaparecimento do filho na Argentina. Em um ato realizado em São Paulo, em que as mães dos Desaparecidos Politicos recebiam um tecido, agulha e linha para expressarem o seu sentimento, minha mãe, Elzita Santa Cruz, bordou um jovem sendo torturado em um Pau de Arara e uma pomba branca simbolizando a paz e a esperança. Ela era considerada a representante das mães dos Desaparecidos Politicos, pois sempre quando tinha oportunidade de falar, mencionava a luta para esclarecimento de todos os Desaparecidos. Minha mãe, Elzita Santa Cruz, foi uma das candidatas ao Prêmio Nobel da Paz, uma candidatura de 1000 Mulheres do Mundo e 56 do Brasil. Recebeu várias homenagens e medalhas, uma delas a medalha Chico Mendes. Esteve com o presidente Lula no lançamento do livro-documento, Marcas da Memória, da Comissão de Anistia, e durante a sua fala se emocionou e foi abraçada pelo presidente Lula que quebrou o protocolo da solenidade. A então ministra Dilma Rousseff; que também sofreu muito durante a ditadura militar, estava sentada junto com os demais ministros e não conteve suas lágrimas.
Minha mãe faleceu em junho deste ano, com 105 anos, sem perdoar o que fizeram com seu filho e lutando até o fim de sua vida pela punição dos responsáveis pela tortura, morte e desaparecidos forçados.
Sinto muita raiva deste Presidente, Jair Bolsonaro, que homenageou o torturador sanguinário, Brilhante Ustra, falou mal de Fernando, tentando destruir a imagem e os familiares de Fernando. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada por Lei em 1995 foi dissolvida, e a Comissão de Anistia, criada por Lei em 2002, está sendo destruída.
São muitos retrocessos ocorridos em 2019, mas ao tentar destruir a imagem de Fernando, a Memória de nossa família, o atual presidente da República não imaginou que o tiro poderia sair pela culatra. Fernando até hoje é homenageado em todo o Brasil, simbolizando todos os desaparecidos políticos.
Nós, familiares, não perdoamos e lutamos pelo direito à Memória, Verdade e Justiça; para que nunca mais aconteça. Pela Paz e pela Vida! Tortura Nunca Mais!
Ass: Maria Auxiliadora Santa Cruz Coelho."+-
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