sábado, 9 de julho de 2022

"O IFood mentiu sobre mim"

 

Sábado, 9 de julho de 2022O iFood mentiu sobre mim

A empresa diz que CPI dos apps 'me infiltrou' em visita à sua sede.

Em 12 de abril passado, fui a Osasco pela segunda vez em 2022. Vizinha a São Paulo, a cidade abriga hoje as sedes de grandes empresas de aplicativos como Uber, 99 e iFood. Elas são investigadas pela  CPI dos Aplicativos, da Câmara Municipal de São Paulo, que acompanho de perto desde o começo, em 2021. Naquele dia de abril, os vereadores realizavam uma diligência no iFood para analisar a infraestrutura física e as operações da companhia.Eu já havia acompanhado a primeira diligência realizada pelos vereadores, em 29 de março, na Uber. Daquela vez, teve confusão, horas de espera, a imprensa foi proibida de subir e um atrito se criou entre vereadores de Osasco e de São Paulo. No iFood, foi diferente. A diligência não foi uma surpresa para a companhia, que havia combinado com a comissão o encontro e já a esperava quando chegamos lá. Peguei carona até a sede da empresa em um veículo funcional da Câmara e conversei sobre os trabalhos da CPI, durante os cerca de 30 minutos da viagem, com um funcionário da casa.A calçada defronte à sede da empresa estava tomada por entregadores, que faziam uma manifestação, acompanhados do sindicato que representa a categoria. Um a um, parlamentares e assessores, além da equipe de jornalismo da TV Câmara, passaram por uma guarita onde crachás com seus nomes os aguardavam e entraram no complexo.Eu fiquei para trás. Os nomes nos crachás haviam sido enviados por alguém da Câmara à empresa, em uma espécie de credenciamento prévio. Eu, é claro, nunca fiz parte da lista, que continha apenas nomes de funcionários públicos. Assim, me identifiquei e entreguei meus documentos à pessoa detrás do vidro escuro da guarita – meu RG e o crachá me identificando como repórter do Intercept. Cinco minutos depois, recebi um cartão e a liberação para entrar na empresa.Atravessei um grande gramado e alcancei o resto do grupo, parado em frente às motos elétricas recém-apresentadas pelo iFood e estacionadas ao lado do ambulatório exclusivo dos funcionários da empresa. Ali, me posicionei atrás das câmeras de TV e fui abordado pela assessora de imprensa da companhia. Ela me perguntou quem eu era, o que fazia e me pediu para não fazer filmagens para não expor indevidamente funcionários. Eu garanti que não o faria. Ela aproveitou, salvou meu número de telefone, e me mandou uma mensagem para que eu salvasse o dela. Está tudo aqui até hoje.Nada do que aconteceu na diligência me chamou a atenção. O iFood tentou se mostrar uma empresa moderna, preocupada com a sustentabilidade e colaborativa com o trabalho de investigação da CPI. Funcionários de diferentes áreas acompanharam a comitiva e mostraram o escritório, as salas de reunião e o terraço com horta urbana. Na hora de conversar sobre a denúncia de que o iFood tentou desmobilizar movimentos de entregadores por meio de agências de publicidade, no entanto, os parlamentares foram levados para uma sala fechada com representantes da empresa – e eu, que havia passado a visita conversando com funcionários da Câmara e da Prefeitura de São Paulo, fui colocado em uma sala de imprensa.Esse é um momento importante. A assessora de imprensa sabia quem eu era e onde eu estava o tempo todo, já que esteve sempre por perto. No fim da diligência, foi ela quem me levou à sala de imprensa e me ofereceu café, refrigerante e água. Trocamos uma conversa e até algumas risadas.Me surpreendeu, então, quando fui informado, algumas semanas após a visita, que o iFood encaminhou à Câmara de São Paulo um ofício sobre a diligência em que me cita diretamente – e mente.No capítulo intitulado "Da presença não autorizada de jornalista do The Intercept na diligência", a empresa diz "ter tomado conhecimento" que eu adentrei as dependências de sua sede "em conjunto com os membros da CPI", inclusive sem me "identificar como membro da imprensa". Não é verdade. A empresa permitiu a minha entrada. Sem pressão externa, foram os seguranças, porteiros e demais funcionários do iFood que me garantiram acesso ao complexo para acompanhar a visita da CPI em Osasco.O ofício ainda insinua que agi de má-fé ao esconder minha profissão ou o lugar onde trabalho. Meu crachá, com uma foto bem grande, um igualmente grande logo do Intercept e a palavra IMPRENSA em letras garrafais, foi entregue na portaria com meu documento de identidade. Não bastasse, me identifiquei à assessora de imprensa da companhia, que fez questão de registrar, no WhatsApp, que havíamos acabado de ser apresentados.O iFood disse, no ofício, que "repudia veementemente" o ocorrido e que, devido ao "acesso não autorizado", a companhia foi exposta ao grave risco de vazamento de informações confidenciais sobre sua operação. Mas, de tão protocolar que julgamos a diligência, o Intercept sequer publicou nota ou reportagem sobre a visita. 

Não é jornalismo relevante, para nós, paparicar a empresa por manter uma horta urbana no terraço enquanto seus entregadores passam fome ou louvar as motos elétricas que ela quer vender aos entregadores. A única pergunta que eu me importava ver respondida era "por que os entregadores que estão se manifestando na porta não puderam entrar?". 
Quase três meses após aquele dia, ela segue sem resposta. 

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