Imagem: Maddy Mazur por PixabayA revolução chegou, sugere o doutor em Economia Cédric Durand, só que acabou sendo realizada pelo capitalismo com suas fortalezas digitais. Quando Karl Marx escreveu O Capital, submeteu a dinâmica mercantil a uma pergunta ontológica: Por que a mercadoria tem valor?, que era o núcleo de uma trama que fez de sua análise do capitalismo uma estratégia para pensar sua derrubada. A resposta foi que o valor da mercadoria se fundava no tempo de trabalho humano acumulado.
Hoje, o economista francês realiza uma operação quase idêntica em seu livro Tecnofeudalismo. Crítica de la economía digital (Editora La Cebra). Esse professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales explica como a captura de dados e a posição monopólica das plataformas digitais funcionam como uma fonte de valor.
Mas a audácia maior de sua proposta está na caracterização dessa etapa econômica como “tecnofeudal”. Ao imaginário do mundo virtual, repleto de uma linguagem futurista, Durand acrescenta uma palavra ligada à precariedade técnica, anterior às transformações democráticas que implementaram a noção de cidadania.
Nesse reinado feudal do algoritmo, não há intimidade a ser protegida, nem vontades que não possam ser antecipadas. O comportamento humano está preso à sua gleba. Mas, talvez, isso seja apenas uma hipótese, uma tendência do que poderia ocorrer caso essa máquina de captura, unida ao crescimento financeiro, conseguisse fazer dessa variante do capital abstrato, quase onisciente, um poder capaz de fragilizar e deslocar os estados-nação.
Para Durand, que é um dos principais representantes da escola marxista de economistas franceses, “o futuro depende da mão invisível do algoritmo” e com esta ideia, que dialoga com Adam Smith, sintetiza a mutação do capital. Sua compreensão não se limita a uma instância descritiva. Tanto no livro como nesta entrevista, dada de Paris por uma plataforma de videochamada, expõe seus planos para intervir sobre os feudos digitais e torná-los bens públicos. Socializá-los, como se fossem cortadas a cerca de arame desta infinita terra virtual.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín–Revista Ñ, 20-08-2021. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você compara o Consenso de Washington, que no início dos anos 1980 impôs a crença na eficácia do mercado, com uma nova visão política conhecida como Consenso do Vale do Silício, que agora postula o mantra inovação, empreendedorismo e economia. Podemos pensar que seus promotores são os verdadeiros autores do que entendemos hoje por neoliberalismo?
A economia digital não é apenas uma questão de tecnologia. É também uma questão de instituições, de regras, de funcionamento da economia. É uma questão de política. A realidade é que, além do Consenso de Washington, o desenvolvimento da economia digital foi apoiado pelas regras que falavam em dar aos empresários o estímulo para fazer inovações e esse ponto é muito importante porque significa duas coisas.
A primeira é que no Consenso do Vale do Silício se diz que é preciso privatizar os conhecimentos, o que significa endurecer a propriedade intelectual. E, por outro lado, baixar os impostos sobre o capital para estimular a inovação. São empresas que não teriam conseguido crescer sem o apoio do Estado. Todas as inovações da Apple são o resultado de dinheiro público, especialmente de uma das agências do Pentágono.
Essa dimensão política também implica que toda essa arquitetura digital pode deslocar a instituição do Estado ou gerar uma estrutura equivalente?
Essa é uma perspectiva de longo prazo. Se nada mudar (embora isso nunca aconteça na história), a tendência é que esses monopólios digitais, poderosos o suficiente para ter a capacidade de entender o funcionamento da sociedade, tenham a possibilidade de ter um papel muito político. Não somente na ideia de controlar e processar a informação.
Sabemos que o Facebook e o Twitter agora determinam o que pode e não pode ser dito, desempenhando um papel de reguladores, mas também vimos durante a pandemia de que forma os dados do Google, em termos de mobilidade (se as pessoas estavam nas ruas ou no trabalho), foi uma informação muito importante para decidir as políticas de saúde. De fato, trata-se de um tipo de informação que é muito importante para saber de que modo a sociedade se movimenta. O Estado não a possui, enquanto que essas empresas sim.
Quando se analisa o que está acontecendo nas redes sociais, com o tipo de busca que as pessoas fazem no Google, sabe-se muito do que está ocorrendo na sociedade e, por essa razão, essas empresas têm a possibilidade de entender mais e melhor do que os poderes políticos. É por isso que podem se tornar órgãos políticos.
Quem é o primeiro contratante do Departamento de Migrações dos Estados Unidos? A resposta é Amazon. Na China, também há uma hibridização entre essas empresas de tecnologia e as instituições públicas. Por isso, a pandemia gerou uma aceleração desse processo de centralização do poder econômico nas mãos da instância digital.
Nessa captura de dados, ocorre uma apropriação de todo o nosso tempo. Tudo o que fazemos no mundo digital vira mercadoria?
Há muitos debates a esse respeito. Minha opinião é que, ao contrário, há na economia digital uma grande dificuldade em construir mercadoria. Por exemplo, quando alguém usa o Google, a priori não há mercadoria. De fato, o Google precisa buscar uma forma de ganhar dinheiro e a encontrou, mesmo que de modo indireto.
Parece-me que, ao contrário, o que está acontecendo é que existe um tipo de socialização dos meios de comunicação que está na coordenação da atividade. Para que esses sites funcionem bem, precisam ser utilizados por muitas pessoas e não é possível fazer com que elas paguem por isso. Não são mercadorias naturais, mas nesse poder social de coordenação existe um lugar para essas empresas, que pode ser utilizado para ganhar dinheiro em relação aos produtores de mercadoria.
Por exemplo, no Google, ganha-se muito dinheiro quando se vende publicidade, mas, neste caso, o que eles fazem é um controle da coordenação social e é isto que explica que sua valorização seja gigante, porque o que se vê aqui para o futuro é uma capacidade de controle sobre a economia. Mas é mais uma lógica de depredação do que de mercadoria tradicional. Há uma industrialização da coordenação social e aqui se constrói uma capacidade de controle.
Você propõe democratizar os dados. Como seria esse procedimento?
Considero que os poderes políticos devem decidir o que é aceitável nos efeitos produzidos por esses processos digitais de organização da economia. Então, é preciso controlar os algoritmos em termos legais. Não simplesmente abri-los, porque são muito poucas as pessoas que conseguem entendê-los, mas é necessário verificar para que os algoritmos não aumentem as discriminações ou não aumentem a degradação da saúde dos trabalhadores, porque sabemos que são realmente dispositivos muito poderosos.
A segunda coisa tem a ver com a capacidade de centralizar os dados, porque o primeiro a centralizar os dados tem uma vantagem sobre o restante e será muito difícil para os outros conseguirem competir. Isso também é um problema diante das possibilidades de se construir políticas sociais para um Estado ou uma região.
É preciso colocar os dados em comum. O que significa isto? Significa que as empresas podem controlar seu algoritmo, mas não podem ficar com os dados individuais das pessoas. Considerar os dados um bem comum implica a possibilidade de utilizá-los para outros serviços. É uma forma de quebrar o monopólio intelectual dos gigantes digitais.
É justamente por essa centralidade dos dados que muitas plataformas alternativas fracassam?
É verdade que temos novos recursos para atuar, mas o problema é que para ter mais possibilidades, precisamos centralizar os dados. Como se alcança essa centralização? É o resultado dos dados fornecidos por cada um de nós e esses dados nos retornam por meio das plataformas sob a forma de informações úteis.
Não está muito claro de onde vêm as informações que encontramos no Google, mas é a junção das informações que vão incorporando conosco. O problema é que se construirmos um novo serviço ou plataforma alternativa, se começarmos com muito poucas pessoas, não será útil porque a informação que podemos dar de retorno é muito pobre.
É por essa razão que é tão importante que os dados sejam comuns, porque assim seria possível construir outras plataformas que se beneficiariam da escala de informações que já foram construídas para gerar efeitos úteis que não estejam necessariamente orientados do mesmo modo que as plataformas centrais.
Tecnofeudalismo é o nome que confere a um processo revolucionário dentro do capitalismo. Considera que é difícil para a esquerda enxergar essa capacidade de transformação do capitalismo?
Existe uma tradição desde Marx que entende que há um processo revolucionário dentro do capitalismo. O problema é que esse movimento revolucionário pode ser muito destrutivo. Muda muito, muda rapidamente, mas isso não significa que mude para melhor. De certa forma, a tese do livro é que pode mudar de forma regressiva.
Temos que nos perguntar o que está acontecendo com os algoritmos. Do que se trata? Não é realmente um mercado, não é o Estado. É uma nova maneira de coordenar a atividade econômica. Agora temos uma crise econômica muito forte e é preciso pensar de que maneira sistêmica é possível incorporar os algoritmos na coordenação cotidiana da vida social.
Devemos construir um novo modelo de coordenação da atividade econômica. Quem irá governá-lo? Quais serão os princípios? Que tipo de intercâmbio internacional é possível construir? Quando escrevo, no final do livro, que “o futuro depende da mão invisível do algoritmo”, quero dizer que temos que investir politicamente, criativamente, nesse novo meio de coordenação.
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