"Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal revelaram que ouro ilegal roubado do Território Indígena Yanomami foi comercializado por atravessadores para instituições financeiras acusadas de danos ambientais na Amazônia e lavagem de ouro no Pará"
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
"Depois de ter sua origem real encoberta, o metal se mistura com o ouro legal nas refinarias, entra na cadeia internacional e pode ser adquirido por grandes marcas, como Google, Microsoft, Apple e Amazon, conforme revelou a Repórter Brasil em julho de 2022. A transparência da cadeia do ouro é tão precária que o minério extraído clandestinamente de terras indígenas brasileiras pode terminar em joias ou filamentos eletrônicos de celulares, computadores e câmeras fotográficas." (Extratos do artigo que publico na íntegra a seguir:
Por Ana Magalhães e Diego Junqueira, Repórter Brasil/Amazônia Real.
São Paulo (SP) – O garimpo no Território Indígena Yanomami (TIY) envolve milhares de pessoas entre garimpeiros, pilotos, operadores de rádio, atravessadores, cozinheiros e até garotas de programa. Mas quem mais lucra com esse crime são empresas com faturamentos milionários e sede em bairros nobres da capital paulista. Algumas delas são alvo na Justiça não só por comprar de garimpeiros clandestinos, mas por participar de um esquema que pode ter legalizado, em 2019 e 2020, mais de 4 toneladas de ouro ilegal de várias terras indígenas da Amazônia, segundo o Ministério Público Federal (MPF).
Há processos em Roraima, no Pará e no Amapá, incluindo um de dano ambiental, além de investigação em curso no Amazonas, onde a Polícia Federal apura se uma delas está lavando ouro de balsas ilegais de garimpo. São as chamadas DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários), empresas do sistema financeiro autorizadas a comprar o metal no Brasil.
Pelo menos três dessas intermediárias – Ourominas, FD’Gold e Carol – aparecem nas investigações sobre o garimpo no TIY, um problema conhecido e já denunciado na série Ouro do Sangue Yanomami, uma investigação jornalística feita em parceria entre a Amazônia Real e a Repórter Brasil e publicada em junho de 2021. Essas DTVMs não chegaram a ser processadas em Roraima – apenas o sócio de uma delas foi denunciado. Porém, levantamento feito pela Repórter Brasil mostra que essas companhias ou seus executivos enfrentam pelo menos sete ações na Justiça Federal por crimes ambientais ou de lavagem de dinheiro relacionados a garimpo ilegal na Amazônia, que incluem um pedido do MPF de 10 bilhões de reais de indenização por destruição de parte da floresta. Nenhum desses processos foi julgado, e as empresas seguem em atuação.
Garimpeiros buscam ouro no rio Uraricouera, na TI Yanomami; atividade ilegal no local explodiu no governo de Jair Bolsonaro (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Para que o ouro extraído ilegalmente de uma terra indígena entre circuito comercial, ele precisa ter sua origem fraudada, o que não é tarefa difícil no Brasil: basta o vendedor ou garimpeiro declarar que extraiu o metal de uma lavra legalizada para o comprador (uma DTVM) ter em mãos um produto pretensamente legal. “Fácil para fraudar, difícil para investigar”, resume o MPF em uma das denúncias.
Depois de ter sua origem real encoberta, o metal se mistura com o ouro legal nas refinarias, entra na cadeia internacional e pode ser adquirido por grandes marcas, como Google, Microsoft, Apple e Amazon, conforme revelou a Repórter Brasil em julho de 2022. A transparência da cadeia do ouro é tão precária que o minério extraído clandestinamente de terras indígenas brasileiras pode terminar em joias ou filamentos eletrônicos de celulares, computadores e câmeras fotográficas. E os fabricantes desses produtos, que são os quartos, quintos, sextos compradores da cadeia, podem nem saber disso.
As mais de 4 toneladas de ouro lavadas que levaram as DTVMs ao banco dos réus são uma pequena parte do problema causado pelo garimpo ilegal na Amazônia. Estudo realizado pelo Instituto Escolhas mostrou que pode chegar a 229 toneladas o volume de ouro ilegal comercializado no Brasil entre 2015 e 2020, o que representa metade da produção nacional no período. Um terço desse ouro irregular foi comprado por apenas cinco DTVMs – entre elas a FD’Gold, a Ourominas e a Carol.
DENUNCIADAS NA JUSTIÇA
Edifício Barão do Serro Azul, na Avenida Paulista, onde fica a sede da F.D’Gold; empresa foi a que teve maior rentabilidade em 2020 entre as três DTVMs investigadas (Imagem Google Street View)
Ainda que não tenha sido diretamente indiciada no estado mais setentrional do país, a Ourominas responde a processos em pelo menos dois estados da Amazônia. No Amapá, é acusada de retirar ouro de uma reserva ambiental. Já no Pará são duas denúncias, por acusações de lavar quase 1,1 tonelada de ouro de garimpo ilegal e de esquentar o metal extraído ilegalmente dos arredores da Terra Indígena Zo’é.
Outras duas DTVMs mencionadas nas investigações do TIY são a FD’Gold e a Carol DTVM. Embora as empresas não tenha sido denunciadas em Roraima, elas respondem a um processo judicial no Pará, acusadas de dano ambiental e por lavar 1,4 tonelada e 1,9 tonelada de ouro respectivamente.
“Esse ouro pode, na verdade, ser oriundo de qualquer outro ponto do bioma em que existente garimpo ilegal, como as Terras Indígenas Munduruku, Kayapó, Yanomami, Raposa Serra do Sol, os Rios Madeira, Jutaí, Içá e Japurá”, diz trecho das denúncias, apresentadas em agosto de 2021 à Justiça Federal em Itaituba (PA).
Apesar de ficar a 1 mil quilômetro de distância dos Yanomami, Itaituba é destino de boa parte do ouro produzido irregularmente na Amazônia. Como não existe nenhuma lavra garimpeira oficial em operação em Roraima, a produção clandestina do estado, quando não é escoada pela fronteira, precisa ser legalizada em outras regiões produtoras. É aí que entra não apenas Itaituba, como outras cidades do Pará.
Nota Fiscal encontrada pela PF na casa de atravessador da TI Yanomami indica que ouro ilegal foi negociado com a FD’Gold (Foto: Reprodução)
De garimpeiro a empresário
Dirceu Sobrinho (segundo à esquerda) em reunião com o então vice-presidente Hamilton Mourão, em janeiro de 2021 (Foto: Romério Cunha/VPR)
Recentemente, o presidente da FD’Gold ganhou o noticiário ao ser preso na operação Aerogold, da Polícia Federal, por suspeita de estar envolvido na lavagem de ouro ilegal adquirido de balsas clandestinas que atuam nos rios do Amazonas. Dirceu Frederico Sobrinho começou a carreira como garimpeiro e hoje é dono de lavras garimpeiras, mineradoras, refinarias e holdings financeiras. É também presidente da Anoro (Associação Nacional do Ouro), organização que reúne algumas DTVMs e refinadoras para fazer lobby pró-garimpo. Ele tinha bom trânsito no primeiro escalão do governo Bolsonaro.
Sua atuação de décadas no setor parece estar rendendo bons frutos. Em 2018, Dirceu declarou ter patrimônio no valor de 20,3 milhões de reais ao Tribunal Superior Eleitoral, quando foi candidato a 1º suplente no Senado pelo PSDB.
A FD’Gold declarou lucro líquido de 46 milhões de reais nos últimos quatro anos somados (2019 a 2022). Porém, a empresa teria movimentado “de forma atípica” 2,1 bilhões de reais entre janeiro de 2018 e setembro de 2019, segundo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que consta no inquérito da Polícia Federal a que a Repórter Brasil teve acesso.
Procurados, a FD’Gold e Dirceu Frederico Sobrinho negaram qualquer prática ilegal na compra de ouro e se disseram vítimas de “violações de direitos” por agentes públicos. Afirmaram que desconhecem investigações que os relacionem com o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e com o esquema de balsas no Amazonas e que o processo da operação Aerogold “estampa absoluta e total improcedência” e não apresenta provas que justifiquem a prisão de Sobrinho, que já foi solto.
Também destacaram que uma decisão liminar contrária à acusação do MPF no Pará já determinou que “cabe ao Estado a fiscalização da atividade minerária, não às empresas que compram o ouro em conformidade com a lei”. Em nota, a empresa e seu sócio disseram ainda concordar “com toda proteção legal aos povos originários” e com a adoção de medidas, por parte do governo, para aumentar a fiscalização da cadeia. O comunicado afirma também que as DTVMs “não são o personagem infrator”, mas sim “o elo de legalidade do setor”, por viabilizarem “o controle e a fiscalização da atividade”, além de ressaltar que “inexiste qualquer ilegalidade ou irregularidade” na declaração de patrimônio pessoal de Sobrinho.
Já a Ourominas declarou que não compactua com o garimpo ilegal e com violações ao meio ambiente e que não possui representantes em Roraima para comprar de ouro no estado. A empresa destacou uma decisão de setembro de 2022 da Justiça Federal no Pará que negou o pedido urgente do MPF para que as empresas fossem impedidas de atuar provisoriamente em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso – a ação segue em curso . A defesa de Aquiles Salerno Júnior disse que não comenta processos judiciais. (Leia as íntegras das respostas das empresas citadas).
A Carol DTVM não respondeu às perguntas enviadas.
BRECHAS LEGAIS
Garimpo próximo a malocas na região do Homoxi, na Terra Indígena Yanomami. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Apesar dos processos judiciais e das acusações sobre as DTVMs, procuradores e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam ser difícil produzir provas e responsabilizar, juridicamente, essas empresas. O problema é o marco legal.
A Lei 12.844/2013, que regula a aquisição e o transporte do produto no país, afirma que “é de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas” na negociação, presumindo a “boa-fé” da empresa compradora. Ou seja, se o vendedor informar em nota fiscal que a origem daquele metal é um garimpo autorizado, o comprador se isenta de qualquer responsabilidade.
Mas a legislação não é o único desafio: “A dificuldade em responsabilizar criminalmente algumas empresas também passa pelo fato de que o dono da DTVM, por exemplo, está em São Paulo. Ele não compra diretamente. Ele tem um parceiro local para sujar as mãos. Se der errado, ele vai dizer que não sabia”, disse o procurador da República no Pará Paulo de Tarso, em entrevista à Repórter Brasil em 2021.
Para o pesquisador que estuda o garimpo na Amazônia, que pediu para não se identificar, é “inequívoco” o papel das DTVMs no esquema ilegal de garimpo na Amazônia, mas a presunção de boa-fé respaldada pela lei “lava as mãos dessas empresas”.
“Muitas transações ainda são feitas com formulários e notas fiscais em papel, a exemplo do ouro vendido pelos garimpeiros às DTVMs”, resume o Instituto Escolhas no relatório “Blockchain, rastreabilidade e monitoramento para o ouro brasileiro”.
Uma das evidências dessa dificuldade de responsabilizar os compradores está na Justiça Federal de Roraima. Após três grandes operações de combate ao garimpo realizadas em 2012, 2017 e 2019, cerca de 90 pessoas foram denunciadas pelo MPF. Somente dois acusados, pessoas físicas, tinham ligação com as DTVMs – as empresas em si passaram incólumes em Roraima, ainda que sejam processadas no Pará.
Diretor-executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão defende uma apuração rigorosa sobre as DTVMs pois, além das suspeitas de lavagem de dinheiro, essas empresas e seus executivos possuem “elos” com o restante da cadeia de ouro. “O sujeito é dono de uma DTVM ligada a uma pessoa que é permissionária de lavra garimpeira e que, ao mesmo tempo, é ligada a uma cooperativa de garimpeiro. Aí, ele tem uma refinaria, ele tem uma empresa de aeronave.”
Enquanto empresários enriquecem e atuam livremente na Amazônia, crianças da etnia Yanomami enfrentam uma tragédia sanitária e de violação de direitos humanos. A região parece ter regredido 30 anos nos últimos 4.
Reblogado do Desacato
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