Correia da Fonseca
Na generalidade dos media, e portanto na televisão, o que muito tem surgido como preocupante tem sido o ritmo da retirada das tropas russas do território georgiano, com total omissão da responsabilidade do presidente Saakashvili no acontecido e da sua óbvia condição de peão na estratégia norte-americana. Nem sequer vi que a TV tenha citado, mesmo fugazmente, as palavras do embaixador norte-americano em Moscovo reconhecendo o bom fundamento da intervenção russa, contudo discretamente publicadas na imprensa portuguesa. Quanto aos outros lugares do mundo onde a violência imperial continua, dir-se-ia terem desaparecido da actualidade internacional: a excepção foi para o Afeganistão, onde morreram dez soldados franceses, mas as repercussões que essa tragédia suscitou em França foram eliminadas ou reduzidas ao mínimo. Sobrou tempo, é claro, para os Jogos de Pequim, mas não muito para acompanhar a maioria das modalidades onde se afirmou a hegemonia chinesa claramente revelada no número de medalhas de ouro conquistadas. Em compensação, digamos assim, soubemos com o apoio de imagens que a organização havia recorrido ao play back para melhorar o som de uma intervenção musical infantil, assim adicionando a melhor imagem à melhor voz. Foi uma forma subtil de recordar que os chineses não são de fiar. Terá sido uma pena não ser possível afirmar que o play back é uma sinistra invenção chinesa, mas parece que não é.
Voltemos, porém, à Geórgia e seus arredores. Tudo indica que a crise, palavra generalizadamente utilizada para designar a agressão do governo de Saakashvili contra territórios de maioria étnica russa, está ultrapassada, e que a aventura não rendeu dividendos ao presidente georgiano cuja iniciativa suscitou mesmo a reprovação de grande parte dos seus concidadãos. É claro que o pobre homem não pode explicar publicamente que se limitou a cumprir instruções de Washington, o que podia cair mal até na opinião pública do seu país. Porém, é bem possível que no âmbito do bombardeamento propagandístico anti-russo em curso os Estados Unidos tenham marcado pontos. Washington nunca perdoou à Rússia que esta se tenha afastado da subserviência de que Boris Ieltsin foi o campeão e queira reocupar o seu lugar de grande potência mundial. A suposta «agressão russa» à pequenina Geórgia serviu aos Estados Unidos para, graças à gigantesca máquina de manipulação social de que dispõem, apresentarem aos cidadãos do Ocidente uma Rússia agressiva e brutal, à imagem e semelhança da caricatura grosseira que da URSS foi em tempos impingida ao mundo aliás com grande êxito. A televisão portuguesa cumpriu nesta manobra um importante papel, e nem outra coisa era de esperar em face do seu currículo.
Porém, acontece que, sendo desde há muito um intenso e ávido consumidor de informação televisiva, acabei por me atrever a ter opinião ou pelo menos palpites. Assim, no quadro de quanto aconteceu recentemente no Leste europeu e em torno da Rússia, o que me parece mais relevante, mais significativo e também mais perigoso, não é o conflito georgiano, pese embora a realidade terrível que mesmo uma guerra de dimensões limitadas constitui para as populações, mas sim a instalação de mísseis USA na Polónia, isto é, praticamente na fronteira da Rússia. Os serviços noticiosos da televisão portuguesa deram ao facto escassa ou nenhuma importância, o que bem se compreende. Mas, com razão ou sem ela, lembrei-me, como de uma ameaçadora simetria, da dramática crise há décadas desencadeada pela instalação de plataformas de mísseis soviéticos em Cuba, isto é, praticamente na fronteira dos Estados Unidos. Diz-se que se esteve então à beira da Terceira Guerra Mundial, e talvez seja verdade. Gostava de que me explicassem devagarinho a diferença substancial e decisiva entre a instalação de mísseis soviéticos em Cuba nesse ano já distante e a instalação de mísseis norte-americanos na Polónia neste ano da graça de 2008. Agradecendo antecipadamente que não me contem estórias de «mísseis defensivos» porque de estórias para boi dormir, como se diz no Brasil, já tenho o saco cheio.
Fonte:Diário.info.
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