Na segunda-feira passada, publicamos – em parceria com o ótimo portal Catarinas – uma reportagem sobre os inacreditáveis procedimentos de um hospital público, uma juíza e uma promotora que negaram a uma criança de 10 anos o direito a um aborto legal para interromper uma gravidez que é fruto de um estupro.
Como você deve ter visto, a reportagem teve uma imensa repercussão – o fato chegou a ser mencionado em jornais dos EUA e da Inglaterra – e, felizmente, fez com que a lei fosse cumprida e a criança tivesse finalmente garantido o seu direito.
Dois dias após a publicação da reportagem, o país amanheceu com a notícia de que o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, havia sido preso preventivamente pela Polícia Federal. Tratava-se de um desdobramento da investigação sobre o caso que ficou conhecido como o "gabinete paralelo do MEC": a suspeita de que dois pastores evangélicos, Arilton Moura e Gilmar Santos, atuavam como intermediadores na liberação de dinheiro público para prefeituras. Os dois também foram presos pela PF.
O caso é gravíssimo e foi revelado por uma série de reportagens do Estadão em março. Sem terem qualquer cargo público, os pastores recebiam prefeitos ligados ao Centrão no MEC, e em seguida o governo fazia pagamentos ou empenhos (reserva de recursos públicos no orçamento) de quase R$ 10 milhões para obras de creches, escolas, quadras ou compra de equipamentos nas cidades deles. Em troca, havia pedidos de propina – inclusive em barras de ouro.
Em um áudio publicado pela Folha, Milton Ribeiro diz o seguinte: "A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar. Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar". A crise causada pelas reportagens levou no fim de março ao pedido de demissão do ministro, por quem Bolsonaro disse que colocaria "a cara no fogo".
A investigação que culminou na prisão do ex-ministro e dos pastores amigos de Bolsonaro fragiliza o discurso mentiroso do presidente de extrema direita de que não há corrupção em seu governo. Além disso, o Ministério Público Federal suspeita que Bolsonaro tenha interferido nas investigações da Polícia Federal. Segundo reportagem do UOL, a suspeita consta na manifestação em que o procurador Anselmo Henrique Cordeiro Lopes pede que parte das investigações fique subordinada ao Supremo Tribunal Federal.
É uma suspeita corroborada pelo próprio delegado da Polícia Federal responsável pela prisão preventiva de Milton Ribeiro. Segundo a Folha, Bruno Calandrini disse em mensagem enviada a colegas da PF que o ex-ministro não foi transferido para Brasília após ser preso em Santos, onde mora, por "decisão superior". Afirmou, ainda, não ter autonomia para conduzir o inquérito como deveria. Para coroar o cenário, o ex-ministro da Educação disse, em conversa telefônica gravada, que Bolsonaro o avisou de que iria ser alvo de operação policial.
Ou seja – as suspeitas de corrupção no MEC são graves, e as de que Bolsonaro interferiu para abafar as investigações, ainda mais.
É por isso que, desde que a prisão do homem por quem poria a cara no fogo, Bolsonaro e seu exército decidiram falar do caso da menina estuprada e impedida de fazer um aborto. A tática é manjada, mas segue eficiente, a tal ponto que foi amplificada pela principal coluna de política de um dos jornalões brasileiros, que no final da tarde da quarta-feira, dia em que Milton Ribeiro foi em cana, manchetou o seguinte: "Eduardo Bolsonaro elogia juíza que quis manter gravidez de garota estuprada".
Era a senha para que a máquina de fake news do bolsonarismo entrasse em ação para tentar desviar a atenção do país do escândalo do MEC. Nas horas seguintes, influenciadores da esgotosfera bolsonarista passaram a atacar o Intercept, o portal Catarinas, a advogada da menina e até mesmo a negar o fato de que uma relação sexual com uma criança de dez anos seja um estupro.
Na quinta, horas após uma nova pesquisa do Datafolha* indicar a possibilidade de que Luiz Inácio Lula da Silva seja eleito presidente em primeiro turno, o próprio Jair Bolsonaro resolveu entrar em campo: "Solicitei ao MJ e ao MMFDH que apurem os abusos cometidos pelos envolvidos nesse processo que causou a morte de um bebê saudável com 7 meses de gestação, da violação do sigilo de justiça e do total desprezo pelas leis e princípios éticos, à exposição de uma menina de 11 anos", tuitou, às 23h13.
Após o tuíte de Bolsonaro, o Palácio do Planalto orientou ministros e assessores mais alinhados ideologicamente ao presidente a partirem para o confronto ideológico. A determinação é para que se diga, inclusive, que o aborto deve ser chamado de assassinato – o que simplesmente não é verdade, pelo Código Penal.
Enquanto eu escrevo este texto, os ataques seguem a todo vapor nas redes sociais, amplificados por uma infeliz coincidência – a revisão, pela suprema corte dos Estados Unidos, da decisão que garantia às mulheres do país o direito de decidir realizarem abortos com segurança.
O moralismo rasteiro (e hipócrita) é uma arma usada com maestria pela extrema direita contemporânea. Bolsonaro, vamos lembrar, disse, em uma entrevista em 2000, o seguinte, sobre o aborto: "Tem que ser uma decisão do casal", e admitiu ter pensado em fazer um quando a então esposa Ana Cristina Valle esperava o quarto filho dele, Jair Renan – a decisão de manter a gravidez, segundo o capitão reformado, foi dela. Mas, em 2018, a campanha dele usou fartamente mentiras sobre aborto, o inventado kit gay do Ministério da Educação de Fernando Haddad, a mamadeira de piroca, para atrair eleitores conservadores.
Ao lado do liberalismo de segunda divisão de Paulo Guedes e do combate à corrupção corrompido de Sergio Moro e da Lava Jato, a agenda moralista foi um dos pilares da eleição de Bolsonaro em 2018. Guedes se foi sem nunca ter sido: hoje, ecoa José Sarney ao pedir o congelamento de preços em supermercados. Moro desmoronou com as revelações da Vaza Jato, e sufocar o Ministério Público e a Polícia Federal que apoiaram majoritariamente sua eleição foi a saída que Bolsonaro encontrou para tentar vender a lorota de que seu governo é livre de corrupção. Restou o moralismo.
Nossa tarefa, como jornalistas, é ignorar as tentativas de desviar o foco e insistir nas perguntas que cabe ao presidente responder neste momento. Aliás, falando nisso: Jair Bolsonaro, por que você mandou o ministro Milton Ribeiro atender aos pleitos do pastor Gilmar Santos no MEC? Como você ficou sabendo que o ex-ministro seria alvo da PF? E por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?
*O Datafolha ouviu 2.556 eleitores em 181 cidades nos dias 22 e 23 de junho. A margem de erro da pesquisa, contratada pela Folha e registrada no Tribunal Superior Eleitoral sob o número 09088/2022, é de dois pontos percentuais para mais ou menos. |
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