sábado, 25 de junho de 2022

Anos de Chumbo

 

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Setenta e cinco noites frias: João Carlos Haas Sobrinho.
Rio Grande do Sul, São Leopoldo, 1941. Noite fria de São João. Nossa mãe, ansiosa, enfrentava a madrugada à espera da chegada do segundo filho.
Na rua Primeiro de março, número 514, a janela se entreabria e os raios da lua banhavam a sala pequena do sobrado dos Haas. Nosso pai, Ildefonso, católico que sempre foi, rezava para que a esposa Ilma Linck tivesse uma boa hora do parto. Contou-me ele, nos idos de 1980, quando conseguiu expor seus sentimentos em relação à história do filho desaparecido na ditadura, que nos primeiros momentos do ecoar do choro de João Carlos, uma luz forte entrou pela vidraça embaçada do quarto alertando: “Cuida bem deste teu filho, pois ele é especial.”
João Carlos foi um menino alegre, tinha no olhar o brilho da liderança. Jogava futebol, organizava festas, brincava com os animais, ajudava a mãe a cozinhar, escrevia poemas e artigos no jornal da escola - um aluno nota dez, cheio de medalhas no peito. Fez-se homem e seguiu firme em busca de seus ideais, atitude difícil para a família entender. João Carlos escolheu a Medicina e ao longo do curso percebeu que esta escolha poderia conduzi-lo a algo maior: dedicar sua vida ao próximo. E assim seguiu, se afastando das ruas de nossa cidade. Ficamos nós, familiares e amigos, navegando em um vazio de obscuridade.
Em 1966 ele deixou o nosso convívio, rompeu os limites de seu horizonte e pisou firme nos trilhos de um novo mundo, onde o homem estaria no centro, como majestade, livre e forte. Assim ele quis, assim sonhou e lutou, até tombar em 1972, na região do Araguaia.
As noites de 24 de junho sempre foram frias, porém, para nossa família, após 1966, foram ficando gélidas, carregadas de saudade e tristeza.
Na infância da rua Primeiro de março, havia bandeirinhas e fogos na noite de São João: era a comemoração da vida. Recordo o profundo silêncio que ficou após termos ciência de seu desaparecimento, em 1979, 7 anos após a sua morte. Em cada canto da casa parecia haver uma oração a acalentar a esperança de que era tudo um sonho, não era verdade. Mas a realidade veio batendo à nossa porta aos poucos, a cada notícia: o reencontro não aconteceria. Nossa mãe silenciava sua dor na tristeza do olhar, em todos estes aniversários passados. Até 2001, quando nos deixou, sempre fazia uma encomenda: “Já mandei rezar a missa para o João, vamos?”, com voz embargada me ligava sempre, a cada ano, numa nostalgia ritmada pelo vazio sem respostas.
24 de junho de 2016: 75 anos de nascimento de um amigo do povo que não mediu esforços para cumprir sua missão. Seu Ildefonso e Dona Ilma partiram sem poder sepultar o filho que tanto amaram. Talvez porque, na verdade, ele esteja mais vivo do que nunca, entre nós. Não só na memória dos que com ele conviveram, como também em tantas homenagens que vieram depois. João Carlos Haas Sobrinho: Presente!
Por Sônia Maria Haas

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