sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ANOS DE CHUMBO - Um cabo Anselmo no Chile.

Mauricio Dias

11 de setembro de 1973 foi o dia em que um sangrento golpe militar derrubou o presidente Salvador Allende. O Chile de Allende era um oásis para os refugiados políticos da América Latina. Naquela ocasião, golpeados pelos militares com o apoio dos Estados Unidos, os governos democráticos do continente caíram como pinos de boliche.

Segundo o historiador Moniz Bandeira, autor do recém-lançado livro Fórmula para o Caos, que marca, com interpretação lúcida e fatos novos, os 35 anos do golpe, havia 13 mil estrangeiros naquele país, a maioria em situação irregular e, entre eles, 1.297 brasileiros.

Após o golpe foram confinados no Estádio Nacional cerca de 4.440 prisioneiros, entre eles uma enorme quantidade de uruguaios e 50 brasileiros.

Um dos brasileiros, no entanto, tinha se tornado informante da ditadura militar no Brasil. Uma repetição do cabo Anselmo, alguns anos depois. Foi cooptado pelo coronel Walter Mesquita de Siqueira, adido do Exército no Chile. A história é contada no requerimento confidencial, de 8 de julho de 1975 – no qual o oficial se auto-refere como “recorrente” –, enviada ao ministro do Exército, Sylvio Frota.

“Nessa área de subversão não era fácil conseguir informantes com grau elevado de confiabilidade. O primeiro e o melhor foi conseguido pelo próprio recorrente (...) Depois de uma conversa inicial por telefone, o recorrente, em local deserto de Santiago, foi ao encontro do subversivo, com quem estabeleceu formas diversificadas de contato, numa entrevista que durou algumas horas e sem cobertura pessoal, prestada por quem quer que fosse.”

O requerimento do coronel Siqueira expressa uma ironia. Ele se dirigia ao ministro do Exército como vítima de uma artimanha dos órgãos de informação e repressão política. Militar conservador, anticomunista, Siqueira era um oficial ligado ao grupo do marechal Castello Branco, primeiro general-presidente do ciclo militar que se seguiu à deposição do presidente João Goulart. Mas era um homem civilizado e contra a barbárie. “Isso significa dizer que não admitia torturas”, lembra o filho dele, o engenheiro Marcelo Siqueira.

Siqueira chegou ao Chile em 1971. No dia seguinte ao golpe, em 1973, esteve no Estádio Nacional. Militares brasileiros que atuavam no Chile ofereceram a ele a cabeça dos exilados. Siqueira recusou e disse que os prisioneiros brasileiros eram “do governo chileno, o responsável por eles”. Se não todos, alguns dos exilados talvez devam a vida a essa resposta.

“Essa é a herança que nosso pai nos deixou. Cada vez mais nos engrandecemos ao verificar que sua atitude foi moral, social e politicamente correta. Todo mês de setembro esse episódio vem à minha memória. Eu me lembro dele”, diz Marcelo Siqueira. Em 1975, o coronel era o primeiro da lista de promoções ao generalato graças à trajetória profissional de 36 anos de serviço. Foi preterido. Recebeu um “carona”, no jargão da caserna. Um troco dado pelos organismos de informação.

Nessa época, de acordo com o requerimento do coronel Siqueira, o informante que conquistou na esquerda ainda era útil.

“(Ele) foi e está sendo da maior utilidade para os órgãos de informação brasileiros (...) Todas as vezes que Miguel Arrais (sic) esteve no Chile, e ele lá comparecia no mínimo duas vezes ao ano, o EME (Estado-Maior do Exército) foi informado (...) As lutas internas entre as facções MR-8, ALN, PCB, PC do Brasil, VAR-Palmares etc. eram imediatamente informadas pelo adido.”

Esse episódio, além da revelação de traição, mostra outra faceta da intromissão do Exército no exercício do poder. O custo interno, para a instituição. Deu baixa das Forças Armadas um oficial cujo conceito sempre foi considerado “excepcional”. O coronel Walter Siqueira morreu em 2006 e enterrou com ele o nome do informante que cooptou entre os exilados brasileiros no Chile.
Fonte: Carta Capital.

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