Ponto Newsletter
por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile
A queda do Céu
Militares, multinacionais e fome. A tragédia Yanomami é a justa medida do país que Lula encontrou no primeiro mês de governo.
.A solução final bolsonarista. A palavra genocídio não existia antes do final da segunda guerra mundial, quando foi preciso definir o tipo de crime cometido pelos nazistas: o extermínio planejado de um povo. E é muito difícil encontrar outra palavra para definir a situação de desnutrição crônica e epidemia de malária que atinge os 30 mil habitantes da Terra Indígena Yanomami, incluindo 5 mil crianças. A fome e as doenças são causadas pela presença de 20 mil garimpeiros ilegais, que contaminam os rios e o solo com mercúrio, provocam a fuga de animais e impedem o acesso aos postos de saúde e serviços do Estado. Em 2018, o garimpo ilegal já havia destruído 1.200 hectares do território, marca que atingiu 3.272 hectares três anos depois. A ação beneficia diretamente bancos e fundos de investimentos internacionais, além do tráfico de drogas, apontados como financiadores do garimpo ilegal. Mas não teria sido possível sem a omissão planejada pelo governo Bolsonaro: além de regularizar o garimpo ilegal no território, ignorou os alertas sobre a crise humanitária, inclusive da ONU e desmantelou a FUNAI. Indícios suficientes para as investigações da Polícia Federal e do STF sobre a omissão do antigo governo no episódio. A postura não é surpreendente. Quando deputado, Jair Bolsonaro tentou por quatro vezes extinguir a reserva. Ela também é coerente com a sua origem: a ideia de que os Yanomamis não existem ou são venezuelanos, teoria popular nas redes bolsonaristas, foi criada e difundida pela Biblioteca do Exército. Mas não é apenas a ideologia que justifica a omissão do Exército. Segundo reportagem da Folha, além do parentesco com militares, os garimpeiros subornaram e compraram a cumplicidade de soldados, que permitiam a circulação de drogas e de ouro, em troca de propina.
.Um mês de 365 dias. A crise humanitária da Terra Indígena Yanomami foi decretada na terceira semana do mandato. No oitavo dia, o governo enfrentou a intentona militar bolsonarista. Sem ter completado um mês à frente do Planalto, o desafio de Lula é retomar a ofensiva da pauta política. A questão militar ainda não foi resolvida, mas pode ter arrefecido com a demissão do general Júlio César de Arruda, omisso com os golpistas e que havia protegido o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e operador do caixa dois de Bolsonaro com o cartão corporativo. A ação de Lula foi interpretada como uma “posse” de fato no cargo de comandante em chefe das Forças Armadas, gostem elas ou não. Nos próximos dias, o governo deve anunciar ainda um “pacote da democracia”, propondo a criação da Guarda Nacional e combate ao conteúdo antidemocrático nas redes sociais. Já o novo comandante do exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, assume com a tarefa de pacificar as tropas, sinalizadas no discurso sobre aceitar o resultado das eleições dias antes da nomeação. Paiva, porém, tem caminhos espinhosos pela frente: a decisão de qual Corte julgará os militares participantes dos atos terroristas, a Justiça civil ou militar? Além disso, em fevereiro, o Alto Comando do Exército decide as promoções de cerca de trinta oficiais, incluindo o posto máximo de general de quatro estrelas. Os oficiais bolsonaristas serão preteridos ou promovidos normalmente?
.O último acampamento em Brasília. Lula precisa encerrar o assunto militar para concentrar sua energia em outro problema que ameaça a estabilidade do governo: a recessão. As estimativas do mercado financeiro são de que o país tenha crescimento zero no segundo e terceiro semestre e negativo no fim do ano. A pedra no caminho para recuperação da economia chama-se Banco Central, presidido pelo ultraliberal Campos Neto, último bolsonarista a deixar o governo daqui há dois anos. Lula insiste na redução da taxa de juros para estimular a economia, o BC é contra. Um cenário assustador quando os mesmos juros turbinam as dívidas de 77% dos brasileiros. Diante do impasse, restaria ao governo duas opções: ou aumenta a meta de inflação para o ano, para obrigar o BC a frear o aumento dos juros, ou se compromete com uma política de ajuste fiscal e cortes duros. A outra aposta de Lula, sem depender do BC, é reajustar o salário mínimo e a bolsa família, junto com um programa de renegociação para os endividados. E descascar o abacaxi dos preços dos combustíveis. Parte da boia de salvação da economia brasileira nestes quatro anos depende também da retomada da ofensiva diplomática. Em poucos dias, Lula se encontrou com o presidente argentino Alberto Fernandez, mirando a exportação de produtos industrializados brasileiros para o vizinho. A ideia de uma moeda única - que até o momento é apenas isso: uma ideia - monopolizou as manchetes no dia seguinte. Já no encontro com o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, Lula tentou fortalecer o Mercosul e a União Europeia, tentando convencer o colega a desistir de um acordo de livre comércio com a China. Por enquanto, Lula foi bem sucedido em recuperar seu posto de liderança regional. A prova de fogo será em março, no primeiro encontro com Joe Biden.
.Ponto Final: nossas recomendações.
.Americanas: Para cada fraude empresarial que vem à tona há duas invisíveis. Em entrevista para o UOL, o professor da Universidade de Toronto Alexander Dyck revela como as corporações escondem suas fraudes.
.Déficit racial: por que é tão difícil ser um economista negro no Brasil. Com racismo e sem cotas, o árduo caminho para formar economistas negros no país.
.Avanços do feminismo garantiram socorro à vítima de Daniel Alves. A Rede Brasil Atual explica o que é e como funciona o protocolo catalão No Callem.
.A destruição cultural bolsonarista. Apagar a história e destruir a arte é parte do projeto político bolsonarista, escreve Tings Chak, do Instituto Tricontinental.
.Quando a saúde faz parte da aldeia. Infraestrutura e atendimento humanizado, o exemplo bem sucedido de acesso à saúde pelo povo Zo’é, no Pará.
Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.
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