quinta-feira, 11 de setembro de 2008

BOLÍVIA - As batalhas decisivas pela transformação serão no Oriente.

Michelle Amaral da Silva

Na Bolívia, o racismo como mecanismo de disciplinamento social contra as classes subalternas deixou de fazer parte do sistema de crenças predominante

Hugo Moldiz**

A violência cometida por grupos paramilitares na sexta-feira, dia 29 de agosto, contra setores humildes no departamento boliviano de Santa Cruz, em sua maior porcentagem migrantes do ocidente, tem uma tripla significação: mostra o racismo com o qual a ultra-direita busca recuperar o espaço perdido, é um sinal de que as classes subalternas estão perdendo o medo do domínio da oligarquia e de seus grupos paramilitares e, para finalizar, que as batalhas definitivas das quais depende o curso da revolução boliviana terão lugar nos departamentos da Meia Lua [Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando].

Tal afirmação não é um exagero. É o resultado do quadro político de forças no território boliviano: um ocidente que se tingiu de azul [cor do MAS, partido de Evo Morales] com um apoio eleitoral [no referendo revogatório de 10 de agosto] cuja média não é menor que 70%, e um oriente onde o projeto de transformação conquistou a maior parte das províncias [subdivisões dos departamentos]de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija.

Isso explica porque a ultra-direita boliviana, que na segunda-feira, 25 de agosto, recebeu o respaldo do embaixador estadunidense, Philip Goldberg, em uma reunião reservada em Santa Cruz, esteja perdendo a pouca calma que lhe resta desde que um índio, contra todo prognóstico e atuando contra a “ordem natural” da democracia boliviana das últimas duas décadas, triunfou nas eleições de dezembro de 2005 com 54% e, dois anos e meio depois, volta a obter uma histórica vitória, de 67,41%, no referendo revogatório de 10 de agosto.


Foi uma dose muito alta para tão pouco tempo. O impacto dessa mudança radical na Bolívia surpreendeu o mais pessimista e tirou do sério os setores mais conservadores das classes dominantes, a maior parte de origem estrangeira, que, encobrindo seus interesses de classe, vêm apelando para o discurso regionalista e racista, além de uma violência crescente, para responder à insurgência indígena-popular que avança apesar de suas contradições e limitações.


“O que podemos esperar de um índio maldito, e digo isso de coração, porque não tenho medo... de um cocalero, um sindicalista, o que podemos esperar de um cara que não sabe nada”, gritava eufórica Ruth Lozada, uma dirigente do comitê cívico feminino na praça 24 de Septiembre [a principal de Santa Cruz de la Sierra] na noite de 28 de agosto, minutos depois do governo convocar por decreto dois referendos – constitucional e dirimidor – para 7 de dezembro.


Mas os impropérios da “culta aristocracia crucenha” da noite do dia 28 se somam às dezenas de insultos, como a de “macaco menor”, que suas autoridades não sem cansam de lançar contra Morales e os “kollas” (índios aymaras e quéchuas) rebeldes em tempos de pós-modernismo.


No entanto, o racismo como mecanismo de disciplinamento social praticado contra as classes subalternas e como instrumento para garantir a reprodução simbólica e real do capital, deixou de fazer parte do sistema de crenças predominante na Bolívia e agora está profundamente questionado.


A chegada de Morales e dos movimentos sociais ao governo elevou de tal maneira a auto-estima individual e coletiva da maior parte dos bolivianos, dos quais mais de 60% se reconhecem como indígenas, que agora nem os insultos nem a violência física rendem os frutos que as classes dominantes colheram desde a conquista.


É por isso que as ações executadas pelo para-militarismo da União Juvenil Crucenhista (UJC), que acata somente as ordens do presidente do Comitê Cívico, Branko Marinkovic, e do governador Rubén Costas, constituem uma expressão de debilidade antes que de fortaleza. Não se trata de subestimar a situação da burguesia boliviana, cuja opção pela violência aumentará à medida que ela vá perdendo mais território político, mas um processo de expansão progressiva das idéias transformadoras parece ser a tendência no oriente boliviano.


Um segundo dado significativo dos atos de violência registrados em Santa Cruz, que certamente continuarão e se ampliarão a outros departamentos da Meia Lua conforme o processo de transformações for avançando, é que os pobres, em sua dupla condição – de classe e identidade – perderam o medo das múltiplas formas de violência que a ultra-direita utilizou freqüentemente contra eles.


A prova mais contundente disso foi a marcha, em 29 de agosto, dos afiliados da Central Operária Departamental (COD), que se dirigiram até a praça principal de Santa Cruz, numa mostra de satisfação pela convocatória presidencial dos dois referendos, mesmo estando certos que os unionistas [membros da União Juvenil Crucenhista] viriam com tudo pra cima deles.

As pauladas, chutes e palavras carregadas de ódio e racismo, que chocaram violentamente contra os rostos de mulheres e homens humildes, deixando, inclusive, um deficiente físico em estado de coma, não derrotou a insurgência popular nesse departamento, que já antecipou que se duplicará.

Embora nestes dois anos e meio o processo de ascenso do protesto contra toda forma de exclusão vem crescendo no oriente boliviano, considerada uma região politicamente atrasada, a partir das eleições gerais de 2005 e, sobretudo, nas eleições para a Assembléia Constituinte, a rebelião social passou a um nível superior em maio e junho de 2008, quando as oligarquias encontraram resistência a seus estatutos autonômicos em amplas zonas rurais nas próprias cidades desses departamentos.

Esse nível de resposta ao caráter ilegal e ilegítimo dos estatutos autonômicos, que encontraram uma média de 40% de rechaço pela via da abstenção, foi a manifestação mais contundente de uma rebelião social no coração dos territórios da burguesia agro-exportadora e latifundiária.

E uma alta porcentagem dos habitantes dos quatro departamentos quer voltar a falar através do voto em dezembro. Mas, antes dos referendos constitucional e dirimidor, que provavelmente serão postergados para o próximo ano, as classes subalternas no oriente enfrentarão batalhas mais decisivas, das quais dependerá muito o triunfo do processo de transformações e o início da transição a uma Bolívia não capitalista.

No fim das contas, entre agosto e dezembro, as batalhas estratégicas entre o insurgente bloco nacional-popular-indígena e o bloco imperial-burguês-colonial terão como cenários principais os departamentos de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija.

* Artigo publicado originalmente no semanário boliviano La Época (www.la-epoca.com)

** O boliviano Hugo Moldiz é jornalista e analista polític
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