Guerra de quadrilhas por trás da Copa no Qatar
Ataques hackers. Vigilância por espiões privados. Tentativa de destruição de reputações. Investigação mostra que emirado contratou empresa ligada à CIA para obter controle total dos bastidores da FIFA e espionar até os opositores do mundial
Por Leo Eiholzer e Andreas Schmid, na SRF Investigativ | Tradução: Maurício Ayer
Uma rede de espionagem trabalha em segredo. Agentes de inteligência planejam influenciar eventos mundiais agindo secretamente. Hackers roubam informações controversas. E um cliente obscuro financia todo o projeto com centenas de milhões de dólares.
Esta é a história de uma operação secreta global.
A investigação realizada pela equipe investigativa do canal suíço SRF, a “SRF Investigativ”, mostra os detalhes de como o Estado do Catar espionou autoridades do futebol mundial. E como os críticos da próxima Copa do Mundo, de fora da FIFA, também foram visados.
O objetivo final desses esforços: evitar que o Catar perdesse a candidatura à Copa do Mundo depois que muitas críticas foram levantadas, quando a FIFA concedeu o torneio ao país autoritário em 2010.
A dimensão das atividades de espionagem é considerável. Uma única sub-operação envolveu a mobilização planejada de pelo menos 66 agentes ao longo de nove anos. O orçamento totalizou US$ 387 milhões. E as atividades abrangeram cinco continentes.
Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de espionagem, incluindo o atual chefe de Estado, o Emir do Catar.
Os documentos mostram que o país desértico queria garantir que nenhuma mudança de posição dentro da FIFA, nenhuma nova amizade, nenhuma aliança potencialmente perigosa, nada que pudesse comprometer a realização da Copa do Mundo de 2022 no Catar escapasse de sua atenção. O objetivo era obter o controle absoluto. Ou “penetração mundial”, como está escrito em um documento da operação de espionagem.
Para isso, o Catar contratou a empresa privada estadunidense Global Risk Advisors (GRA). A equipe da empresa é formada por ex-membros das agências de inteligência dos Estados Unidos. Seu fundador é o ex-agente da CIA, Kevin Chalker.
A Suíça foi um local chave na operação. O espião-chefe e seus clientes do Catar se encontraram em Zurique. E foi na Suíça que eles espionaram vários indivíduos. Assim, presume-se que os crimes foram cometidos por ordem do Catar.
Chalker nega todas as acusações. O estado do Catar não respondeu às perguntas. Logo após o contato da SRF, o emir do Catar reclamou em um discurso público sobre uma “campanha” contra seu país.
A investigação da SRF constatou que as vítimas estavam completamente à mercê dos agentes que as espionavam. Suas contas de e-mail, computadores, telefones, amigos e até familiares se tornaram alvos dos guerreiros das sombras do Catar.
A operação visava mais do que obter informações. A investigação conclui que houve uma mão invisível tentando controlar o direcionamento da FIFA durante os últimos dez anos. Os espiões afirmam ter penetrado na mais alta instância decisória da FIFA, o Comitê Executivo.
Esta é a história do “Projeto Sem Piedade”.
A história se passa em um mundo de bastidores. Os espiões são invisíveis. Suas atividades, no entanto, têm consequências na vida real. Em lugares reais.
Em 5 de janeiro de 2012, um ciberataque contra um cidadão suíço é lançado. Um ex-assessor do presidente da FIFA, Joseph Blatter, recebe e-mails estranhos. Seus remetentes parecem querer que ele abra os anexos das mensagens por todos os meios. Eles tentam repetidas vezes.
Se ele tivesse clicado nos arquivos, um software teria sido instalado secretamente em seu computador. Sem que ele percebesse, o software copiava todos os dados de seu disco rígido e os enviava aos hackers.
O homem sentado atrás do computador é Peter Hargitay. Oficialmente, ele atua como conselheiro, mas dentro da FIFA, ele é considerado uma espécie de porta-voz, um influente agente de poder nos bastidores. Ele havia sido próximo do então onipotente presidente Joseph Blatter. Mais tarde, ele foi consultor da associação australiana de futebol e de seu presidente, Frank Lowy, um bilionário. Hargitay deveria ajudar a Austrália a sediar a Copa do Mundo de 2022 e, portanto, trabalhou em estreita colaboração com Lowy.
Sem dúvida, o computador de Hargitay continha informações valiosas. Um tesouro para quem deseja ter uma boa noção do que realmente acontecia na FIFA.
Quem poderia querer tais informações tão desesperadamente a ponto de estar preparado para o risco de tomar um processo?
O líder indiano
Hargitay é cidadão suíço; sua empresa tinha um escritório em Zurique na época. Ele apresentou queixa e o ataque ao informante da FIFA se tornou um caso para as autoridades suíças.
As evidências apontaram rapidamente para a infraestrutura de uma empresa de TI com sede na Índia, a Appin Security. A SRF obteve registros do processo criminal de Zurique. Os hackers parecem ter sido descuidados em seu trabalho. O servidor que eles usaram para o ataque contém muitas evidências que indicam o envolvimento da Appin.
A Appin é uma empresa evasiva. Na época, era controlada por um empresário indiano. Oficialmente, a Appin oferecia apenas serviços jurídicos, incluindo proteção contra ataques de hackers.
Um representante legal do empresário disse à SRF que seu cliente era “um empresário internacional de sucesso com boa reputação. Ele nunca foi questionado pelas autoridades policiais em nenhum país. Ele nega claramente todas as conexões com quaisquer atividades ilegais”.
No entanto, os ataques que traziam a impressão digital da Appin começaram a atrair atenção em todo o mundo. Eles aparentemente não seguiam nenhum padrão, como se a empresa indiana estivesse atacando aleatoriamente.
De acordo com a investigação da SRF e reportagens da mídia internacional, um modelo de negócios relativamente novo está por trás do método: uma empresa ataca alvos por uma taxa e fornece as informações ao cliente. Chama-se “hackeamento de aluguel”.
O ataque ao colaborador da FIFA, Peter Hargitay, foi apenas um serviço contratado.
Mas quem é o cliente?
Documentos mostram que Peter Hargitay era alvo de uma rede secreta de espionagem que trabalhava para o governo do Catar. Um documento de planejamento altamente confidencial da Global Risk Advisors revela o que provavelmente aconteceu no caso de hackeamento. E mostra que os cidadãos suíços foram, ao que tudo indica, atacados em nome do governo do Catar.
Os documentos revelam um plano para uma campanha global de difamação, uma manipulação cínica da base de poder da FIFA. A ideia apresentada no documento era coletar informações incriminatórias sobre os membros da FIFA Hargitay e Lowy e vazá-las para o Federal Bureau of Investigation, o FBI.
O documento é intitulado “Project Clockwork: Concept of Operations” (Projeto Engrenagem: Conceito de Operações) e é datado de dezembro de 2011 – apenas um mês antes de Peter Hargitay receber os primeiros e-mails infectados.
O verdadeiro alvo era Lowy, não Hargitay, como mostram os documentos. Lowy estava trabalhando em estreita colaboração com Hargitay para a candidatura australiana à Copa do Mundo. A razão para os esforços dos espiões contra Lowy parece óbvia: o australiano era um duro adversário da realização da Copa do Mundo no Catar e havia dito publicamente que o país desértico poderia perder o direito de sediar o torneio.
O documento de planejamento diz, sob o título “o que devemos realizar”: “plano de 9 meses para neutralizar o papel e a influência de […] Frank Lowy”. Também menciona que Lowy era um alvo difícil. Sua riqueza e rede lhe davam acesso a consideráveis meios na área de contra-espionagem. O risco para os diretores da Global Risk Advisors, caso alguma coisa desse errado, foi considerado alto. O documento também especifica que o “Prazo exige ataque de força bruta”. Além disso, o documento apresenta uma foto de Peter Hargitay.
Na seção intitulada “Andando na corda bamba”, os agentes expõem como pretendiam neutralizar Lowy e Hargitay. Aparentemente, eles tinham informações internas a respeito de uma investigação das agências policiais dos EUA e planejavam usar essa investigação para seus próprios fins.
O documento alega conexões entre Hargitay, Lowy e a candidatura russa para a Copa do Mundo de 2018 e pergunta: “Podemos ajudar a conectar os pontos?”. E em seguida: “Fornecer provas de apoio às agências policiais relevantes”.
Uma investigação do FBI teria destruído a reputação de Lowy e Hargitay em âmbito global. Eles teriam sido efetivamente “neutralizados”.
De acordo com os documentos, o Catar aprovou o “Projeto Engrenagem”. E um mês após a elaboração do documento de planejamento, o computador de Hargitay foi hackeado. Que o ataque tenha sido realizado por outra empresa não é algo incomum. A Global Risk Advisors frequentemente recorre aos serviços de subcontratados para realizar operações, mostra a investigação da SRF. Essa abordagem torna mais difícil atribuir o ataque à empresa de Chalker. E mais ainda identificar o Catar como cliente. Em um documento, a empresa se compromete explicitamente a fornecer um “bode expiatório” e “para-raios” para desviar as suspeitas.
Chalker identificou Hargitay como um alvo importante muito antes do ataque cibernético contra ele. Ele havia dito isso aos associados na época. Chalker até tinha um codinome para Hargitay: “Broken Arrow”.
A ponta de um enorme iceberg
O plano para comprometer Lowy e Hargitay, no entanto, representa a ponta de um enorme iceberg. Nos anos seguintes à decisão sobre a Copa do Mundo, que aconteceu no final de 2010, uma operação de espionagem e manipulação não detectada que ninguém poderia imaginar se desenrolou nos bastidores da FIFA.
A SRF obteve uma série de documentos que descrevem a operação. Os repórteres receberam as informações de várias fontes que autorizaram o acesso a elas.
O cérebro por trás das atividades de espionagem é Kevin Chalker, ex-membro da Agência Central de Inteligência (CIA), o serviço de inteligência internacional dos EUA.
Chalker – de cabelos castanhos e barba ruiva – trabalhava para a CIA há pelo menos cinco anos. E não trabalhou como analista em algum escritório, atuou como “oficial de operações” e, portanto, em uma área do serviço de inteligência que realiza atividades secretas. Um verdadeiro espião.
Chalker deixou a CIA há vários anos. Posteriormente, ele primeiro negociou para trabalhar para a Diligence, uma empresa britânica de espionagem particular. Mas acabou fundando sua própria empresa, a Global Risk Advisors. Sua equipe consiste principalmente de ex-membros dos serviços de inteligência dos EUA. Por fim, a Global Risk Advisors estava trabalhando para o Catar.
Um advogado de Chalker negou todas as alegações quando procurado pela SRF para comentar o caso: “A Global Risk Advisors e o senhor Chalker não sabem nada sobre esses supostos novos hacks ou outras más condutas sugeridas em sua investigação e certamente não participaram deles de forma alguma”. Além disso, “Você afirma ter documentos da GRA para apoiar algumas das falsas acusações. Se você realmente tiver algum documento, como jornalista você deve questionar sua autenticidade”.
A SRF empregou uma série de medidas para verificar a autenticidade dos documentos. Chalker não quis comentar sobre questões específicas quanto à natureza do papel que desempenhou no Catar.
A investigação da SRF mostra que inicialmente, antes da premiação da Copa do Mundo em dezembro de 2010, Chalker espionou as várias licitações. Mas, com as críticas levantadas sobre corrupção e violações de direitos humanos no Catar após a conquista da Copa, o alvo mudou. Agora, a tarefa era impedir, a qualquer custo, que a FIFA tirasse a Copa do Mundo do Catar.
Chalker e sua empresa desenvolveram o plano que não deixaria nada ao sabor do acaso.
O “Projeto Engrenagem” e as atividades contra Lowy e Hargitay eram apenas parte desse plano.
A próxima parte foi o “Projeto Sem Piedade”. A descrição do projeto revela o quão elaborada era a trama do serviço de inteligência e quão ambicioso era o projeto.
“O Catar deve obter informações preditivas para alcançar a consciência informacional total”, diz o documento. O plano era conhecer os planos e intenções de vários alvos com antecedência, incluindo os de “figuras críticas dentro da FIFA”, do “presidente da FIFA Joseph Blatter” e dos “membros-chave do FIFA ExCo – presentes e futuros”. A sigla significa Comitê Executivo da FIFA.
“O objetivo final é alcançar a penetração de abrangência mundial”, especifica o documento. Os Global Risk Advisors pretendiam não perder nada. Nenhuma mudança em nenhum plano, nenhuma mudança de posição dentro da FIFA. O objetivo era obter o controle absoluto.
Especialistas em TI e especialistas em “coleta técnica” deveriam ser destacados para o projeto.
Segundo documentos internos da empresa, o “Projeto Sem Piedade” foi aprovado pelo Catar, com orçamento de US$ 387 milhões.
Esta foi apenas a “menor” opção das três apresentadas. Mas, aparentemente, causou impacto. Um documento diz: “A maior conquista até hoje do Projeto Sem Piedade […] veio de operações de penetração bem-sucedidas visando críticos vocais dentro da organização da FIFA”.
Outro documento descreve as atividades da seguinte forma: “[O projeto] é projetado para esconder o papel do Catar nas operações, enquanto utiliza tecnologia e inteligência humana para […] manipular o sentimento público”.
Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de Chalker, apurou o SRF Investigativ. De acordo com documentos analisados pela SRF, o então herdeiro do trono e atual emir Tamim bin Hamad Al-Thani ordenou pessoalmente a obtenção de registros detalhados de telefone e SMS de vários membros do Comitê Executivo da FIFA antes do anúncio do país sede da Copa do Mundo.
O quanto exatamente o Emir estaria envolvido depois que a Copa do Mundo foi concedida ao Catar ainda não está claro. A operação ainda tinha um codinome para ele – “Apex” – anos depois.
Claramente, no entanto, Chalker e Qatar estavam mais do que prontos a assumir riscos e não tiveram qualquer constrangimento em mirar em figuras proeminentes. Um documento obtido pela SRF indica que Michael Garcia, principal investigador do Comitê de Ética da FIFA, pode ter se tornado alvo de operações. O documento intitulado “Target Profile” contém várias páginas descrevendo Michael Garcia.
Segundo a agência de notícias Associated Press, o FBI está investigando Chalker há vários meses. Além das possíveis violações à lei na área de lobby e exportação de tecnologia sensível, os promotores estão se concentrando nas atividades de vigilância de Chalker em nome do Catar. A Associated Press já publicou relatórios sobre as operações de Chalker para o país desértico em conexão com a Copa do Mundo.
Nem a embaixada do Catar em Berna nem o Escritório de Comunicações do Governo em Doha responderam a vários pedidos de informações da SRF. Logo após os pedidos, o emir fez um discurso na Assembleia Consultiva do Catar, uma espécie de parlamento sem poder, no qual mencionou que o Catar havia sido vítima de uma “campanha inédita” depois que o país foi escolhido como sede da Copa do Mundo. Ele disse: “Logo ficou claro para nós que a campanha continua, se expande e inclui invenções e padrões duplos, até atingir uma ferocidade tal que fez muitos se perguntarem, infelizmente, sobre as verdadeiras razões e motivos por trás dessa campanha”.
Operação de vigilância na Suíça
A investigação da SRF mostra que a Suíça foi fundamental para a operação de inteligência do Catar.
Segundo a investigação, Chalker, a mando do Catar, viajou a Zurique com o objetivo de grampear quartos de hotel de membros do Comitê Executivo e de jornalistas.
Um documento inclui fotos obviamente tiradas em segredo como parte de uma operação de vigilância. Elas foram tiradas no luxuoso hotel Baur au Lac, em Zurique. E mostram pessoas ligadas à FIFA reunidas com dirigentes e jornalistas.
Os agentes aparentemente se sentiram à vontade na Suíça. De acordo com a investigação, Chalker se reuniu com seus clientes do Catar em Zurique para discutir as operações. Pelo menos um membro da Global Risk Advisors fixou sua base permanente na Suíça, depois que o Catar foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022.
Isso é um problema. Espionar em nome de um terceiro país em solo suíço é proibido. Tais atividades podem ser indiciadas como espionagem.
No entanto, Chalker conheceu um de seus contatos mais próximos, um alto funcionário do Catar chamado Ali Al-Thawadi, em Zurique. Seu codinome era “Shepherd” (“Pastor”). Ele é o chefe de gabinete do irmão do atual emir, Mohammed bin Hamad bin Khalifa Al Thani, também conhecido como MBH.
Além disso, dois jovens tinham laços estreitos com Chalker na operação de espionagem em nome do Catar: Ahmad Nimeh, oficialmente consultor da candidatura do Catar, e um catariano chamado Ahmed Rashad. Ambos os homens têm conexões com uma misteriosa empresa com sede em Doha chamada Bluefort Public Relations. Nimeh esteve ligado às chamadas “operações negras” relacionadas à Copa do Mundo pelo jornal britânico The Sunday Times em 2018. Nimeh é genro de Patrick Theros, ex-embaixador dos Estados Unidos no Catar. Outro parceiro próximo de Nimeh, Nikos Kourkoulakos, estava trabalhando oficialmente para a candidatura do Catar à Copa do Mundo.
De acordo com o registro de empresas, Ahmad Rashad, colega de Nimeh, é o acionista majoritário da Bluefort Public Relations.
A investigação da SRF descobriu que uma pessoa-chave para a próxima Copa do Mundo, Hassan Al Thawadi, supervisionou a operação de espionagem em nome do Catar. Ele foi o CEO da bem-sucedida candidatura à Copa do Mundo e é o atual secretário-geral do Comitê Supremo, órgão que organiza a Copa do Mundo no Catar.
A FIFA aparentemente permaneceu alheia à operação de espionagem. O ex-presidente da entidade, Joseph Blatter, disse em entrevista à SRF: “Que houve um caso de espionagem organizada na FIFA, foi algo que me surpreendeu. E é alarmante”. Vários documentos mostram que Blatter era de grande interesse para os espiões. Mencionam, por exemplo, que os “planos e intenções” de Blatter devem ser conhecidos com antecedência.
A Chalker e a Global Risk Advisors estão atualmente enfrentando uma ação civil relacionada a supostas atividades semelhantes. A ação foi movida por Elliott Broidy, aliado do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Dados privados de Broidy vazaram para jornais em 2018, e ele acusa Chalker e sua empresa de um ataque de hackers em nome do Catar. Chalker nega todas as acusações. O processo ainda está pendente.
“Câncer do futebol mundial”
Houve uma figura no futebol mundial que pareceu importante o suficiente para os espiões do Catar lhe dedicarem um projeto inteiro: “Projeto Riverbed”. O codinome foi usado para o cartola do futebol alemão Theo Zwanziger.
Segundo documentos obtidos pela SRF, o Catar investiu US$ 10 milhões para espionar e influenciar Zwanziger. A Associated Press reportou a mesma cifra nesta primavera.
Zwanziger atuou como presidente da DFB, a Associação Alemã de Futebol, até 2012. E como membro do Comitê Executivo da FIFA até 2015 e, portanto, um executivo de futebol extremamente influente, associado a figuras poderosas na política mundial, ele era uma voz crítica e provocativa contra o Catar. A certa altura, ele chamou o Catar de “o câncer do futebol mundial”.
O Catar queria parar isso. Segundo documentos, uma rede foi construída em torno de Zwanziger, composta por pessoas que iriam influenciá-lo em benefício do Catar.
Para neutralizar Zwanziger, os espiões contaram com métodos de inteligência, como especificam os documentos.
Eles mencionam “operações ocultas”. Também em sua mira estava a “Família Riverbed” – que é a família de Zwanziger. Os atacantes do Global Risk Advisors aparentemente construíram relacionamentos com pessoas próximas a Zwanziger. Criaram uma rede de “recursos, fontes e contatos” ativos nos cinco continentes, trabalhando para influenciar Zwanziger.
Zwanziger receberia persistentemente uma mensagem: “A Copa do Mundo de 2022 no Catar é boa para o mundo”.
Para salvar a Copa do Mundo, o Catar queria calar as críticas. Os esforços da operação não deixaram de surtir efeito em Zwanziger. Ele foi enquadrado dentro da Fifa, como diz hoje. Ele liderou um grupo de trabalho que pressionou por mais direitos humanos e menos críticas ao Catar. Em entrevista à SRF, ele disse: “Várias pessoas me orientaram nessa direção. Claro, isso era do interesse do Catar. Para provocar precisamente essa mudança de pensamento.”
Mas esses esforços, de acordo com Zwanziger, não tiveram o efeito pretendido em suas opiniões. Na entrevista, ele disse: “O que eles subestimaram, porém, é que eu não abri mão da minha opinião no processo. Esta decisão [dar o mundial ao Catar] foi – como eu já disse – um câncer para o futebol mundial. A partir daí surgiram muitas correntes que prejudicaram o futebol mundial. Ainda hoje tenho essa opinião.”
No que diz respeito à operação de espionagem contra ele, Zwanziger acha que a FIFA tem a obrigação de agir. Ele disse: “Isso é um escândalo. Deve ser enfrentado por aqueles que estão no comando. O presidente da FIFA, Infantino, seria o primeiro. Mas ele não fará isso, é claro, porque é um vassalo do Catar.”
A FIFA e Gianni Infantino se recusaram a comentar.
Visando os sindicatos
A Confederação Sindical Internacional (ITUC) apresentou outro problema para o Catar. Durante anos, a federação sindical, que inclui 200 milhões de filiados, repetidamente levantou questões sobre a Copa do Mundo no Catar. E trabalhou para garantir que o sofrimento dos trabalhadores no Catar chamasse a atenção do mundo e comovesse as pessoas.
O sindicato foi vítima de um ataque cibernético no final de 2015. Alguém havia copiado o e-mail da então porta-voz de mídia para o secretário-geral. E os e-mails logo apareceram – em versão alterada, segundo o sindicato – na mídia.
O ataque trazia as impressões digitais de Global Risk Advisors. A SRF obteve um documento, no qual a Global Risk Advisors identifica o sindicato como um problema tão sério para o Catar quanto a FIFA ou o Conselho de Cooperação do Golfo – importante grupo de países em nível diplomático.
Os espiões também traçaram uma rede detalhada de relacionamentos de pessoas que trabalham para o sindicato e de que forma elas estavam ligadas à FIFA. Este documento menciona a porta-voz da mídia, que foi hackeada.
Atenção do FBI
Apesar de nunca ter disputado uma partida de futebol profissional na vida, Sunil Gulati é uma das figuras mais importantes do futebol nos EUA. Ele começou carregando as toalhas dos membros da seleção nacional de juniores, antes de avançar para o cargo de presidente da Federação de Futebol dos Estados Unidos. Por décadas, ele foi o indivíduo mais influente do futebol estadunidense. As fotos tiradas naquela época o mostram com Barack Obama, Bill Clinton ou Joe Biden.
No auge de seu poder, Gulati foi espionado, seu computador foi hackeado, aparentemente sem que isso tivesse sido notado. A evidência do ataque a Gulati parece inexpressiva a princípio: uma pasta digital comum.
No entanto, a pasta contém aproximadamente 800 arquivos, todos roubados do computador de Gulati. O hacker parece ter copiado todos os arquivos PDF, Word, PowerPoint e Excel naquele computador. E essas cópias chegaram à SRF.
Os arquivos incluem documentos confidenciais, como o contrato de trabalho do então técnico da seleção americana Bob Bradley, além de cartas de e para Gulati e outros dirigentes da FIFA. O ataque não poupou a vida privada de Gulati. Há um livro de fotos nos arquivos, por exemplo, documentando os anos de infância de Gulati, e há dados de saúde.
Gulati era concorrente direto do Catar, dois anos antes, durante o processo de definição da sede da Copa do Mundo. Ele foi presidente da candidatura estadunidense para a Copa do Mundo de 2022, período durante o qual a Global Risk Advisors se interessou por ele e preparou a seu respeito um dossiê pessoal de várias páginas.
Os metadados mostram que os últimos arquivos de Gulati foram editados na primavera de 2012. Portanto, o ataque hacker provavelmente ocorreu apenas algumas semanas após o ataque a Hargitay. Os membros da FIFA, SRF, conversaram para considerar Gulati um crítico do Catar.
Não há dúvida de que alguém cuja identidade ainda não foi esclarecida queria saber o que havia no computador de Gulati. E que eles não hesitaram em lançar um ataque cibernético contra um cidadão americano, embora o FBI investigue estritamente os crimes cibernéticos.
A inação das autoridades suíças
Agentes espionam o mundo do futebol em nome do Catar há dez anos. A SRF descobriu que o Ministério Público de Zurique sabia sobre uma suposta atividade da rede de espionagem desde o início. Eles estavam cientes do hack no computador de Peter Hargitay desde 2012 – quando os invasores iniciaram suas operações. E era óbvio que o caso Hargitay era importante.
No entanto, nada de mais aconteceu em relação às investigações do Ministério Público. Os promotores se omitiram em ações investigativas óbvias. O exemplo mais contundente disso diz respeito ao CEO da empresa indiana Appin Security, que havia sido considerado suspeito no caso. O promotor inicialmente perguntou ao CEO se ele estaria disposto a responder perguntas sobre o caso. Um advogado informou ao Ministério Público que o empresário estaria disposto a fazer isso por escrito. Mas então o promotor simplesmente não enviou nenhuma pergunta. Ainda não está claro o porquê.
Por fim, o Ministério Público encerrou o caso oito anos depois por falta de vias investigativas adequadas. O Ministério Público de Zurique disse em comunicado à SRF que, por motivos legais, não pode comentar suas próprias atividades no processo. Um porta-voz escreveu que houve esforços abrangentes para essa investigação que foi realizada dentro das disposições legais. O porta-voz disse ainda: “Não houve exercício de influência sobre nenhum membro do Ministério Público”.
O ex-CEO vive hoje na Suíça. No outono de 2020, logo após o encerramento da investigação, ele comprou uma mansão impressionante. De acordo com o cartório de registro de imóveis, ele pagou 13,5 milhões de francos suíços à filha de um oligarca ucraniano na transação. Ele agora se apresenta como um renomado investidor em startups e teve sua foto tirada para a edição francesa da revista suíça Bilanz.
O que ele teria testemunhado se tivesse sido solicitado em 2013? A história teria tomado outro rumo? Os espiões do Catar teriam reduzido seus esforços por medo de serem expostos? Não haverá resposta para tais perguntas.
Neste momento, com a Copa rolando, milhões estão de olho no Catar. Mas talvez ninguém veja as coisas da maneira que o Emir sempre desejou. Se a Copa do Mundo de 2022 for uma celebração do futebol, será manchada por agentes de inteligência, mentiras e manipulações.
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