Peru: o grande levante indígena e plebeu
Marchas populares chegam a Lima, para exigir novas eleições e Constituinte. Repressão já matou 50 – e mostra um país em transe: seis presidentes em quatro anos, rechaço ao poder das elites e reivindicação crescente de “democracia real”
Por Laura Arroyo, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
Povos indígenas e camponeses, especialmente do sul do Peru, região historicamente esquecida pelo Estado, chegaram nesta quarta-feira (18) à capital do país para uma gigantesca manifestação, batizada de “Tomada de Lima”. Estudantes e movimento sindical já somaram-se aos protestos. Eles exigem a renúncia de Dina Boluarte, que assumiu a presidência após a destituição de Pedro Castillo, a realização de novas eleições e uma nova Constituição. O governo bem que tentou impedir que os manifestantes chegassem a Lima: prolongou o estado de emergência em quatro províncias e três regiões do país, intensificou o patrulhamento, bloqueou diversas rodovias e exigiu documentação de veículos e pessoas que chegavam a capital. Boluarte pediu que os protestos não se degenerem em atos violentos e de vandalismo, argumento que vem sendo usado para uma brutal repressão que já matou dezenas de peruanos. Segundo pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos, 71% da população reprova a forma como a nova presidente conduz o governo – e 60% deseja a soltura de Castillo. Já o Parlamento, considerado o principal vetor da crise, é rechaçado por 88% dos peruanos. Um grande protesto está marcado para amanhã.
No maravilhoso livro Os rios profundos, José María Arguedas tem, como de costume, uma frase para tudo. Nestes 39 dias de governo de Dina Boluarte [vice que assumiu após a deposição de Pedro Castillo], volto muito a Arguedas para tentar explicar para aqueles de fora o que o que acontece dentro do meu país e, como imaginei, encontrei a frase que, acredito eu, o Peru mobilizado, que já chora 48 mortos em protestos, disse a si mesmo: “Sim! Era preciso ser como aquele rio imperturbável e cristalino, como suas águas vitoriosas. Como você, rio Pachachaca! Belo cavalo de crina brilhante, imparável e permanente, que marcha pelo caminho terrestre mais profundo!”
Falar do Peru fora do Peru para explicar o Peru é um exercício difícil dada a magnitude da história que deve ser entrelaçada para captar o que está acontecendo. A reação imediata nestes dias é a de interesse, mas também de desconhecimento sobre o povo mobilizado no sul e do qual pouco se fala na Espanha, em particular. Na Espanha, quando digo Peru nesses nove anos como migrante, costumo receber três reações específicas: “cebiche!”, “Machu Picchu!” ou o nome de um infeliz embaixador: “Mario Vargas Llosa!”. Mas o Peru que costuma ser desconhecido é o que hoje está mobilizado e tem melhores embaixadoras. O Peru é o país de Máxima Acuña, a mulher que enfrentou sozinha uma transnacional para defender seu território e que até hoje nunca capitulou. O Peru é o país de Gisela Ortiz e Raída Cóndor, as mulheres que exigiram justiça para seus familiares vítimas da ditadura fujimorista e que, com aquela teimosia imparável como a do rio Pachachaca, conseguiram colocar Alberto Fujimori na prisão por crimes contra humanidade. O Peru é o país de Killa Sotelo, irmã de Inti Sotelo, jovem que morreu durante a repressão às marchas que buscaram, e conseguiram, afastar em 2020 um usurpador da presidência como Manuel Merino — e ela está hoje nas ruas de Lima, contribuindo para que o protesto continue sendo um direito, uma memória e uma obrigação coletiva. O Peru é o país de Mamá Angélica, uma camponesa que foi a ativista mais poderosa que tivemos na luta contra a impunidade por desaparecimentos forçados entre 1980 e 2000. A lista é bem mais longa e mostra uma forma de entender o que está acontecendo hoje nesse Peru que não para de se mobilizar contra um governo que não considera seu. O hoje também só pode ser explicado por esses exemplos da luta que nunca cessou.
O pavio foi aceso
Em 7 de dezembro, o então presidente Pedro Castillo leu com a voz trêmula uma mensagem para toda a nação. Nela anunciava a dissolução do Congresso, a convocação de novas eleições, um toque de recolher nacional, um governo por meio de decretos-lei, a reorganização do sistema de justiça etc. Qualquer um poderia pensar que se tratava de um golpe e que o então presidente agia fora da lei e da constituição. No entanto, embora seja verdade que o anúncio afirmava isso, Pedro Castillo não realizou nenhum golpe. O golpe, ao contrário, seria outro. O golpe que ganhou foi o de quem, desde que Castillo venceu nas urnas em 2021, levou a ferro e fogo o desejo de retirá-lo do Palácio do Governo. Em 7 de dezembro, Castillo deu a eles uma oportunidade.
Duas horas após o anúncio, o ex-presidente foi detido sob custódia. Ele continua detido e sua prisão preventiva foi estendida para 18 meses. Foram seus próprios guarda-costas, que o protegiam em sua tentativa de chegar à embaixada mexicana em Lima, que detiveram Castillo. Um curioso golpista ou ditador que não conta nem com a lealdade de sua própria escolta, não é mesmo? Investigações e testemunhos posteriores, como o publicado pelo IDL-Reporteros, mostram que os principais cargos nas Forças Armadas, semanas antes, já não respondiam àquele que ainda era o Chefe de Estado, mas apenas ao comando interno. Um comitê de crise foi criado, considerando as possibilidades de um conflito. O Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal Constitucional e o Ministério Público Nacional entraram nessa equação. Castillo, chefe de Estado, já não o era antes mesmo de seu anúncio em 7 de dezembro.
Nesse mesmo dia ocorreu outro evento no Congresso da República. Vinha-se afigurando há meses a terceira tentativa de impeachment por vacância de cargo contra Pedro Castillo. A vacância de cargo é uma figura jurídica amparada na Constituição quando o país está diante de um perigoso vazio que supõe que um presidente pode ser destituído por “incapacidade moral”. O que é “incapacidade moral”? O que o Congresso e, em última instância, a Corte Constitucional – eleita pelo Congresso – decidem. Em um ano e meio de governo, três moções de vacância foram apresentadas contra Pedro Castillo no Congresso. Tudo indicava que esta terceira vez não seria a derradeira e que os votos para inabilitar o presidente não seriam alcançados. No entanto, devido a um desses mistérios ainda não resolvidos, Castillo decide fazer seu discurso e, diante disso, o Congresso, com maioria de direita e com a intenção de destituí-lo antes mesmo que ele assumisse o cargo, teve a desculpa perfeita para prosseguir. Conseguiram os votos, cassaram o presidente e assim iniciaram o processo de sucessão pelo qual assumiu a vice-presidente Dina Boluarte.
Nesse mesmo dia, Dina Boluarte entrou no Congresso da República para se juramentar como presidente enquanto o ex-presidente estava detido. Além das interpretações legais, a verdade é que a baixíssima legitimidade do referido Congresso é a chave para entender por que o anúncio de Pedro Castillo de dissolver o Congresso está vinculado a esse clima de raiva contra uma instituição vista como corrupta e cínica. As demandas para “fechar o Congresso” têm aumentado nos últimos anos e lembremos que quando o ex-presidente Martín Vizcarra fechou o Congresso, viu sua popularidade crescer de forma inédita. Nesse cenário, esperava-se que Boluarte, entendendo a fragilidade da situação, ouvisse a reivindicação e assumisse uma transição que permitisse um avanço eleitoral o mais rápido possível. Mas Boluarte e as forças com as quais hoje co-governa tinham outros planos. Seu primeiro discurso não deixou dúvidas: ficamos todos até 2026. Como se nada tivesse acontecido. Como se Castillo, para além de qualquer juízo político, não fosse um presidente que teve o respaldo de 31% da população e contasse com uma aprovação que cresceu enormemente nos últimos seis meses. Como se também não estivesse claro que o Congresso ao qual Boluarte se dirigia havia tentado tirá-lo do cargo desde o início e que, portanto, havia um Peru semeando indignação ao ver que o voto que exerceu em 2021 poderia ser revertido, caso todos os poderes se unissem para fazê-lo. Mas, ao invés de falar com aquele país que assistia a esta situação tentando entender o que havia acontecido, resolveu-se falar apenas entre aliados. Quem planta chuva, colhe tempestades. E, nesse momento, o pavio foi aceso.
“Eu tenho o presidente”
O historiador peruano José Carlos Agüero soube definir bem o que Pedro Castillo entendia como símbolo. A presidência não é apenas um espaço de poder, mas também um espaço de representação simbólica. Nos países latino-americanos nós o sabemos, em especial. Lembremos, por exemplo, a reivindicação histórica para o povo aimara que significou um presidente como Evo Morales na Bolívia. Da mesma forma, Pedro Castillo também foi uma figura reivindicatória. Numa democracia como a do Peru, uma democracia “formal” que se sustenta em instituições “formais” precárias, mas que não atinge as maiorias, a vitória de Castillo foi, como diria Agüero, uma espécie de “presidente tampão”. Uma forma do povo dizer, a partir da absoluta convicção dessa frase: “vocês têm todos os poderes, mas eu tenho o presidente”. Esse “eu” nos fala desse país majoritário do qual o poder midiático quase nunca fala, muito menos o poder econômico. Esse “eu” nos fala de um Peru majoritário que convive com um Estado que não apenas está ausente, mas também vira as costas a essa maioria. Esse “eu” nos fala desse Peru majoritário que é vítima constante do racismo e do classismo por parte das elites que gozam dessa democracia formal da qual são os únicos protagonistas.
Isso explica porque o Peru é o país da América Latina com mais cidadãos insatisfeitos com sua democracia (LAPOP 2020). O surpreendente seria se o número fosse outro. A democracia peruana há décadas tem apenas uma forma de concretização para a grande maioria do país: o domingo eleitoral. Aquele domingo eleitoral como o único verdadeiro espaço democrático em que, por um dia, um camponês das comunidades altoandinas tem o mesmo poder que um morador de San Isidro, um dos bairros mais ricos de Lima. Aquele domingo em que todos os peruanos no exercício de marcar uma cédula e depositá-la em uma urna são iguais. Isso explica por que, após o segundo turno eleitoral de 2021 – um segundo turno em que todos os espaços do poder peruano se posicionaram a favor da candidata Keiko Fujimori –, eles não conseguiram atingir seu objetivo, o que significou muito mais do que uma vitória eleitoral. Significou uma possibilidade de democracia de outro tipo e deu origem a um outro tipo de pulsão popular que é o que se exige hoje: uma democracia profunda.
Mas, desde então, eles começaram a jogar irresponsavelmente para acender o pavio.
Desde o momento em que Pedro Castillo venceu as eleições, uma série de eventos ocorreram com a intenção de reverter o resultado. Por um lado, os anúncios de fraude da ala perdedora – todos os poderes incluídos–, apesar de observadores internacionais confirmarem que nada houve, demonstrou sua disposição de não aceitar o resultado e, portanto, a presidência de Castillo. Esta estratégia não nos é estranha. Vimos isso antes nos Estados Unidos quando Trump se recusou a aceitar sua derrota, e vimos dias depois com o assalto ao Capitólio o que esses discursos causam. Da mesma forma, vimos essa prática no Brasil, quando Bolsonaro não aceitou os resultados e, mais uma vez, promoveram um discurso antidemocrático que culminou na tomada do Congresso e do STF. Vemos essa estratégia também na ultradireita espanhola, seja através do Vox, de seus veículos de comunicação, ou mesmo do rei Felipe VI, quando se arroga o poder de decidir quais partidos são constitucionalistas e quais não são, e insiste em determinar que o atual governo é ilegítimo. Não apenas a democracia é quebrada nesse discurso, mas a cidadania é convocada a agir de acordo. Na mesma linha, e com o mesmo discurso que já conhecemos internacionalmente, a extrema direita peruana e a direita canibalizada por essa extrema direita insistiram desde o primeiro dia em instalar a ideia de que Castillo não era um presidente legítimo e, portanto, de removê-lo de qualquer maneira era tão necessário quanto urgente.
Foi assim que vimos uma orquestração política – a mais forte que o Peru vivenciou no segundo turno das eleições de 2021. Do “votem em Keiko Fujimori para salvar o Peru” passou para “vamos expulsar Pedro Castillo para salvar o Peru”, que foi protagonizado por passeatas convocadas pelos poderes para exigir a renúncia do presidente. A isso se somam as três moções de vacância promovidas pelo Congresso, as sucessivas censuras de ministros, com os constantes obstáculos ao projetos de lei encaminhados do Executivo ao Legislativo para discussão e aprovação, e tentativas que incluíram inclusive o Ministério Público para encontrar uma forma legal que permitiria que o presidente fosse suspenso com os votos do Congresso.
Nada disso justifica a precariedade do governo Castillo — e também sua responsabilidade nessa dita precariedade. Sua incapacidade de chegar a acordos com forças que ampliassem o espaço da esquerda ou forças de mudança para sustentar sua presidência, sua aposta em fechar seu círculo de confiança de forma irresponsável em termos de gestão ou mesmo sua insistente tática de construir pontes com aqueles que queriam destituí-lo em vez de construí-las com o espectro popular que apoiou seu mandato, o que fez crescer a debilidade do seu governo. No entanto, a gestão de Pedro Castillo não pode ser avaliada isoladamente do contexto vivenciado por seu mandato desde o primeiro minuto da campanha eleitoral, nem aquela mensagem errônea de 7 de dezembro pode ser analisada sem que se entenda todo o contexto que impulsionou um presidente sem ideologia, mas com significativo apoio popular, que precisa ser lida através do significou e ainda significa no Peru hoje: a possibilidade de outra democracia.
Com a saída de Pedro Castillo do Palácio do Governo em 7 de dezembro, com sua rápida prisão, quando todos os outros presidentes enfrentaram vários processos por corrupção no conforto de suas casas, com uma aplicação jurídica questionável sobre o crime de que ele é acusado e que atualmente o mantém preso, com a vergonhosa celebração do Congresso — que, desde o início, procurou governar, quebrando o equilíbrio de poderes e construindo de fato um regime parlamentarista num país que é presidencialista, sob aplausos explícitos e descarados do poder econômico, empresarial, judicial e midiático — acabaram quebrando o precário pacto democrático peruano. O domingo eleitoral deixou de existir como a concretização da democracia formal, embora não real. E quem tinha um presidente se deu conta que os poderes não permitiriam sequer essa possibilidade.
O que está em disputa
Hoje, o Peru mobilizado tem características específicas. É essencialmente rural, meridional, andino. É esse Peru que, como dissemos, conhece o Estado por ouvir dizer e não porque se sinta próximo dele. Ele conhece as desigualdades mais do que ninguém porque sempre sofreu com elas. Sabe da democracia que não existe porque o seu voto não vale o mesmo que o dos outros. Esse Peru mobilizado tem uma lista específica de demandas, apesar de a presidente Boluarte insistir em repetir que “não entende” o que lhe pedem. O Peru mobilizado exige três medidas concretas para iniciar o caminho de saída da crise: a renúncia de Dina Boluarte, por não ser reconhecida como presidente legítima; o fechamento do Congresso; e a antecipação das eleições para nomear novas autoridades o quanto antes. A essas três demandas se soma a grande reivindicação subjacente: a possibilidade de uma nova Constituição. Da mesma forma, não podemos ignorar que há alguns pedidos plurais de menos consenso, mas importantes: a liberdade do presidente Pedro Castillo e, em menor medida, sua reintegração como presidente constitucional.
Apesar de alguns analistas tentarem analisar o cenário como um contexto de polarização onde quem reprime pode ser equiparado a quem protesta, o que estamos vivendo no Peru é uma disputa que, se pensarmos, é fácil de entender. Estamos vivendo a luta entre a possibilidade de uma verdadeira democracia contra a continuação de uma democracia formal onde apenas alguns das elites participam. Ou seja, a possibilidade de uma República plebeia e popular ou a continuação de uma República oligárquica. E também estamos vendo a resposta das elites que não estão dispostas a permitir que essa possível democratização aconteça. Vemos um Peru mobilizado exigindo participar em pé de igualdade em um país que é tão seu quanto de qualquer peruano e, por isso, hoje exige que não apenas seu voto seja respeitado como não o foi em 2021, mas que sua voz tenha outro protagonismo. Pedro Castillo conseguiu, sem querer, virar a mesa das disputas políticas no Peru e, hoje, passamos do desejo de democratizar o poder à oportunidade concreta de fazê-lo.
No entanto, a reação a esse desejo também é muito poderosa. Neste momento Dina Boluarte não governa, mas lidera um co-governo. Um co-governo que se sustenta na repressão das Forças da Ordem. Um governo que precisa de balas para se manter é obviamente insustentável. Um governo com 48 mortes em 39 dias é, no mínimo, indesejável. Mas o co-governo de Boluarte não é apenas um pacto entre ela e as forças da ordem como braço executor das políticas repressivas. Boluarte precisa de uma ampla articulação para se sustentar no poder. Essa mesma articulação que perdeu as eleições de 2021 e conseguiu impor seu golpe em dezembro de 2022. Para isso é essencial o poder político do Congresso, que tem maioria de direita. Ela não governa por eles, mas com eles. O plano de governo, o projeto de restauração do regime da ditadura fujimorista, o terruqueo [método de campanha negativa e racista de espalhar o medo usado por fujimoristas e pela direita peruana] como estratégia para legitimar a eliminação do “outro”, o controle dos órgãos eleitorais por meio de projetos de lei para garantir a vitória nas futuras eleições, etc., são todos passos desse poder que co-governa com Boluarte. Na mesma linha, o poder econômico co-governa para sustentar a arquitetura econômica e fiscal que foi implantada durante a ditadura de Fujimori e que viam que poderia começar a estremecer com o ex-presidente que, infelizmente, também não se esforçou para isso. Por sua vez, o Judiciário participa ativamente do co-governo desenvolvendo ações para garantir a impunidade daqueles que integram as Forças da Ordem e hoje puxam o gatilho contra a população, mas também guilhotinando mais de 50 diretorias em nível nacional que serão encarregas de julgar os que hoje são perseguidos politicamente pelo novo regime de Boluarte. É o Judiciário que protege legalmente a invasão de instalações de partidos políticos de esquerda, da Confederação Camponesa do Peru e a prisão arbitrária de líderes políticos, sociais e sindicais, acusando-os de terrorismo. Essa perseguição política é o braço judiciário que, como dizemos, co-governa com Boluarte. E, claro, não poderia faltar o poder da mídia. Ela é a principal porta-voz da narrativa do governo e se encarrega de divulgar a estratégia do terruqueo: por um lado, equipara os que protestam com reivindicações passíveis de discordância com os repressores que apontam armas diretamente para os corpos desses mesmo manifestantes, como se pode verificar em imagens só acessíveis nas redes sociais – fato também apontado na coletiva de imprensa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O poder da mídia se encarregou de tornar invisíveis por anos as vozes daqueles que protestam hoje e continuarão a fazê-lo. Os números dos mortos, seus rostos, seus nomes ou seus lugares de origem não podem ser vistos nas grandes redes de televisão ou nas primeiras páginas dos jornais. As reivindicações dos que protestam e caminham em direção a Lima também não são lidas nem ouvidas porque pensam que essa é a única forma deles se fazerem ouvir. Pelo contrário, são descritos como “terroristas”, os seus pedidos são ridicularizados, são discriminados de forma racista e classista, quando não são completamente invisíveis porque nem sequer são considerados cidadãos. Quando as marchas foram organizadas contra o governo de Pedro Castillo, vimos exibições ao vivo nas mídias que compõem o oligopólio midiático peruano. Hoje só temos as redes sociais para ver o cortejo fúnebre dos 17 mortos em Puno, como o enterro em Cusco de um líder como Remo Candia e buscamos na internet informações corajosas que falam sobre os 10 mortos em Ayacucho, onde a repressão se iniciou com particular crueldade.
Vivemos, então, um co-governo de múltiplos atores que, após o regime fujimorista, mantiveram suas cotas de poder na arquitetura do poder peruano que construiu uma aparência de democracia formal sobre as bases que a ditadura deixou bem amarradas. Mas hoje, depois do medo de perder até isso, eles restauraram seu poder e estão apertando os passos para evitar que alguém possa tentar mudá-los de novo.
Muitas vezes, diante da pergunta, o que está acontecendo no Peru? Respondi com a frase “é complexo” antes de começar a explicar o que tentei sintetizar nestas linhas. Hoje, porém, acho que explicar o que acontece é realmente muito simples. O que estamos vivendo é uma disputa por uma democracia profunda e real que inclua todos em igualdade de condições, ou a manutenção da democracia formal com um verniz de continuidade que, na verdade, exclui maiorias. Nem mais nem menos. Esse anseio por uma democracia real, popular e plebeia está hoje liderando a transformação em um país cuja classe política nunca conseguiu liderar esse compromisso. É o povo, com a sua desordem, mas também com sua espontaneidade e energia guerreira, que vai abrindo o caminho e cabe-nos ouvir e, acima de tudo, acompanhar e saber apoiá-lo com tudo o que temos. A disputa subjacente é sobre a democracia e, portanto, deve ser fácil para qualquer democrata se posicionar. No país de todas os sangues, muitas deles antes desconhecidos, hoje finalmente abrem-se caminho como o rio Pachachaca, como águas vitoriosas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário