O Brasil precisa ter coragem de ser a Argentina. Embora estejamos às vésperas de uma nova Copa do Mundo, esse apelo não resvala nas estratégias de jogo e, menos ainda, tem a intenção de acirrar a rivalidade esportiva que marca a relação entre os dois países.
De qualquer sorte, é um clamor para que o Brasil abandone a retranca covarde e replique a bravura que nossos vizinhos tiveram, há 37 anos, para lamber as feridas e levar ao tribunal civil os líderes das juntas militares que tomaram de assalto a Casa Rosada, no golpe de estado de 1976.
A história desse julgamento — que encontra parâmetros no tribunal alemão de Nuremberg, que puniu severamente os nazistas após a II Guerra Mundial — é recuperada no filme “Argentina 1985”, disponível no serviço de streaming Prime Video. O premiado ator Ricardo Darín dá vida ao promotor Julio Strassera, responsável por acusar os ditadores (entre eles, o sanguinário Jorge Rafael Videla) pelas inúmeras violações ocorridas no período.
Por aqui, naquele mesmo ano de 1985, enquanto os argentinos mergulhavam nos arquivos das prisões ilegais, esmiuçavam as torturas nos porões do regime e buscavam o paradeiro de mais de 30 mil desaparecidos, nós, bem à brasileira, encaminhávamos uma transição civil pelo voto indireto, sem expurgar o entulho de 21 anos de patrimonialismo das casernas e, sobretudo, escondendo as gravíssimas atrocidades de agentes do estado, ancoradas na Lei Geral da Anistia, de 1979.
Por covardia, sonegamos um encontro com nosso passado e, em ato contínuo, abrimos perigosas brechas para sua repetição como rima corrosiva no futuro. Tivesse havido um criterioso ajuste de contas com os militares, seria impensável o então deputado do baixíssimo clero Jair Messias Bolsonaro, no processo de abertura de impeachment contra Dilma Rousseff, em 2016, citar orgulhosamente o torturador Brilhante Ustra — ele mesmo, realocado como adido militar no governo Sarney e, até hoje, mesmo revelado o facínora que foi, ser razão para que suas filhas recebam pensão do estado brasileiro.
Por isso, quem conhece a história e respeita a importância dela, ouviu com assombro a declaração dada pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Em evento nos Estados Unidos, Toffoli criticou o julgamento feito pelos argentinos e disse que eles são “uma sociedade que ficou presa ao passado”.
Essas foram suas exatas palavras: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina: uma sociedade que ficou presa no passado. Na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (...). O Brasil é muito maior do que isso. O Brasil é muito mais forte do que isso”.
Mais do que reforçar uma imagem de simpatia à ditadura militar brasileira — quando era ministro do STF, em 2018, Toffoli defendeu o termo “movimento” no lugar de “golpe” —, a fala do ministro sinaliza para uma acomodação desmobilizante de forças, que não se articule no intuito de julgar os crimes cometidos pelo presidente Bolsonaro e seus fiéis asseclas.
O Brasil tem um segundo tempo para ser a Argentina. Quem derrotou no voto a milícia, o negacionismo científico, os danos ambientais, os ataques aos LGBTs, aos povos tradicionais e a tentativa de golpe, perdeu o direito de ter medo. É fundamental levar aos tribunais quem atentou contra a democracia, foi negligente no enfrentamento da Covid e investiu na violência física e psicológica para desorganizar as instituições do país.
O preço da mansidão, disfarçada de ingênua tolerância, é ser engolido pela bestialidade.
Nós somos a verdadeira sociedade presa ao passado, ministro. Amarrados aos pés por grilhões de covardia. Não existe direção segura para lugar nenhum sem retrovisores posicionados para enxergar quem tenta nos ultrapassar. |
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