O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
A crise de 2007-2008 com as "políticas de rigor" e "reformas estruturais" fez cair a máscara à social-democracia. (…)
A soberania dos mercados sobrepõe-se à dos povos
Cédric Durand
1 – Natureza do capital fictício.
3 – A vingança dos rentistas
4 – Uma transferência de riqueza organizada a nível global
A soberania dos mercados sobrepõe-se à dos povos
Cédric Durand
1 – Natureza do capital fictício.
A austeridade já tem
sido considerada como o "vírus capitalista". É uma imagem. Na realidade,
trata-se do remédio errado, como uma seringa infetada. O capitalismo
está de fato atacado de uma doença letal: o capital fictício. Sem
eliminar este "vírus" nenhum remédio será verdadeiramente eficaz. É isto
que Cédric Durand nos evidencia.
A importância deste
livro reside na análise de um tema fundamental do marxismo, o capital
fictício, aliado a uma linguagem simples, mas absolutamente rigorosa e
factual, em que os dogmas do neoliberalismo são totalmente desmontados.
Só a escandalosa censura existente impede a divulgação e discussão
destas análises até nas universidades.
A natureza do capital
fictício reside em que os títulos financeiros são apenas promessas de
valorização real, o que destrói o mito da autonomia do sistema
financeiro como variável determinante do sistema econômico. O capital
fictício é uma ilusão e um desvio de recursos. (p. 56, 57) Tem
consistido no aumento vertiginoso da quantidade de valor validado por
antecipação à produção de mercadorias. (p. 90)
O capital fictício, é
de fato um produto de contradições econômicas e sociais insolúveis. (p.
7) Encarna valor, mas não resulta da produção de valor, resulta de
transferências de rendimentos a partir de atividades produtivas, isto é,
rendimentos do trabalho e lucros tirados da produção de bens e
serviços. (p. 105)
Marx identifica três
formas de capital fictício: a moeda crédito, os títulos de dívida
pública e as ações. Cédric Durand desenvolve este conceito aplicando-o à
realidade atual, apresentando-o como uma apropriação da mais-valia
produzida na esfera produtiva, desmontando o aparente enigma dos lucros
sem acumulação, resultantes das operações financeiras e do controlo das
redes produtivas internacionais. (p. 178)
Podem ser
caracterizados como lucros financeiros os juros, os dividendos e as
mais-valias realizadas com a venda de ativos. Como fontes dos juros
distinguem-se os resultantes do endividamento das famílias para terem
acesso ao consumo (lucros de alienação); os resultantes do endividamento
das empresas, que se tornam críticos nos períodos de crise; os lucros
políticos de dívida pública. (p. 106-112)
São também fontes de
lucros financeiros a atividade como intermediários; o chamado lucro dos
fundadores (diferença entre o preço dos ativos e valorização no mercado
bolsista); os lucros políticos obtidos com recapitalização,
nacionalização dos prejuízos, benefícios fiscais, etc. (p. 119, 123)
Nos EUA a parte do 1%
mais ricos na detenção de dívida pública passou de 16 para 40% entre
1970 e 2010. Em 1970 a dívida dos 11 países mais ricos representava 30%
do PIB, em 2012, nos EUA 114%, no Reino Unido 137%. O valor financeiro
obtido por antecipação do processo de valorização futura não cessou de
aumentar (p. 75)
Um estudo sobre
subvenções públicas implícitas nos lucros das grandes instituições
financeiras concluía que existia uma subvenção implícita de 233 mil
milhões de euros em 2012, 1,8% do PIB da UE e montantes da mesma ordem
desde 2007. Sem isto os bancos registrariam prejuízos consideráveis. Os
seus lucros são portanto subvencionados. A privatização dos benefícios
das atividades financeiras é, pois, perfeitamente ilegítima. (p. 122)
2 – A financeirização e os "mercados eficientes"
A liberalização
financeira conduziu à alta dos lucros financeiros, donde a uma taxa
mínima de rentabilidade nos investimentos, ao aumento dos dividendos
entregues aos acionistas, à diminuição dos lucros retidos pelas empresas
e consequentemente ao abrandamento da acumulação, à sobreprodução e ao
desemprego. (p. 154) A financeirização não conduziu (como propagandeado)
ao aumento do investimento, ao "crescimento e emprego", mas ao seu
declínio (p. 50). Os países da OCDE de rendimento elevado detinham em
1990, 80% do PIB mundial, em 2012 reduzira-se para 61% (p. 8, 9).
Numa estrutura Ponzi
(especulativa) o fluxo de rendimento acaba por não permitir reembolsar
nem os juros nem o principal da dívida. Por conseguinte, o endividamento
não pode senão aumentar e conduzir a falências (p. 40). Algo de
semelhante se passa com os Estados. Heyman Minsk passou a maior parte da
carreira a defender a tese de que os sistemas financeiros estão por
natureza sujeitos a acessos especulativos. Foi considerado um "radical"
(p. 37).
O otimismo na
financeirização, ao qual não foram poupados os reguladores, levou ao
abrandamento das normas prudenciais e à desregulamentação, potenciando
os riscos. O paradoxo da intervenção pública como tem sido realizada
consiste em que os operadores financeiros são tanto mais inclinados a
assumir riscos quando sabem que o banco central tudo fará para impedir o
risco sistêmico de se concretizar (p. 42, 43).
Os defensores da linha
de Hayek de que o mercado é um processo de revelação de conhecimento
disperso aplicável aos mercados financeiros, negligenciam a dinâmica da
criação e preservação do capital fictício e os efeitos de distorção de
informação que daí decorrem (p. 138). O que conduz a má apreciação dos
riscos e más decisões de investimento. Desde 1980 a desregulação
financeira, criou períodos de expansão financeira que terminaram sempre
em crise (p. 45).
O capital fictício é
tanto um acelerador do desenvolvimento capitalista como fator de crises,
esta ambivalência dá aos seus zeladores no dizer de Marx "o caráter
híbrido de escroques e profetas". (p. 63) Grandes bancos manipularam em
seu benefício durante mais de duas décadas as taxas Libor e as taxas de
câmbio das principais moedas. A procura do desempenho a qualquer custo
teve como corolário a fraude, a vigarice. "Os delitos estão presentes
desde sempre no mercado e raramente são objeto de procedimento judicial"
(B. Madoff, ex-presidente da NASDAQ) (p. 17).
A Golman Sachs que
reconheceu ter cometido práticas fraudulentas, teve em 2010 uma multa de
550 milhões de dólares, cerca de 14 dias dos lucros desse ano (p. 19).
Os sistemas de crédito paralelo contornam as normas sobre reservas
obrigatórias, representam canais de difusão das crises a que as
avaliações das agências de rating acrescentam riscos (p. 82).
A legitimação do
liberalismo financeiro foi apoiada por economistas e universitários.
Larry Summers [1] havia recebido 20 milhões de dólares em anos em que
defendeu incansavelmente o liberalismo financeiro. Verificou-se que 19
eminentes universitários diretamente implicados nas reformas financeiras
estavam também ligados ao sector privado sem nunca o terem declarado
(p. 33).
Como aprendizes de
feiticeiro os agentes financeiros foram apanhados na sua própria
armadilha e não anteciparam o desastre. Porém (para eles) tudo continua
como se nada se tivesse passado, continuando a serem considerados
racionais e oniscientes, A cegueira ao desastre e ao conformismo dominam
o sistema financeiro (p. 24).
3 – A vingança dos rentistas
O aumento dos lucros
financeiros poderia sugerir que a vingança dos rentistas era a
explicação para o paradoxo dos lucros sem acumulação. Porém as (grandes)
empresas também obtiveram rendimentos crescentes das suas atividades
financeiras (p. 158). No entanto, em prejuízo da sua atividade
produtiva, em detrimento do "crescimento e emprego", a fórmula com que a
direita e a social-democracia procuram iludir as camadas proletárias.
A reconfiguração do
tecido produtivo alinha-se em função do interesse dos acionistas em
termos de rendimento em curto prazo. Consiste em "reestruturar e
distribuir", isto é reduzir o emprego e separar-se de atividades menos
rentáveis, estabelecendo subcontratos. O reforço do poder dos acionistas
e a globalização afetou negativamente o investimento estabelecendo uma
norma de rentabilidade mínima aquém da qual os projetos produtivos são
eliminados. (p. 170) Esta reconfiguração visa libertar mais-valias
bolsistas e dividendos, mais que o aumento da eficiência econômica,
modificando a relação de forças entre acionistas, gestores e
trabalhadores (p. 158, 159). É uma lógica predadora: trata-se de
garantir que o capital fictício seja sempre convertível em dinheiro,
isto é, bens e serviços (p. 188).
Nas vésperas da crise
atual, 147 sociedades controlavam 40% do valor do conjunto das TN, sendo
elas próprias dominadas por 18 entidades financeiras (p. 114).
Estabelece-se uma hierarquia de capitais, na qual os centros
capitalistas diretamente ligados aos mercados financeiros dispõem de um
poder de mercado que lhe permite transmitir os choques conjunturais às
empresas da periferia com o objetivo de atingir e ultrapassar os
rendimentos garantidos aos acionistas. A pressão traduz-se na degradação
das condições salariais (p. 163).
O parasitismo dos
países mais avançados estabelece como que um tributo aos países mais
fracos, sob a forma de produtos, recursos naturais e lucros,
verificando-se naqueles países uma parte crescente de lucros recebidos
do estrangeiro (p. 181). Porém, simultaneamente cresce o peso de
atividades cuja dinâmica tende a reduzir-se, crescendo aquelas em que a
produtividade estagna (p. 173).
4 – Uma transferência de riqueza organizada a nível global
Os grandes bancos de
investimento e os fundos especulativos organizam a transferência de
riqueza a nível global. Com a estabilidade financeira visa-se fazer
prevalecer as exigências do capital financeiro sobre as aspirações das
populações (p. 124).
Nos EUA os 1% mais rico
apoderaram-se de 95% dos ganhos entre 2009 e 2013, aumentando os seus
rendimentos em 31,4%. O total dos montantes despendidos pelos Estados
para apoiar o setor financeiro (“recapitalizações, compra de ativos,
nacionalizações”, garantias, injeções de liquidez) em 2008 e 2009 foi
avaliado pelo FMI em 50,4% do PIB mundial! (p. 51)
Outro aspeto é a
liberalização do comércio e dos fluxos de capitais, estabelecendo um
exército de reserva do trabalho a nível global. A troca desigual
proporciona a capacidade das TN dos países dominantes para remunerar os
seus agentes financeiros através dos ganhos provenientes das relações
mercantis assimétricas com os seus fornecedores dos países dominados (p.
128).
Com o enfraquecimento
do movimento operário o imperialismo e a oligarquia financeira
reforçaram o seu poder (p. 184). Em 2006 havia 66 milhões de
trabalhadores, em países ou zonas em que impostos e regulamentações são
quase inexistentes, em particular as do trabalho, com fiscalização
submetida aos interesses e exigências do patronato e salários de 1 € por
dia (p. 177).
Para Hayek as crises
não são produzidas por excesso de produção mas por excesso de consumo
(p. 60). Justificando assim os planos de austeridade que não são mais
que créditos sobre os montantes futuros dos impostos dos quais a finança
se apropria (p. 66).
Ganha, pois, uma
atualidade nova a famosa afirmação de Marx segundo a qual "numa certa
fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais entram em
conflito com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a
sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das
quais tinham existido até então. De formas de desenvolvimento das forças
produtivas estas relações tornam-se seu entrave" (p. 133).
Perante as crises o
sistema tem necessidade de relançamento para um rápido aumento dos
lucros, recorrendo a choques exógenos, como guerras, contrarrevoluções,
derrota dos assalariados, descoberta de novas fontes de matérias-primas
(Ernest Mendel) (p. 139).
Esta política não
conhece limites e só pode ser posta em causa pela combatividade das
camadas populares (p. 190). Eis o que resume as mensagens que propomos
reter do livro de Cédric Durand.
[1] Antigo presidente da Universidade de Harvard, conselheiro de Obama e secretário do Tesouro de Clinton.
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