sábado, 25 de fevereiro de 2023

The Intercept_Brasil: A tragédia não será anunciada.

 

Sábado, 25 de fevereiro de 2023A tragédia não será anunciada

As seguidas omissões que levaram ao desastre no litoral paulista.

Certa vez, em 2012, eu estava em Nova York a trabalho e fui passar uns dias na casa de uma amiga, mas a viagem foi interrompida por um furacão. Dois dias antes da passagem do Sandy, como foi batizado, já estávamos comprando comida e água e assistindo à TV, que emitia alertas 24h. O clima era de tensão. "Hope for the best, prepare for the worst" (espere o melhor, se prepare para o pior), disse o apresentador na televisão, em uma frase que jamais esqueci.Passamos dois dias em casa à espera. Perto de onde estávamos, um bairro de classe média, árvores caídas e casas destelhadas. Onde estávamos preparados, não havia inundação, desabastecimento e destruição como previsto. Longe dali, porém, os estragos foram imensos – 18o vítimas, a maioria pessoas pobres nos EUA e também no Haiti. Lembrei dessa história ao ver um tuíte do jornalista Pedro Burgos criticando a maneira como os alertas foram ignorados pela mídia paulista. Nenhuma manchete, nenhum sinal, nada indicava uma tempestade e tragédia daquela magnitude no litoral norte de São Paulo no sábado de carnaval. Na GloboNews, o apresentador ainda mandou um "não se assuste, continue animado, vai dar tudo certo" ao mencionar o ciclone extratropical que se aproximava. "Esse mapa não vai nos atrapalhar nesse carnaval. Isso aqui é tudo chuva". Não era apenas chuva. Era um evento climático extremo, que matou pelo menos 50 pessoas, desabrigou mais de 700, e explicitou o apartheid do litoral paulista (e do Brasil, onde a história segue se repetindo). Do lado do mar, a tempestade destruiu, sim, mas nada se compara com o que aconteceu na subida das encostas, do outro lado da BR-101, onde a população pobre que trabalha no turismo é empurrada pelo alto preço dos terrenos. Barra do Una, Barra do Sahy, Cambury, Boiçucanga, todas aquelas praias têm a mesma dinâmica de ocupação, em um processo que dura décadas e continua acontecendo, atravessado por diferentes governos e prefeituras.O Ministério Público de São Paulo avisou que as ocupações irregulares, especialmente a Vila Sahy, epicentro do desastre, eram uma tragédia anunciada. A prefeitura culpou as gestões anteriores e disse não ter recursos para regularizar todas as ocupações. Qualquer um que já visitou aquelas praias – cheias de condomínios de luxo – pode imaginar que recursos não deveriam ser o problema.O prefeito de São Sebastião, o tucano Felipe Augusto, ainda contou que até tentou fazer um projeto de moradias populares em Maresias, mas o plano afundou após protestos dos moradores. A justificativa da Sociedade Amigos da Praia de Maresias era que o local não tinha saneamento básico. Fábio Wajngarten, ex-ministro da Secom de Bolsonaro – e proprietário de uma casa lá  – era um dos presentes na reunião. Na quinta, os moradores rebateram o prefeito, e criticaram a tentativa de jogar a culpa nos "ricos".Mas a culpa, na verdade, está sobrando para os pobres. "Muitas áreas de risco são ocupadas com apoio de candidatos a prefeito e vereador que manipulam os mais pobres prometendo regularização futura em troca de votos na sua eleição", tuitou Ricardo Salles, ex-ministro de Meio Ambiente de Bolsonaro e ex-secretário de Meio Ambiente de São Paulo (foi um posicionamento semelhante ao que ele fez na tragédia de Petrópolis, só para registro).A visão classista do ex-ministro ignora todo o processo de ocupação daquele trecho do litoral, que ele deveria conhecer bem. E ignora também o processo de eventos climáticos extremos, que sempre atingem de forma mais dura a população mais pobre e negra. E continuarão atingindo, se não houver políticas perenes de habitação segura para essa população. No caso da tragédia de sábado, não foi só o Ministério Público que havia avisado. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas já havia feito um relatório emitindo alerta para casas em locais de risco. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais também avisou que a chuva tinha potencial catastrófico. A Defesa Civil também emitiu alertas ao governo estadual e à prefeitura. Quem se importou? Tarcísio emitiu alertas via SMS para a população avisando sobre "chuvas isoladas com ventos e raios" – e os avisos chegaram apenas a pouco mais de 10% dos moradores. A prefeitura de São Sebastião só publicou algo nas redes sociais no domingo às 7h, quando pessoas já estavam soterradas. A mídia? Nada que indicasse a calamidade antes dela acontecer. Quantas vidas poderiam ser salvas se houvesse alertas efetivos, abrigos, uma Defesa Civil preparada, uma política para evitar turismo naqueles dias?Foi a maior tempestade da história, sim, mas o desastre em São Sebastião não foi culpa apenas da chuva. Como quase toda grande tragédia, teve uma cadeia de omissões e irresponsabilidades. E não foi um evento isolado. Quem vai morrer da próxima vez que escrevermos "tragédia anunciada" em uma notícia de jornal?

Tatiana DiasEditora Sênior

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