quarta-feira, 21 de setembro de 2016

POLÍTICA - "A parcialidade do Moro decorre da ideia de que ele é o salvador da morlidade".

“A parcialidade de Moro decorre da ideia de que ele é o salvador da moralidade”, diz decano dos criminalistas de SP. Por Kiko Nogueira





Postado em 21 Sep 2016

Paulo Sérgio Leite Fernandes é o decano dos criminalistas de São Paulo, com 80 anos.
Na ativa desde 1960, é autor de vários livros jurídicos e romances. Foi professor de Processo Penal e conselheiro federal da OAB.
“Procuro ensinar aos moços a arte de dizer não. Desgraçadamente, as faculdades ensinam a obediência estrita. Formam advogados medrosos. É ruim para o Brasil”, diz.
Ele deu um depoimento sobre Moro ao DCM, já publicado. Reproduzo aqui os principais trechos à luz dos novos desdobramentos da Lava Jato e da aceitação por parte de Sérgio Moro da aceitação da denúncia contra Lula:
“Eu passei a ver o Direito no sentido quase psiquiátrico. Classifico o juiz Moro como uma figura heroica, psicanaliticamente. Bem e mal. O juiz Moro é jovem. Ele é a encarnação do vingador. Ele acredita naquilo. 
Nós precisamos de quem acredite. O ser humano precisa do ícone do santo, do superhomem, do animal a ser seguido. Isso funciona até mesmo entre as formigas vermelhas da Amazônia. Nós também agimos como agem os cães ou os tigres que marcam seu território. Podemos até nos sofisticar, mas o princípio é o mesmo. Nós somos iguaizinhos.
Temos os chamados animais alfa. O touro, que guia a boiada até o precipício… Vão 500 bois atrás dele. Até as hienas têm liderança. 
Dentro desta classificação meio zoológica, o juiz Moro é um animal alfa. 
Além disso, ele tem legitimação jurídica para fazer o que faz. Moro representa a entronização de tudo aquilo em que o povo acredita no sentido do bem combater o mal. 
Ele não é, obviamente, perfeito. O Chico Buarque fez uma canção que fala que “procurando bem, todo o mundo tem pereba”. O Moro tem suas perebas também. 
O sistema processual penal francês é dicotomizado. Tem o juiz de instrução e o juiz que se diria julgador. O juiz de instrução francês tem origem no ministério público. Ele é um investigador. Colhe as provas e as entrega ao poder judiciário encarregado do contraditório penal. O juiz de instrução é, na verdade, um perseguidor.
O juiz penal, embora não seja inerte, é imparcial — ao menos em tese. A gente sabe que não existe imparcialidade. Nós inventamos que ele é imparcial. É coisa nenhuma. Ele depende até mesmo do estado de humor, se trepou com a mulher na noite anterior etc. Você acorda bem, acorda mal, acorda deprimido, impressionado.
O juiz acorda assim. Em tese, porém, a imparcialidade é prerrogativa do magistrado. 
O juiz Moro é parcial e a parcialidade resulta desse pressuposto de que ele é o salvador da moralidade do país. Ele veste a toga e se torna o sacerdote mor da restauração moral do trato da coisa pública.
Moro acredita nisso. É um fenômeno biopsíquico. Não acredito que isso seja especialmente uma boa distribuição da justiça. Esse tipo de compulsão leva o julgador a exacerbar a atividade investigatória e a esquecer a necessidade de equilíbrio que é a garantia do contraditório.
Esse jovem, embora convicto de praticar o bem, quando da distribuição da justiça no sentido de equilíbrio entre acusação e defesa, é um homem perigoso.
O perigo do arbítrio desmedido. 
Hoje ele é o ser humano mais determinado que o Brasil conhece. Ele é um compulsivo. Ele busca o Santo Graal.
Não é normal no sentido forense. Extrapola os limites. O juiz penal brasileiro não é extático, mas é inerme. Com esse tipo de atitude, ele vai além do limite. Se acusação e defesa concordam, você não tem nem mesmo como reclamar por habeas corpus. Ele se introduz na zona cinzenta e não passa confiança. 
É herança de um imperialismo judicial. No sentido de investigação, pode ser meritório. No sentido de obediência à nossa teoria e prático do processo penal, é uma extravagância. 
Moro é diferente do Joaquim Barbosa. Barbosa é uma criatura emocionalmente desarticulada. O Moro tem componentes compulsivos bem acomodados num comportamento externo obediente às normas de conduta perante a comunidade. 
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Nós somos estritamente comportamentais. Na vida pública, ele parece ser irrepreensível. Educado, trata as partes com cordialidade, aparentemente tem saúde boa e está fazendo o serviço dele.
O doutor Barbosa vestiu uma capa de Batman para lutar contra os meliantes. Se o juiz se conscientizar de que é um instrumento de equilíbrio no combate entre o bem e o mal, ótimo. Ele nunca é o fautor. Esse combate entre o bem e o mal é tão sinuoso que o bandido e o mocinho se entrelaçam. É uma simbiose. Eu tenho a esquisita sensação de que o mocinho é também o bandido.
Na delação premiada, para haver a chamada “colaboração eficaz”, eu, agente do bem, ofereço a você, delinquente, o perdão se você delatar seu confrade, seu irmão, sua mulher. 
Ele cometeu uma infração talvez mais grave que o outro. Quando ofereço o perdão, estou tergiversando porque eu não posso perdoar. Eu posso perdoar quem se arrepende, talvez, mas não posso perdoar quem tem como mérito único denunciar quem se comportou da mesma forma. Isso é tergiversação, não importa o que diz a lei.
Mais ainda: não posso oferecer o perdão sob condição de não tomar parentes como reféns. Isso é coação e constrangimento. Já houve casos de negociação assim: “se você poupar minha mulher, eu confesso tudo”. Isso aconteceu muito durante a ditadura.
O próprio Yousseff. Eu pensaria muito antes de acreditar nele. Há advogados especialistas na delação premiada. Eu acho podre. O mocinho vira bandido também. Ele comete um crime para realizar o bem.
Estou falando no sentido ético. Ela é legal. Mas era legal para os nazistas mandarem os judeus para as câmaras de gás. Virou rotina no Brasil. Nós copiamos dos Estados Unidos. Acredito que haverá uma reação na sociedade dentro de cinco ou seis anos.”
***
O Moro não é original na posição em que se põe. Na Antiguidade, você teve centenas de arautos desse estilo, que se colocam como heróis no conflito entre o bem e o mal.
É o chefe da tribo, o pajé, o rei viking que conduz os guerreiros pelos mares revoltos.
Nem sempre acaba bem. O bispo Savonarola, em Florença, fazia essa pregação da imaculabilidade. Quando perdeu o poder, foi-lhe perguntado se queria morrer pela espada ou pela forca. Morreu enforcado e depois seu corpo foi incinerado numa fogueira em praça pública.
Sergio Moro é necessário neste momento. Não digo que isso é bom ou mal. Ele é um personagem da hora. 
Aí temos outro elemento: o povo. O povo, ou parte dele, quer sangue, quer vítimas, como as harpias na Revolução Francesa.
Moro acha que tem de oferecer o sangue que esse povo quer.
A diferença dos tempos antigos é que, hoje, o negócio é mais sofisticado. A Lava Jato, por exemplo, faz algo inominável: algema as pessoas com as mãos para trás.
Qual a finalidade disso?
Para que elas não possam cobrir o rosto, o sinal mais instintivo da vergonha. Trata-se apenas de filhadaputice. 
O objetivo final dele é prender Lula. É o seu trofeu de caça. O juiz se tornou um ícone da política judiciária do Brasil. Foi transformado num símbolo da impecabilidade. Tem, ou acha que tem, esse papel a cumprir.
Ele vai medir os riscos da prisão, obviamente. Precisa das provas adequadas. Um problema, para Moro, seria a revogação da prisão preventiva por falhas processuais.
Se chegar a prender Lula, mesmo com estrutura probatória adequada, há a possibilidade de uma reação enorme da sociedade civil. 
Em sua motivação psicológica de vencer o mal, ou o que acredita ser o mal, ele vai levar tudo isso em consideração. Moro é um obsessivo compulsivo e Lula é o alvo. E qualquer coisa é possível em se tratando de um personagem como este.

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