quinta-feira, 11 de setembro de 2008

CRISE AMERICANA - A ortodoxia só vale ao sul da linha do Equador?

José Paulo Kupfer

A ortodoxia liberal, obviamente constrangida, teima em não usar o termo correto – reestatização – para classificar o resgate de Fannie Mae e Freddie Mac. Começa lembrando o caráter paraestatal de ambas e segue alegando que a intervenção não significa estatização porque as ações das companhias não foram compradas ou nacionalizadas. Mas comprar ou estatizar o que já virou pó?

Nossos liberais ortodoxos não deviam se contorcer tanto. A operação, que poderá custar aos cofres públicos até US$ 200 bilhões, configurando o maior plano de salvação de empresas já levado a cabo pelo governo americano, era mesmo inevitável. Na realidade, o problema não é a intervenção, mas saber como ela vai funcionar, quem vai se dar bem ou não e, enfim, se vai funcionar.

Vamos falar claro: nada contra a intervenção do governo americano nas gigantes das hipotecas. Pode-se chorar a porta arrombada, pela ausência de controles e pela regulação frouxa, mas nem por isso é o caso de deixar uma enxurrada passar pela porta.

Vamos continuar falando claro: não ser contra a intervenção é admitir que o mercado falha. Foi o que ocorreu no maior, no mais aberto e se não no mais, num dos mais desregulados mercados do planeta. Aliás, não foi a primeira vez e, com toda a certeza, não será a última.

Não dá para louvar a infalibilidade do mercado, esfregar a acumulação de riquezas que beneficia uns tantos na cara dos outros, como prova da superioridade do sistema, e depois justificar a socialização dos prejuízos com o pragmático “era-preciso-evitar-o-risco-sistêmico”.

E não dá para impor a ortodoxia somente abaixo da linha do Equador.

Sim, é óbvio que se deve evitar riscos sistêmicos. Mas é muito melhor evitá-los, quando não for possível impedi-los, sem a hipocrisia do discurso ideológico das vantagens do laissez-faire. O discurso do laissez-faire, aliás, é o que torna impossível evitar a assunção de riscos sistêmicos.

A história, inclusive a recente, é pródiga em episódios de hipocrisia desse tipo. No domingo mesmo, o Estadão publicou artigo do editor da prestigiosa revista Foreign Policy. Moisés Naim, em que são listados alguns desses episódios.

Naim lembra, por exemplo, que, em 2001, quando o governo coreano socorreu a Hyundai, o Senado americano aprovou uma moção que exortava o governo Bush a assegurar que a “ajuda ilegal” seria suspensa. Lembra também que o governo americano pressiona países africanos devastados pela AIDS a não comprar medicamentos genéricos do Brasil ou da Índia, mas, também ameaçou comprar genéricos, para enfrentar os ataques terroristas com antraz, se a Bayer, detentora da patente, não reduzisse os preços. E nem estamos falando do caso do Long Term Capital Management (LTCM), fundo de hedge impedido de quebrar, em fins dos anos 90, por instituições privadas, mas num arranjo coordenado pelo Federal Reserve, de Nova York. Ou da ajuda à Chrysler, nos anos 70. Ou…a lista é longa.

Vamos também deixar de sofismar: aceitar intervenções no mercado financeiro, da mesma forma que defender ações afirmativas, como as de cotas, ou políticas setoriais, não é defender o “estado-babá”, nem a apropriação da coisa pública por “eleitos” privados. Esse é um golpe retórico manjado, que tenta inverter os termos do problema. O que se deve aceitar é que o mercado não se auto-regula – pelo menos nem sempre ou na dimensão necessária.

Nenhum comentário: