Claro que no passado tivemos o privilégio de ver coisa bem parecida em outro país. Nosso “milagre econômico” - lembram-se? - foi festejado no Brasil com a ajuda voluntária de veículos da mídia empenhados em agradar os generais da ditadura, implacáveis na repressão e na censura? O Globo, um deles, até proclamou em manchete a frase, forjada na redação e atribuída ao ditador de plantão Garrastazu Médici, depois elevada à condição de slogan patriótico: “Ninguém segura este país!”
Na histeria patrioteira que se seguiu ao 11/9, os EUA viveram um clima semelhante. Disso aproveitaram-se dois personagens conspícuos da economia e do fundamentalismo cristão para formar em 2003 a parceira que resultou no livro (ver capa acima) The Bush Boom - How a “Misunderestimated” President Fixed Our Broken Economy (O boom de Bush - Como um presidente subestimado e incompreendido consertou nossa economia abalada). Jerry Bowyer assinou como autor, Larry Kudlow como prefaciador.
O primeiro teve (ainda tem) firmas de investimentos, mas o detalhe é que faz programas de rádio e TV, escreve colunas na Internet (inclusive sobre religião). Antes, na década de 1990, pregava uma teocracia - “Cristocracia, a regra de Cristo para toda a nação”, conforme as palavras dele citadas pelo Washington Post em 1999 (leia AQUI). O outro é, além de colunista sindicalizado de jornais, apresentador de programas (TV personality, conforme conforme expressão da moda nos EUA. Seu show, “Kudlow & Company”, é apresentado pela rede de cabo novaiorquina CNBC, do império de mídia NBC-Universal, especializada em negócios e Bolsa (clique no final deste post para ver e ouvir os dois juntos).
Um belo trabalho de ficção
Ouvi falar desse livro pela primeira vez depois do atual furacão que está virando a economia americana pelo avesso. Apesar de seu reduzido número de páginas, é relevante por serem Bowyer e Kudlow quem são e continuarem a repetir as mesmas coisas em colunas e talk shows de rádio e TV. Um é convidado frequente do outro na CNBC, ambos adeptos ortodoxos da escola de Chicago de Milton Friedman, além de pregadores impenitentes da economia do supply-side, com a promessa aos destituídos das migalhas que caiam da mesa farta dos privilegiados.
O website da livraria virtual Amazon.com está repleto de manifestações de leitores e internautas. Um chamou o livro de “trabalho de ficção”; outro o definiu como “último suspiro do movimento conservador”. Não é para menos. Kudlow, por exemplo, opõe-se a impostos sobre propriedades, dividendos e ganhos de capital. Para ele, empregados deviam ser obrigados a pagar contribuições maiores por sua aposentadoria e custos médicos, o que encara como carga indevida que se transfere a empresas. Executivos, diz ele, têm de ganhar mais - suposta manifestação dos forças do mercado, contrárias a regulamentações.
Antes de pontificar no “Kudlow & Company” (veja ao lado seu logo na CNBC), Kudlow ao menos tinha alguma bagagem. Fora economista da equipe do Federal Reserve de Nova York e diretor associado de Economia e Planejamento do OMB (Escritório de Administração e Orçamento) no gabinete do presidente Ronald Reagan, na Casa Branca. A experiência de Bowyer, limitada, confunde-se com o ativismo religioso.
O terrorismo contra o seguro-saúde
O argumento dele contra um sistema de saúde com cobertura universal chega a ser grotesco. Alega que um sistema administrado pelo Estado tende a pagar menos aos médicos. Com isso, haveria falta de profissionais, forçando a importação de estrangeiros - o que tornaria o sistema vulnerável, pois viriam médicos terroristas infiltrados por células islâmicas. Ao dar a explicação a Neil Canuto na Fox News (veja-o acima) a rede colocou sobre a imagem de Bowyer este título: “Healthcare nacional: aduba o terreno para o terrorismo?”
Ironicamente, o editor econômico da Fox, Canuto, reza pela mesma cartilha de Bowyer, embora concorrente de Kudlow. Os dois costumam disputar o horário, um na Fox Business e o outro na CNBC. A competição está feroz depois que o magnata Rupert Murdoch, do império News Corp, dono da Fox, comprou a Dow Jones (com o Wall Street Journal, propriedade dela), que tinha um acordo operacional com a CNBC.
Entre Kudlow, Cavuto e Bowyer, difícil é saber qual está mais fora de sintonia com a realidade. Os três parecem muito próximos, aparentemente afinados tanto com o fundamentalismo religioso como com a rejeição do papel regulador do Estado. Em compensação, aplaudem a socialização do prejuízo - uma conta para o contribuinte que tende a chegar a US$ 1 trilhão se limitada ao Bear Stearns, AIG, Freddie Mac e Fannie Mae, mas corre o risco de ser ainda mais abrangente.
Total desconexão com a realidade
E o boom de Bush na economia, tema do livro de 2003? Pela desimportância, dificilmente tenha sido alvo de alguma resenha com seriedade (leia AQUI a dura crítica de um analista respeitado a Bush, por se omitir na mais grave crise financeira do país desde a Grande Depressão). Mas no site da Amazon há uma centena de comentários de leitores, feitos ao longo de quase cinco anos. Boa parte deles por causa do quadro dramático resultante dos oito anos de Bush. Já em 2003 um leitor tinha observado (sob o título “2+2=5″) que, “como estudo sério de economia política é uma piada, mas como exemplo da total desconexão dos conservadores com a realidade humana básica, é um tour de force“.
O livro, escreveu ainda, “tem uma premissa muito interessante, de que o bom senso e a realidade vivida são, ambos, falsos. Muitos, muitos americanos, dos trabalhadores pobres à classe média, vivem graves dificuldades econômicas, salários menores, custos de educação mais altos e perspectivas de emprego difíceis. (…) Bowyer e Kudlow, no entanto, querem que ignoremos isso para nos convencermos de que as políticas de Bush, fracassadas sob qualquer critério de avaliação econômica, na verdade já produziram um boom. (…) Tentam até convencer o leitor de que Bush é um gênio da economia”.
A maioria dos leitores ofereceu humor corrosivo - como a leitora “Alice”, de “Wonderland”, que viu o livro “através dos espelhos”. Alguns reconheceram que pode até ter ocorrido um boom, mas em benefício de grupo muito pequeno - os privilegiados próximos ao poder e executivos beneficiários de escândalos. Cabe a expressão crony capitalism (capitalismo dos apaniguados). Entre os exemplos, a ex-executiva-chefe da Hewlett-Packard, Carly Fiorina (saiba mais AQUI sobre ela). Ao perder o emprego, quando as ações da HP despencaram e houve 20 mil demissões, embolsou US$ 44 milhões de compensação. Hoje é a mais alta conselheira econômica do candidato Joe McCain.
Fonte:Blog do Argemiro Ferreira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário