Como os militares atravancam a Comissão de Transição
Demora em indicar nomes para o grupo de Defesa teria dois objetivos: obter “salvo conduto” que evitem processos e prisões; e criar período de “desmame” para milhares de nomeados para altos cargos por Bolsonaro. Lula resistiria às pressões
Por Maurício Thuswhold e Sérgio Lírio, na Carta Capital
Procurar nas feições do futuro vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, sinais do clima que cerca os trabalhos da equipe de transição é perda de tempo. O ex-tucano e neocompanheiro pula as cascas de banana, contorna as pedras no caminho e faz ouvidos moucos às desavenças e reclamações sem alterar a expressão de esfinge. Enquanto Lula, retornado das viagens ao Egito e a Portugal, recupera-se em São Paulo da fadiga na garganta que o obriga a tomar vários copos d’água por dia, Alckmin testa em Brasília, até onde lhe é autorizado, os limites da relação com os negociantes do Congresso e os sabotadores entrincheirados nos ministérios do governo Bolsonaro. Aos trancos e barrancos, o processo segue o seu curso, à exceção de dois assuntos cruciais: a PEC que busca liberar 175 bilhões de reais para os gastos sociais e a mínima recomposição do orçamento e a composição do grupo de trabalho de Defesa e Inteligência. Apesar de eclipsada pela discussão sobre o ajuste fiscal e pelo chilique do mercado financeiro, a demora em indicar os representantes que vão conversar com o comando militar, somada à insistência de bolsonaristas em colocar em xeque o resultado das eleições, dá a dimensão do mal-estar entre os eleitos e as Forças Armadas.
Na terça-feira 22, Alckmin tentou dissipar a nuvem escura. Prometeu para a quinta-feira 24, data de fechamento desta edição, a divulgação do GT para a área de Defesa e negou “dificuldades” com os militares. “É importante ter um bom projeto estratégico para o País. Estamos amadurecendo propostas e buscando bons nomes”, declarou em entrevista no Centro Cultural de Brasília, QG da equipe de transição. “Vamos ouvir todo mundo, conversar, este é o bom caminho.” Resta saber se os militares estão dispostos a percorrer a mesma estrada. As últimas semanas indicam o contrário. A demora em anunciar os nomes do grupo de trabalho, em descompasso com as demais áreas de governo, resulta da divergência entre os vencedores e os generais. Lula e o PT acham que os oficiais, sócios de Bolsonaro no desastre, querem garantias demais. Em resumo, os fardados almejam um salvo-conduto e gostariam de um processo lento, gradual e seguro de “desmame” da máquina pública (quase 7 mil integrantes das Forças Armadas ocupam cargos comissionados ou cadeiras em conselhos de administração de estatais), de um ministro da Defesa de sua confiança – e não da confiança do presidente da República – e da manutenção dos investimentos e de algumas regalias acumuladas desde o impeachment de Dilma Rousseff.
Soma-se às exigências dos “derrotados” a falta de civis dispostos e habilitados a encarar a tarefa de mediar visões de mundo em grande medida irreconciliáveis. Velhos conhecidos e rostos novos circulam na bolsa de apostas. Por ter ocupado o mesmo cargo no segundo mandato de Lula, Nelson Jobim é sempre lembrado. Goza da confiança do presidente eleito e dos generais, trunfo nas atuais circunstâncias. Falta-lhe disposição. Aos 76 anos, Jobim está em outra e dificilmente trocaria o filé de sócio e integrante do conselho de administração do BTG Pactual, um dos mais influentes bancos brasileiros, pelos ossos do ofício em Brasília. Raul Jungmann, ministro da Defesa de Michel Temer, é outro citado, mas a antipatia de petistas influentes é obstáculo intransponível. Até o advogado Walfrido Warde Júnior, de bom trânsito entre oficiais de alta patente, chegou a ser sondado pela campanha lulista. Segundo fontes ouvidas por CartaCapital, Warde prefere, no entanto, dedicar-se ao escritório que leva seu sobrenome.
Lula, por sua vez, não se mostra disposto a ir além do diálogo republicano. A uma pergunta desta revista sobre o tema durante a coletiva ao lado do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, o petista deu a seguinte resposta: “Não me deixo basear por futricas ou tuítes. As Forças Armadas têm um dever constitucional e irão cumpri-lo, como cumpriram no meu primeiro mandato”. A menção a tuítes e futricas foi uma indireta ao general Walter Braga Netto. Na manhã daquele mesmo dia, o candidato a vice na chapa de Bolsonaro insinuou a apoiadores no “cercadinho” em Brasília que uma reviravolta no resultado das eleições estava próxima. O presidente eleito, sem esconder a impaciência, foi além na resposta: “O comando militar está tranquilo, me conhece. No momento certo, vou indicar quem será o comandante da Marinha, quem será o comandante da Aeronáutica, quem será o comandante do Exército. E aí o Brasil também vai voltar à normalidade nas relações entre governo e Forças Armadas”.
A tensão instalada pelos protestos bolsonaristas, que merecem dos militares o silêncio conivente ou o apoio explícito, criou, no entanto, as condições para a chantagem dos quartéis. Os generais sabem que um golpe é impossível, em especial pela rejeição internacional, mas fazem questão de manter o “terrorismo” enquanto negociam a transição. A falta de punição leva oficiais da ativa a extrapolar suas funções, caso do comandante da 10ª Região Militar, general André Luiz Campos Allão. À tropa, no Ceará, Allão recomendou a proteção aos “patriotas” defensores da intervenção federal e pregou a desobediência a determinações judiciais. “O Mal vai ser vencido com o Bem. O Mal não é vencido com o Mal”. Segundo ele, “toda manifestação ordeira e pacífica é justa, não interessa o que ela pede”. E emendou: “Tenho a responsabilidade, enquanto comandante, de trabalhar para que quem vai à frente da 10ª Região Militar seja protegido, ainda que existam ordens de outros poderes no caminho contrário”.
Não está tudo como dantes no quartel de Abrantes. Uma reportagem do portal Metrópoles revelou que Braga Netto manteve ativo o comitê de campanha de Bolsonaro na capital federal e tem recebido financiadores dos atos antidemocráticos que paralisam estradas, vandalizam bens públicos e privados, choram e rezam nos muros e enviam mensagens desesperadas a extraterrestres em busca de apoio para impedir a posse de Lula.
A movimentação no “QG do golpe” tem sido intensa, conforme os vídeos exibidos pelo site. Lá, o general e integrantes do PL, partido do ex-capitão, discutiram os termos da estapafúrdia contestação do segundo turno das eleições, enviada na terça-feira 22 ao TSE. Assinada pelo presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, a petição refere-se ao modelo antigo de urna eletrônica usado na votação e coloca em dúvida 59% dos dispositivos. Segundo a argumentação do PL, refutada em todas as análises e auditorias feitas anteriormente, os equipamentos fabricados antes de 2020 possuem o mesmo número de log, o que impediria a identificação individualizada de cada urna. Rápido e certeiro na resposta, o presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, lembrou que as urnas contestadas foram utilizadas no primeiro turno, ocasião na qual a agremiação de Costa Neto obteve a maior bancada da futura Câmara dos Deputados. “Sob pena de indeferimento, deve a autora em um prazo de 24 horas aditar a petição inicial para que o pedido abranja ambos os turnos das eleições”, determinou o ministro. Foi somente uma corda para o PL se enforcar. Na noite da quarta-feira 23, o ministro indeferiu a ação e aplicou multa de 22,9 milhões de reais ao partido por tentar “perturbar a ordem” do processo eleitoral.
Responsável pela condução dos inquéritos contra Bolsonaro no STF por conta da promoção de atos antidemocráticos, ataques aos ministros do Supremo e organização de milícias digitais para a disseminação de fake news, Moraes enfrenta com o mesmo ímpeto os generais, de farda ou pijama. Na quinta-feira 17, o ministro encaminhou à Procuradoria-Geral da República pedido de afastamento do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, por crime de responsabilidade, depois de o general ter colocado outra vez em dúvida a lisura das urnas eletrônicas. Nogueira assina a nota na qual o ministério afirma, sem evidências, que “o acurado trabalho de técnicos militares, embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude no processo eleitoral de 2022”.
A postura dos generais Braga Netto, Oliveira e Allão fermenta as teorias conspiratórias dos golpistas de plantão. Conhecido aliado de Bolsonaro, o ministro do Tribunal de Contas da União, Augusto Nardes, virou alvo de notícia-crime após vazar um áudio no qual diz a colegas de tribunal ter conversado “longamente” com o ainda presidente e que este estaria recluso e em preparação para “enfrentar o que vai acontecer no País”. Nardes, mentor da tese das “pedaladas fiscais” que culminou no impeachment de Dilma Rousseff, afirmou ainda ser “questão de horas, dias, no máximo uma semana ou duas, talvez menos” a ocorrência de “um desenlace bastante forte na nação” com consequências “imprevisíveis”.
De forma conveniente, o ministro do TCU tirou licença médica antes de a bancada do PT dar entrada a um pedido de investigação no Supremo na segunda-feira 21. O partido solicita o afastamento imediato do ministro, além de sugerir sua convocação pela Câmara para prestar esclarecimentos. “No áudio que circulou na internet, um ministro do TCU se mostra envolvido em uma conspiração e fala de um desfecho golpista no nosso país. Ele reconheceu a autoria do áudio como sua e o conteúdo é criminoso. Por essa razão enviamos uma notícia-crime ao STF, que tem um inquérito aberto para investigar atos antidemocráticos, pedindo a investigação do envolvimento de Nardes”, afirma o deputado federal Paulo Teixeira.
Autor da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, Teixeira afirma não haver dúvida de que Nardes incorre em crime contra a democracia, mas as explicações aos parlamentares podem ser indefinidamente adiadas, por conta da licença médica do ministro. Na nota em que declara repúdio a atos golpistas, Nardes recorre à velha tática: disse que não disse o que disse. E “lamenta profundamente a interpretação dada a um áudio despretensioso”. No que depender do PT, o caso não está encerrado. “Com a licença médica, o ministro demonstra medo do processo investigatório. Ele precisa sofrer uma punição severa por esse tipo de movimento. A punição a ser dada tem que ser exemplar”, advoga Teixeira.
Chantagem, delírio ou conspiração de fato, há nas Forças Armadas, sobretudo no Exército, uma oposição a ser contornada, acredita o historiador Francisco Carlos Teixeira, criador do recém-lançado Dicionário de História Militar do Brasil: “Há clara resistência à figura do Lula, ao PT no seu conjunto e a alguns nomes específicos do partido, entre eles José Dirceu, Guido Mantega e Dilma Rousseff”. De acordo com o acadêmico, “um grupo de oficiais não considera a democracia brasileira válida ou que a Nova República tenha sido um avanço e trabalha muito claramente para minar sua estabilidade”. Teixeira compara a situação atual ao ano de 1977, quando a abertura política coordenada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva sofreu forte reação encabeçada pelo então ministro do Exército, Sylvio Frota: “Uma das figuras importantes naquele momento foi o oficial de gabinete de Frota, o então capitão Augusto Heleno, hoje no entourage de Bolsonaro. Ele faz parte de um núcleo duro no Exército que nunca aceitou a Nova República”.
A resistência desse grupo de oficiais, na definição de Teixeira, não é novidade para o presidente eleito, que a sentiu na pele no episódio da demissão de José Viegas, primeiro civil a comandar a pasta da Defesa em um governo do petista, em 2004: “Naquele momento, se Lula tivesse tomado uma atitude mais drástica e reformado os coronéis que participaram daquele complô contra o ministro da Defesa, isso talvez não tivesse culminado na ação contra Dilma. Hoje se diz que a Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma irritou os militares, mas não é verdade. O que houve foi uma consolidação dessa frente militar, empresarial, midiática e parlamentar para a realização do golpe”.
Um oficial próximo ao Alto-Comando afirma que o Exército “não resistirá ao novo governo, mas há certamente generais que apostam em uma quimérica virada do jogo”. A convicção, diz, tem natureza ideológica. “As Forças Armadas responderam pelo apoio ao atual presidente, estão envolvidas no processo e é natural que nestas circunstâncias isso aconteça. Agora, como instituição do Estado, dificilmente vão se opor ao novo governo. Baterão continência ao chefe de Estado, chefe supremo das Forças Armadas.” Entre os pontos de apoio com os quais Lula pode contar na disputa interna, o militar cita generais reformados, entre eles Enzo Peri e Sérgio Etchegoyen. “Estes talvez possam ter uma postura mais consentânea com a realidade. Não estão mais na ativa, mas são chefes respeitados e têm liderança interna. São discretos e têm como contribuir neste momento.”
Ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, Celso Amorim acredita que, à exceção “dos militares que estão no governo e atuam diretamente como políticos”, não existe no Exército resistência significativa ao futuro governo. “Não percebi nos contatos recentes com generais da ativa e da reserva, todos de alto prestígio. Todos querem olhar para a frente.” Quanto à busca por apoios, Amorim é taxativo: “Não se trata de dizer quais são os generais alinhados ao novo governo. São generais alinhados à legalidade e é isso que importa”. Lembrado para o ministério, o diplomata segue pela tangente e diz que qualquer nome indicado por Lula será acatado. “É uma questão de respeito à lei e os generais mais importantes do Alto-Comando querem apoiar a legalidade. Além disso, percebo neles que a politização fez mal às Forças Armadas e, em particular, ao Exército.”
O presidente eleito faz questão de lembrar, sempre que possível, os investimentos nas Forças Armadas durante seus governos, mas os anos de Bolsonaro no poder inocularam veneno nas tropas. Embora tentem esconder os fatos, os comandos foram cúmplices do ex-capitão. A lista de crimes e desvios éticos é extensa. Vai da produção não explicada de cloroquina nos laboratórios do Exército às compras superfaturadas de picanha, uísque e Viagra. Do acúmulo de vencimentos exorbitantes ao pagamento ilegal do auxílio emergencial a 79 mil militares, conforme levantamento do TCU. Os abusos seriam suficientes para uma ampla limpeza no oficialato, mas não é o que se deve esperar de Lula. Integrantes da equipe de transição mandaram avisar à caserna: não está prevista a revisão de benefícios concedidos por Bolsonaro, entre eles a possibilidade de obter aumento no salário por meio de cursos. E quanto aos milhares aboletados em cargos de comissão civis? “Eles mudam naturalmente quando há alternância de governo. Não é natural querer transformar um cargo em comissão em cargo permanente”, avalia a fonte militar.
Para Francisco Carlos Teixeira, retirar os fardados da máquina pública “é fundamental para a credibilidade do novo governo”. Muitos militares que não são especialistas, diz o historiador, ocupam atualmente cargos nos ministérios da Saúde, da Justiça e da Educação, entre outros: “Vai haver ranger de dentes, isso me parece claro, principalmente porque muitos se acostumaram a um padrão de vida superior àquele oferecido pelas Forças Armadas. É uma questão difícil, mas é evidente que o Brasil não pode continuar sitiado, principalmente por elementos que não têm formação técnica para desempenhar as funções”. Amorim concorda: “Entre a ditadura e o governo civil a mudança nos cargos ocorreu sem traumas, não vejo como possa surgir algum problema. Isso não quer dizer que nenhum militar possa eventualmente ter um cargo civil. O que não pode haver é o militar da ativa virar ministro e depois voltar para a tropa. Isso não é possível”.
Quanto aos generais golpistas, a fonte militar sugere ligeireza da Justiça nas punições: “Acho que o Braga Netto deveria estar preso há muito tempo. Ele incita o golpe. É também extremamente grave que o comandante da 10ª Região Militar ainda não tenha sido preso ou punido”. Talvez fosse assim se o Poder Judiciário agisse em bloco e de comum acordo. No Brasil atual, parece existir um único magistrado, Alexandre de Moraes. Xandão tem se mostrado capaz de deter o cabo e o soldado. Enfrentar a tropa inteira é outra história.
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