domingo, 26 de junho de 2022

Equador: as razões da nova revolta.

 

Equador: as razões da nova revolta

Convocada pelos indígenas, greve geral alastrou-se e já dura 11 dias. Movimento volta-se contra políticas neoliberais (alta dos combustíveis, endividamento, cortes na Educação) e mineração predatória. Estado de sítio não detém protestos

Por Anahí Macaroff, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

Atualização: Ontem (22/3), o governo equatoriano se recusou a revogar o estado de sítio – sob o pretexto de “deixar a capital indefesa” – e as condições de diálogo propostas pelos movimentos indígenas. Há 10 dias o país vive uma greve geral. Protestos tomaram as ruas, exigindo a redução dos preços dos combustíveis (do equivalente a R$ 2,89 para R$ 2,27/litro!) e dos itens da cesta básica, a revogação dos cortes brutais no orçamento das universidades públicas e consulta popular sobre projetos extrativistas em terras indígenas. Polícia e Exército reprimem manifestantes. Um dirigente indígena, atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo no rosto, morreu – e há dezenas de feridos, presos e desaparecidos. Há ondas de vandalismo (condenadas pelos manifestantes) e toque de recolher na capital. Estradas estão trancadas. Diversas cidades enfrentam escassez de alimentos e combustíveis. Nessa segunda-feira, 10 mil indígenas chegaram a Quito, após dias em marcha.

A ONU e OEA estão entre as 300 instituições que pediram ao governo e aos líderes indígenas que cheguem a um acordo neste momento em que o país enfrenta uma grave crise social, econômica e política. Leonidas Iza, líder da Conaie, entidade indígena que convocou a greve nacional, ficou detido de forma ilegal por 24 horas, mas foi solto no dia 15, em liberdade condicional. Ele afirma que o presidente Guilherme Lasso tem as “mãos manchadas de sangue” – e reitera sua disposição em dialogar sob supervisão cidadã para garantir “resultados efetivos”. A mobilização segue e agrega, além dos povos ancestrais, estudantes, feministas, movimento negro e organizações de bairro. (Rôney Rodrigues)

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A convocação de greve e a mobilização da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), em 13 de junho, é o primeiro grande protesto que o presidente Guillermo Lasso enfrenta desde que chegou ao poder em 2021. Os protestos vão se alastrando em grande parte pelas próprias ações do governo que geraram forte rejeição popular – e diversos setores vão se somando à greve.

Do partido no poder, denuncia-se a existência de uma tentativa desestabilizadora. As Forças Armadas até apontaram ligações entre os traficantes e as manifestações. A partir das organizações sociais, por outro lado, afirma-se que são as mesmas ações repressivas que abalam as instituições democráticas.

Chaves para entender protesto e agitação social

Desde junho de 2021, a Conaie manteve diversos diálogos com o governo e apresentou uma série de propostas que não foram aceitas, razão pela qual em novembro daquele ano a entidade indígena deu por encerrado o diálogo. A partir daí, a tensão foi aumentando até a atual convocatória de uma greve nacional para exigir o cumprimento de dez demandas fundamentais. Entre elas está a suspensão do aumento dos combustíveis, a renegociação das dívidas dos clientes do sistema financeiro nacional, a regulação dos preços dos produtos agrícolas, a revogação dos decretos 95 e 151 que promovem o aumento da exploração petrolífera e da mineração, respeito à consulta prévia, livre e informada para iniciar projetos extrativistas em territórios comunitários e indígenas e, por fim, a regulação dos preços de produtos essenciais.

O governo afirma que não há motivos para o protesto, mas não é isso que percebem diversos setores da sociedade. A crise social e econômica, agravada pela pandemia de covid-19, expôs a falta de políticas públicas do governo de centro-direita de Lasso, político e banqueiro que no ano passado derrotou o candidato da correísta Andrés Arauz no segundo turno das eleições, mas que teve que governar com maioria oposicionista no Congresso e uma oposição latente nas ruas.

Lasso priorizou a salvaguarda dos interesses de grandes empresas e bancos, aprofundando ainda mais os abismos da desigualdade. A crise do país combina, de fato,diversos fatores. A inflação e o aumento constante dos preços fazem com que quase 70% da população tenha dificuldades para adquirir a cesta básica . O setor agrícola – especialmente os pequenos produtores –, já duramente atingido, sofre ainda mais os efeitos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A isso se somam a falta de medicamentos e a crise no sistema de saúde, bem como o aumento das taxas de desemprego e as altas taxas de emprego precário, que abrangem 62,6% das pessoas ativas — especialmente mulheres, jovens, indígenas e afrodescendentes. Soma-se a esse cenário a redução do orçamento das universidades e o descumprimento da promessa de campanha de acesso sem restrições às casas estudo, além da poderosa onda de violência com ações das milícias (nas quais são vistos membros ativos das forças policiais) e a crise carcerária, com o assassinato de dezenas de detentos. O veto presidencial da lei e da resolução do Tribunal Constitucional para permitir o aborto por estupro é, finalmente, a cereja deste coquetel explosivo. Diante dessa situação, o aumento dos protestos tornou-se evidente. E a resposta do governo e das forças repressivas diante do atual quadro de greve nacional apenas esquentaram os ânimos.

morde e assopra: medidas que alimentam a greve

Embora a convocação de greve seja voltada principalmente para o movimento indígena, desde o início estudantes, organizações de mulheres e oposição fizeram parte das mobilizações. Estes últimos, de fato, conseguiram incluir suas vozes e uma presença permanente nas coletivas de imprensa que as lideranças oferecem todas as noites. No entanto, diferentemente do que aconteceu em 2019, por ocasião dos fortes protestos contra o governo de Lenín Moreno, as organizações operárias não entraram em greve imediatamente e convocaram uma mobilização para 22/6.

O segundo dia de greve foi marcado pela prisão de Leónidas Iza, presidente da Conaie, por interrupção dos serviços públicos. Para os atores sociais mobilizados, esta ação representa uma clara perseguição política e o cumprimento da ameaça feita meses atrás pelo próprio presidente da República quando afirmou que “Leónidas Iza vai acabar com seus ossos na cadeia” . Essa prisão suscitou uma onda de repúdio por suas múltiplas irregularidades e inflamou os ânimos, agregando mais organizações e moradores de bairros populares à mobilização.

No terceiro dia da greve, na cidade de Cuenca, a terceira maior do país, foram registrados vários confrontos entre estudantes universitários e policiais que, violando a autonomia universitária, lançaram gás lacrimogêneo dentro da instituição, como havia acontecido em 2019 na Universidade Católica de Quito. Foi a mesma ação repressiva que fez com que toda a comunidade acadêmica, chefiada pela reitora María Augusta Hermida, aderisse à greve e se mobilizasse pacificamente no dia seguinte . Cenas semelhantes foram vividas no oitavo e nono dias de greve, quando as forças de segurança reprimiram, perto da Universidade Salesiana, uma das duas universidades que, juntamente com a Universidade Central, decidiram abrir suas portas como centros de acolhimento humanitário. A mesma coisa aconteceu na Universidade Católica, que foi invadida por um grupo anti-motim, violando sua autonomia.

No quarto dia, e na tentativa de acalmar as águas, o governo anunciou a publicação do decreto executivo 452 e a assinatura do acordo ministerial 0069, com os quais buscava responder parcialmente duas exigências da Conaie. Com o decreto, o governo prometia intensificar as intervenções e operações para controlar os preços dos produtos essenciais e punir quem não cumprir os pagamentos justos aos produtores de banana.

O quinto dia da greve foi de fortes confrontos na província de Chimborazo que terminou, segundo a Confederação do Movimento Indígena Chimborazo (Comich), com 40 feridos, dois deles em estado grave. Estes últimos teriam sido atingidos por balas, apesar de a polícia ter afirmado que estava “disposta a não usar armas de fogo ou munições letais”. À noite, o presidente da República declarou estado de emergência em três províncias: Pichincha, Cotopaxi e Imbabura. O decreto teve duas versões. Inicialmente, circulou um que incluía uma restrição ao direito à liberdade de informação que poderia implicar na suspensão dos serviços de telecomunicações fixas, móveis e pela internet. Além disso, limitava a circulação de informações “devidamente classificadas”, reservadas ou de circulação restrita nas mídias sociais, redes sociais e conteúdos comunicacionais. E o uso progressivo da força, incluindo a letal, foi autorizado.

Por fim, diante da onda de vozes que alertavam para a violação de direitos constitucionais, o governo afirmou que, apesar de ter a assinatura do presidente, o que havia circulado era “um rascunho” e que a versão final não continha esses artigos polêmicos. No entanto, isso motivou a convocação da Assembleia Nacional para tratar da revogação do decreto. A Constituição contempla a possibilidade de o Parlamento “revogar o decreto a qualquer momento, sem prejuízo do pronunciamento que o Tribunal Constitucional possa fazer sobre a sua constitucionalidade”. Após o decreto, a deputada do partido indígena Pachakutik, Mireya Pazmiño, apresentou um pedido para tratar da revogação no plenário na segunda-feira, 20/6.

Naquele dia, pouco antes da sessão plenária, o Poder Executivo revogou e substituiu o decreto por um novo que ampliou as províncias abrangidas pelo estado de exceção. Com essa estratégia, a Assembleia não pode mais se reunir e deve reenviar uma nova moção e esperar pelo menos 48 horas para tratá-la.

Com esse decreto, o governo busca controlar a extensão da manifestação e restringir a chegada de indígenas à capital, mas, ao mesmo tempo, mostra certa discricionariedade na aplicação das regras, uma vez que, ao mesmo tempo em que é restringida a liberdade de associação e reunião, a Secretaria Geral de Comunicação do Executivo convocou os cidadãos para participar de um dia de mobilizações pela paz, em 18/6, em vários pontos de Quito .

A última ação que põe em questão o respeito às instituições democráticas e reaviva tensões foi a incursão e posterior tomada da Casa das Culturas Equatorianas, em Quito, pela polícia, em busca de “material de guerra, como explosivos e armas artesanais”. Durante os protestos de 2019, esta instituição serviu de base para milhares de militantes e organizações sociais, bem como para a realização de assembleias permanentes. Não encontrando nada, e amparada pelo decreto do estado de sítio, a polícia decidiu ter a Casa das Culturas como abrigo para os fardados, mesmo diante da indignação de artistas, gestores culturais e cidadãos que convocaram uma vigília em repúdio à intervenção policial.

A Casa das Culturas é uma instituição cultural criada em 1944 que funciona em regime autônomo e que só tinha sofrido uma intervenção – como a que ocorreu no passado domingo – apenas durante a ditadura militar, em 1963. Este fato foi condenado em inúmeros comunicados emitidos por universidades, artistas e instituições; recebeu somente o respaldo do Ministério da Cultura, que justificou a atuação dos policiais uniformizados como uma ação de proteção aos acervos e bens patrimoniais encontrados em seu interior.

O último elemento que colocou lenha na fogueira foram as polêmicas declarações de chefes das Forças Armadas tentando vincular as manifestações ao narcotráfico e ao crime organizado, num momento em que o governo, em aliança com a Embaixada dos Estados Unidos, busca promover o Plano Equador – com base no modelo do Plano Colômbia –, para frear a entrada do narcotráfico no país.

Repressão e apelos ao diálogo

A queda na popularidade do presidente Lasso pouco mais de um ano após assumir a presidência é abrupta, o que restringe a possibilidade de canalização de demandas por vias institucionais. De acordo a pesquisa Perfiles de Opinión, Lasso começou seu mandato com mais de 75% de aprovação. Agora ele tem uma reprovação de cerca de 80%. E é que, depois de um ano de governo, a única das promessas de campanha que o governo cumpriu integralmente foi a campanha de vacinação contra a covid-19.

A chegada à presidência de Lasso, com um programa de governo abertamente pró-empresarial, representou uma ruptura após duas décadas em que as elites não conseguiam chegar ao poder por meio de eleições. É importante destacar que as elites ganham não porque conseguiram ampliar o apoio ao seu projeto político, mas pela fragmentação das demais opções. Lasso obteve apenas menos de 20% no primeiro turno de 2021, daí sua baixa representação parlamentar.

Após assumir o cargo, o presidente se afastou do Partido Social Cristão (PSC) que o apoiou para chegar à Presidência e que ideologicamente parecia ser seu aliado natural. No entanto, além das disputas de poder e confrontos midiáticos na aplicação de um plano econômico, tanto o partido no poder quanto o PSC respondem a setores de elites financeirizadas e agroexportadoras com interesses comuns. Essa coesão se concretiza em situações de mobilização social como a atual e permite que o governo aplique uma forte repressão com o apoio das Forças Armadas, da grande mídia e das elites econômicas.

Por sua vez, aqueles que deveriam representar a oposição – Pachakutik e o correísta Unión por la Esperanza (UNES) – ficaram presos no jogo de alianças com o Executivo sob o argumento da governabilidade, permitindo assim o avanço do programa de governo e, ao mesmo tempo, minando a credibilidade moral das forças de oposição.

Ainda assim, ao longo deste primeiro ano a relação entre o Executivo e a Assembleia Nacional foi marcada pela tensão, com ameaças de “morte cruzada”, um mecanismo presente na Constituição do Equador que confere ao Poder Executivo o poder de dissolver o Congresso com a obrigação de convocar eleições em um período de seis meses para renovar ambos os poderes. Durante esse período, o presidente pode governar por decreto.

No nono dia da greve nacional, após dois anos de pandemia que aprofundou as desigualdades e com a memória recente do levante de outubro de 2019, as condições para um diálogo frutífero ainda não se concretizaram. Dessa forma, o que está em jogo não são apenas as dez demandas levantadas pela Conaie, mas as possibilidades de uma resolução do conflito que evite a erosão das instituições democráticas. Isso é algo que, até agora, não parece estar acontecendo.

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