segunda-feira, 8 de setembro de 2008

ELEIÇÕES AMERICANAS - Barack Obama e a América Latina.

Laura Carlsen analisa o primeiro documento em que candidato expõe suas políticas para a região. Propostas mesclam conservadorismo com importantes novidades. Mas tom geral é de mudança, e autora frisa: abriu-se a possibilidade de rever as políticas que prevaleceram nas últimas décadas

Laura Carlsen

O grande debate sobre o quanto Barack Obama poderia mudar a desastrosa política externa norte-americana está em geral focado sobre o Oriente Médio. Isso faz sentido. Nenhuma outra região suportou tanto o peso da estratégia de segurança nacional de Bush, como demonstram as mortes violentas de mais de 4 mil soldados dos EUA e 93 mil iraquianos.

Há um debate político menos visível, mas não menos apaixonado, sobre a América Latina. Apesar de não ser o assunto mais comentado estes dias, tal debate levanta questões que afetam profundamente pessoas ao sul da nossa fronteira e milhões de norte-americanos que têm laços familiares na região. As relações dos Estados Unidos com a América Latina já não podem ser vistas como aspecto regional da política externa. Em um mundo cada vez mais integrado, elas tornaram-se parte fundamental da discussão sobre comércio, emprego, imigração e criminalidade transnacional nos EUA.

Foi neste contexto que Barack Obama tournou-se, há dias, o candidato do Partido Democrático à presidência. As opiniões dividem-se drasticamente. Poucos acreditam que sua plataforma para a política norte-americana na América Latina realmente siga o "Nós acreditamos em mudança".

No período imediatamente posterior à indicação, a campanha inevitavelmente fará acenos ao voto latino, especialmente em estados indefinidos, como a Flórida e o Novo México. Isto irá enevoar a imagem do que se pode esperar, caso Obama torne-se presidente.

Mas posturas eleitorais à parte, as cartas postas à mesa permitem uma primeira leitura do futuro hemisférico. A abordagem de Obama, mais do que as próprias políticas, abre espaço para que passemos de um verdadeiro desastre a uma política de boa vizinhança para a região.
Documento recorrer a Roosevelt e suas quatro liberdades. Os blogs abriram o debate: seriam posturas avançadas, retrógradas ou simples chavões eleitorais?

A primeira carta foi aberta no encontro com a Fundação Nacional Cubano-Americana em Miami, no dia 23 de maio. Com a corrida das primárias esquentando, Obama tentou vencer o poderoso grupo político que anteriormente afundou, no Estado, as esperanças do Partido Democrata. Ele ofereceu à multidão uma combinação de fala dura e novas políticas.

Pouco depois do discurso para os cubano-americanos, a campanha lançou Uma Nova Parceria para as Américas [1]. O documento, de 13 páginas aborda a política externa regional a partir de três eixos principais, que remetem às "quatro liberdades" proclamadas por Franklin Delano Roosevelt [2]: liberdade política / democracia, estar livre do sentimento de medo (segurança), e das necessidades (pobreza).

O discurso e a plataforma provocaram imediatamente polêmcas e trocas mensagens. Nas listas de discussão e nos blogs progressistas e chicanos, debatia-se se estas posições eram positivas, negativas, ou meros chavões eleitorais.

É possível que haja verdade em todas as três avaliações. Parece claro que os posicionamentos expressos no texto estão pouco amadurecidos. Algumas idéias parecem surgidas no momento da redação, e não como resultado de propostas políticas refletidas. Alguns exemplos: a proposta de estender a toda a América Latina o Plano México, oficialmente chamado de Iniciativa Mérida, sequer reconhece que a maioria das iniciativas militares encarnadas por Bush foram repelidas e seriam rejeitadas com veemência por outras nações do continente. Além disso, a ênfase nos mercados de carbono esconde a ausência de programas ambientais abrangentes.

Sem dúvida, porém, a plataforma de Obama marca uma ruptura importante com a política Bush na região. Quando John McCain tomou Otto Reich como seu conselheiro da América Latina, sinalizou a intenção de prosseguir com o pior dos últimos anos na política. Isso fez o sangue ferver na América Latina. Reich afastou os centro-americanos, por sua participação direta no escândalo Irã-contras [3]. Enfureceu os venezuelanos ao apoiar o golpe de 2002 e provocou a ira dos cubanos, por ter protegido Orlando Bosch e Luís Posada Carriles, comprovadamente responsáveis por ataques terroristas anti-Cuba. Por onde passou, Reich deixou um rastro de violações aos direitos humanos e de tenebrosas manipulações políticas.
Sinais de mudança: fechar Guantánomo, acabar com a tortura e as prisões clandestinas no exterior. Anular dívida dos países mais pobres e adotar conceito de "comércio justo"

A equipe de política externa de Obama, por outro lado, mistura veteranos duros com novos pensadores, e parece estar em evolução. Esta heterogenidade transparece por haver, na proposta para a América Latina, tanto apoio de linha dura ao Plano Colômbia quanto oposição a um acordo de "livre"-comércio entre Washington e Bogotá.

Mas tal documento revela uma nova perspectiva sobre a região, que alimenta a esperança de mudanças reais.

O capítulo sobre liberdade política concentra-se na política cubana. Propõe eliminar restrições de viagens à ilha e liberar as remessas monetárias; ao mesmo tempo, "retrocede" na flexibilização do embargo comercial, já que a vê como instrumento de negociação, na transição pós-Fidel. Um certo recuo no compromisso anterior de retirar o embargo é uma jogada eleitoral. Mas o documento sugere tratar-se de uma questão de tempo, não de princípios.

Outras rupturas com a política de Bush incluem o item "Democracia Começa em Casa" que defende o fim das torturas, prisões clandestinas no exterior e detenções indefinidas; o restabelecimento do habeas corpus, e o fechamento de Guantánamo. Estes compromissos concretos não somente mudam vidas, mas transmitem uma clara mensagem aos parceiros latino-americanos que ressaltam há muito o fato de a política externa norte-americana basear-se, muito freqüentemente, em duplo padrão.

O item "Libertar-se das necessidades" apela para uma ajuda maior dos Estados Unidos ao “desenvolvimento de baixo para cima, estando concentrado nas micro-finanças, formação profissional, e programas de desenvolvimento comunitário.” Salienta a necessidade de desenvolver critérios de avaliação e a luta contra a corrupção e de promover liderança pelo exemplo, com decisões de contratação "transparentes e baseadas em mérito". Outros pontos incluem a realização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da ONU, a redução do déficit de educação, especialmente para meninas e mulheres, a anulação de 100% da dívida para a Bolívia, Guiana, Haiti, Honduras, Paraguai, e Santa Lúcia; além de reformas para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial.

Estas propostas vão muito além do programa tradicional dos candidatos democratas. O cancelamento da dívida e a reforma das instituições financeiras internacionais são exigências que movimentos sociais vêm fazendo há anos. O fato de estas questões terem sido incorporadas no plano de Obama para a América Latina indica que ele tem ouvido vozes novas e está disposto a colocar, em questões de justiça social ou a redução da pobreza, a ênfase anteriormente dada ao investimento empresarial, liberalização do comércio, e programas de mudança de regime a partir de bases ideológicas. Algumas das propostas já vem sendo complementadas por ações, tais como a Lei contra a Pobreza Global [4], que Obama propôs, para apoiar a realização dos Objetivos do Milênio.

Em integração econômica regional, a plataforma de Obama rompe com seus próprios paradigmas ao invocar o "comércio justo" (termo vagamente definido), a alteração do Nafta, a oposição ao acordo entre os Estados Unidos e a Colômbia, e incluir a possibilidade de oferecer cidadania para trabalhadores ilegais e seus familiares. O compromisso do candidato com o comércio justo foi posto em causa por seu apoio ao acordo de livre comércio com o Peru e declarações de apoio à plataforma Pelosi-Reid — que promove o livre comércio, mas oferece condições tímidas às questões ambientais e trabalhistas. Contudo, Obama também tem colocado a necessidade de uma análise profunda da política comercial e observa a relação entre as políticas comerciais e de alta de imigração sob o NAFTA.
Em energia, visão multilateral sobre biocombustíveis. E algo novo: documento inclui imigração na política externa, abordando-a com base na garantia dos direitos do trabalho

Até mesmo o item sobre segurança, que tem sido fortemente criticado por mimetizar o de Bush, introduz idéias hereges, se consideradas a partir dos dogmas Bush-McCain. Fala-se em uma maior disponibilidade para assumir e partilhar responsabilidades, tomar a dianteira em desafios internos como o controle de drogas e o tráfico de armas e criar parâmetros mensuráveis, enquanto se enfatizam alternativas não-militares. A inclusão de uma "estratégia norte e uma sul" significa o reconhecimento das responsabilidades norte-americanas e falhas no seu próprio território, e parece romper com as declarações hipócritas que jogam a responsabilidade pela segurança transnacional sobre o Sul e foram usadas para justificar intervenções dos EUA.

A proposta de parceria energética é um dos itens que precisam ser trabalhados. Ela promove novos mercados para as tecnologias verdes, e acredita no mecanismo de comércio de emissões de carbono, sem mencionar a necessidade de exigir indústrias limpas, nos Estados Unidos, ou mudar os padrões de consumo. A proposta também inclui incentivos ao seqüestro de carbono, para desestimular a destruição das florestas. Ao mesmo tempo, ignora o papel que desempenham as corporações norte-americanas e a possibilidade de haver regulamentação internacional. Mas também aqui as reflexões cidadãs encontram espaço. Por exemplo: ao mesmo tempo que ressalta o papel dos biocombustíveis, o documento reconhece o conflito entre a produção de alimentos e de energia.

A imigração em geral não é considerada política externa. Tê-la incluído na plataforma de políticas para a América Latina é ponto positivo para Obama. Sua proposta de "instituir o poder das remessas" está ligada ao compromisso de trabalhar junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), entre outras instituições, para "maximizar o impacto das remessas no desenvolvimento social e econômico em todo o hemisfério." Não fica muito claro o que ele quer dizer com isso. As comunidades de imigrantes precisam de serviços financeiros com custos mais baixos, e algumas organizações têm obtido sucesso em projetos de desenvolvimento coletivo, financiados através de remessas coletivas. Todavia, com a crise nos preços dos produtos alimentares e aumento do custo de vida, é provável que a maior parte das remessas aos países de origem continuem a responder às necessidades básicas das famílias dos imigrantes.

O mais importante: Obama reitera o compromisso de fazer uma ampla reforma nas políticas de imigração, como "prioridade absoluta em meu primeiro ano como presidente." Sua proposta inclui achar um caminho para o reconhecimento da cidadania adquirida, enfrentar a burocracia disfuncional e a referência obrigatória para a segurança das fronteiras. Em resposta recente a questionário do The Sanctuary, organização que se dedica a temas latinos, ele complementa a necessidade de uma reforma na imigração com a necessidade de "incentivar a criação de empregos e o desenvolvimento econômico para diminuir a pressão para imigrar." Ele modera todas as propostas de programas para convite à imigração afirmando que devem prever "maior proteção aos trabalhadores e não impossibilitar a aquisição da cidadania norte-americana". Seu programa para a América Latina faz, concretamente, apelo para a participação de imigrantes na diplomacia pública.
Aspecto mais conservador está nas políticas "de segurança". Obama insiste em manter o "Plano Colômbia" e em estender à América Central a "parceria" indesejável com o governo de direita do México

De longe, o ponto mais controverso sobre as posições de Obama em respeito à América Latina é sua preocupação com políticas de segurança. Elas têm provocado imensa controvérsia entre progressistas latinos, latino-americanos, e os analistas de política regional.

Obama lançou sua plataforma poucas semanas após o ataque do governo colombiano a um acampamento das FARC no Equador. A maioria das nações do continente, com exceção da Colômbia, apoiada pelos Estados Unidos, condenou a incursão, pelo fato de ela violar o direito internacional e os combatentes não terem sido atacados por auto-defesa, mas enquanto dormiam.

A incursão militar foi a oportunidade de mostrar o quanto o direito internacional precisa estar acima das alianças ideológicas, mas Obama fez precisamente o contrário. Ele não somente justificou o ataque do governo Uribe, mas sugeriu que:

“O Programa Andino contra as Drogas continue e seja atualizado, de forma que responda à evolução dos desafios. Vamos apoiar plenamente a luta da Colômbia contra as FARC. Iremos trabalhar com o governo para pôr fim ao reinado do terror dos paramilitares de direita. Vamos apoiar o direito desse país atacar terroristas que procuram refúgio seguro além de suas fronteiras. E vamos denunciar os governos vizinhos que derem apoio às FARC. Este comportamento deve ser exposto a condenação internacional e regional. Em caso de necessidade, adotaremos fortes sanções. Isto não pode continuar”.

O entusiástico apoio a Álvaro Uribe, na guerra contra as FARC, claramente não resultou em mudanças na atitude do governo colombiano. Uribe desdenhou de Obama publicamente por sua oposição ao Acordo de Livre Comércio entre EUA e Colômbia. Além disso, orquestrou a recente visita de McCain, dando apoio a um governo republicano em 2009. Como Obama e Uribe não morrem de amor um pelo outro, a verdadeira questão é: a quem o candidato está tentando agradar, com a linguagem dura e uma política unilateral que está desenhando?

Outro longo item sobre segurança é dedicado ao México. O texto de Obama para a América Latina apoia o Plano México e propõe "nova iniciativa para a segurança com os nossos vizinhos latino-americanos, que se estenda à América Central."

México e Colômbia são as únicas grandes nações governadas pela extrema-direita na América Latina. Apoiar o modelo militar e policial incorporado nos planos Colômbia e México, e a tentação de equiparar a cooperação regional dos EUA com envolvimento militar, contradiz de forma clara os princípios rooseveltianos invocados no resto do documento. Talvez a "nova iniciativa de segurança" a que se refere, possa servir para alterar e não apenas ampliar o Plano México. Mas, se este for o caso, a equipe de Obama deveria desenvolver algo a partir de uma crítica do plano Bush.
Declarações do candidato sobre Chávez causaram desconforto entre parte da esquerda. Mas, ao contrário de Bush, Obama sustenta que quer diálogo com governo da Venezuela

E se, como Bush, o governo Obama planeje cavar um fosso no interior da América Latina, ao premiar aliados ideológicos e punir supostos inimigos, então teremos um problema real.

Não parece ser esse o caso, porém. Nas últimas declarações de Obama em resposta ao questionário do The Sunctuary, ele ponderou suas posições mais exóticas. Sobre o Plano Colômbia, ele observa:

“Apóio o Plano Colômbia. Contudo, é importante observar atentamente para saber se a nossa ajuda à Colômbia reflete a combinação certa de combate ao tráfico de drogas e apoio aos esforços legítimos de agricultura."

E sobre o Plano México, Obama abre espaço para alguma ambigüidade quando afirma a importância da assistência americana "devidamente orientada" para derrotar as "quadrilhas da droga" mexicanas.

Ele acrescenta: "Temos de examinar cuidadosamente o recente pedido do governo em relação ao Plano México, sobretudo tendo em conta o segredo que envolve a formulação da proposta deste pacote." O Congresso já destinou US$ 465 milhões ao Plano México e existe um outro pedido de US$ 400 milhões, que está sendo aguardado para o ano fiscal de 2009. Para fazer desta declaração mais do que simples retórica, é preciso promover, imediatamente, um exame crítico da extensão das políticas de segurança de Bush para o México e América Central.

A fala dura de Obama sobre criminalidade e violência é equilibrada por soluções não-militares e um compromisso de envolvimento com a Venezuela, Cuba e o resto da região. A retórica anti-Chávez, corretamente criticada por muitos como imprecisa e divisionista, não é assim tão perturbadora no contexto. Na relação entre EUA e Venezuela, ambas as partes parecem tender ao nervosismo, mas até agora ninguém pareça está atirando paus e pedras. Enquanto analistas políticos progressistas queixam-se das definições mal-informadas que Obama usou para se referir a Hugo Chávez, poucos recordam que o candidato está entre os primeiros e únicos políticos a anunciar a sua disponibilidade para uma reunião com o presidente venezuelano, e tem reiterado que não voltará atrás.
Entre o público progressista, três avaliações distintas sobre o primeiro documento de Obama. Em cada uma, um pouco de verdade

Por último, o documento do democrata comete alguns pecados de omissão importantes, que precisam ser corrigidos no futuro. O candidato só respondeu através de longos silêncios a assuntos que poderiam definir uma nova política regional, construída sobre os princípios que ele tem defendido mais veementemente. Um deles é o fechamento da Escola das Américas, a escola de formação militar em Fort Benning, Geórgia, agora renomeada Instituto de Cooperação de Segurança do Hemisfério Ocidental (WHINSEC). Ativistas têm pressionado o Congresso para encerrar as atividades da instituição que treinou alguns dos piores violadores de direitos humanos nas Américas.

Citando muitos destes pontos, o autor Greg Grandin conclui que "a Doutrina Obama" não irá representar uma ruptura clara com a Doutrina Monroe, que preza a hegemonia norte-americana na região. Tom Hayden, mais otimista, enxerga uma "palavra ambígua" e um "início corajoso", ao passo que os críticos condenam o discurso e a plataforma como sendo mais do mesmo.

Aqui entra o salto de fé. Fatores de subjetividade aparecem no debate da plataforma de Obama para a América Latina. Ninguém acredita de fato que a política adotada seja igual à retórica da campanha. Assim, a discussão gira torno de saber se o candidato vai avançar em direção ao lado progressista ou conservador de sua plataforma eleitoral. Tal como profetas bíblicos, estamos esperando pelos sinais.

Um dos lados considera que seus "instintos são bons" para a construção de uma política externa mais humana, e as posições mais conservadoras são eleitoralistas. Entre os progressistas descrentes, existem três posições. Os céticos de Obama acreditam que suas posições progressistas compõe sua postura; porém, uma vez no gabinete, o status quo vai prevalecer. Céticos institucionais afirmam que o sistema eleitoral bipartidário nos Estados Unidos nunca irá produzir uma verdadeira mudança – sua queixa não é tanto contra Obama, mas dirige-se a qualquer pessoa que emerja do sistema político afirmando que vai mudá-lo. Finalmente, os “sistêmicos" acreditam que o sistema internacional triunfa sobre o poder de qualquer presidente — até mesmo o da nação mais capitalista e poderosa do mundo — para fazer mudanças fundamentais, mesmo caso ele (ou ela) quisessem. São, é claro, generalizações — e todas as posições têm algo de verdade. E elas servem para caracterizar debates importantes e latentes em torno da candidatura de Obama.

Em 2004, escrevi que a principal expectativa dos governos e sociedades latino-americanas em acompanhar atentamente as eleições nos Estados Unidos era evitar que as coisas piorassem. Pedir uma política de boa vizinhança parecia demais, e John Kerry — o então candidato do Partido Democrata — não conseguiu sequer romper com a retórica com os programas de "promoção da democracia", uma intervenção militar mal- dissimulada, no âmbito da chamada guerra ao terrorismo e às drogas. Em outras áreas, o candidato democrata à época conseguiu fazer bem o discurso, mas as propostas de política externa repetiam as fórmulas exauridas do passado.

Por que há uma sensação diferente, agora?

A primeira razão é que a política da Obama para região reflete uma significativa mudança de perspectiva. A melhor maneira de ilustrá-lo é a seguinte frase a partir de seu discurso em Miami:
"O que é bom para a população das Américas é bom para os Estados Unidos". Frase expressa total inversão na postura norte-americana na América Latina, e permite apostar na mobilização

"É tempo para uma nova aliança das Américas. Após oito anos de vigência das políticas fracassadas do passado, precisamos de novas lideranças para o futuro. Depois de pressionarmos durante décadas por reformas de cima para baixo, precisamos de uma agenda que promova a democracia, a segurança e oportunidades de baixo para cima. Por isso, a minha política para as Américas será orientada pelo simples princípio de que o que é bom para a população das Américas é bom para os Estados Unidos. "

"O que é bom para a população das Américas é bom para os Estados Unidos" não é nada menos que uma total inversão da história norte-americana na região. E a América Latina de hoje mostra que esta nova fórmula não é baseada em altruísmo, mas em uma leitura atenta da realidade. A maior parte das ameaças para a segurança humana, bem-estar econômico e as liberdades democráticas tem surgido justamente devido à sucessão de governos e das políticas do governo norte-americano. As instituições financeiras internacionais tornaram impossível fazer "o que é bom para o povo." O resultado é que a América Latina enfrenta maior desigualdade do que qualquer região do mundo, e mais de metade da população vive em estado de pobreza.

Esta perspectiva parece também reconhecer que a América Latina amardureceu e valida, em princípio, experiências de reforma na região que o governo Bush tem amaldiçoado.

Não é por acidente que o programa de Obama para a América Latina saiu de um modelo rooseveltiano. Ultimamente o candidato, o grupo Progressistas por Obama [5], outros think-tanks, e grupos de cidadãos têm usado os conceitos de Roosevelt para tentar reconstruir os princípios da Política de Boa-vizinhança da década de 1930, e também para demonstrar à opinião pública norte-americana que uma mudança significativa na nossa política externa é possível.

Para a América Latina — o espaço em que foi encenada a Política de Boa-vizinhança original — a analogia é especialmente relevante. Hoje, muitos movimentos populares e novos governos inclinados à esquerda defendem programas sociais mais próximos ao New Deal de Roosevelt que ao "Consenso de Washington". O governo Bush, que enxergou isso como uma ameaça, não pode perceber que as turbulências na América Latina eram um convite para rever o atual modelo de integração econômica e a adotar maior flexibilidade.

Este é o outro motivo por que a política para a América Latina é importante hoje. Livre de conflito generalizado, repleta de democracias e num processo de grandes redefinições de políticas, a região é um laboratório para mudanças, em um mundo globalizado. É exatamente o que há diversos países têm feito por lá, ao longo dos últimos anos.

Em segundo lugar, existem razões para suspeitar que Obama, o ser humano, tem de fato bons instintos. Seu passado, sua experiência em organização, e os suas posições anteriores na vida política diferem das da maioria dos políticos, e sua posição na comunidade afro-americana lhe permite maior sensibilidade para os historicamente excluídos.

"Corresponder à retórica com atos", a expressão utilizada no documento sobre a América Latina, será um grande desafio. Obama terá de fazer jus à promessa de buscar "o que seja bom para todos, não só para Wall Street", insistindo que as corporações devem obedecer o direito internacional e sacrificar parte dos mega-lucros que retiram da exploração dos recursos naturais nos países da América Latina. Se isso significa dizer à Chevron que está sozinha na batalha legal contra o governo equatoriano, envolvendo destruição de milhares de hectares de floresta amazônica, ou à Chiquita que não é bom contratar paramilitares para proteção na Colômbia, exclente.
Dois equívocos a evitar: a crença em que a simples eleição de Obama dará início a uma nova era e o fatalismo de pensar que ele governará obrigatoriamente de acordo com as mesmas velhas práticas

Como em todos os aspectos da reforma na política externa, o fator crítico na definição de uma nova política regional é a capacidade de romper a inércia em Washington, que tem limitado a visão e a ação para mudança. A equipe de Obama terá de receber com uma pitada de desconfiança as recomendações políticas e econômicas do, digamos, Conselho de Relações Exteriores. Num recente relatório, o órgão voltou a lançar apelos cansativos à liberdade de comércio e ecoou Condoleezza Rice, ao considerar medidas para a redistribuição da riqueza nacional, adotadas na América Latina, como um sinal de "ressurgimento dos nacionalismos." Eleito presidente, ele deve estar disposto a manter as promessas políticas, mesmo quando os lobbies pressionarem, ou que os analistas de pesquisas e os políticos tradicionais "advertirem" que tais promessas não são majoritáris.

A razão mais importante para pensar seriamente em mudança é que a campanha de Obama é maior do que o próprio candidato. A mídia tem procurado convencer o público a ser cético em relação a uma mudança real. O movimento, ainda incipiente, para desafiar esta domesticação é o maior feito da campanha de Obama até agora. As relações de respeito mútuo no hemisfério não dependem apenas de eleições presidenciais; dependem de uma reativação da sociedade civil nas Américas, em um momento crítico para a região.

No debate sobre a mudança na política externa, não se trata novamente de sentar e esperar para ver quem tem razão: os que acreditavam que elas eram possíveis ou os que apostaram no fracasso. Não podemos abrir espaço para os extremos. Nem o cenário otimista, segundo o qual a simples assunção de Obama dará início a uma nova era nas relações dos EUA com a América Latina; nem o pessimista, em que, congelado pela inércia do sistema, ele vai governar de acordo com as mesmas velhas práticas. Nenhuma destas visões abre espaço para a participação ativa dos cidadãos na definição de uma nova política externa.

Se a campanha de Obama continuar a construir uma base popular, incorporando setores da população que haviam sido afastados da participação democrática — especialmente jovens —, teremos a matéria-prima para fazer a mudança. Em última análise, esta mudança não irá depender somente de receitas políticas, mas de uma nova auto-imagem política coletiva que, como disse Roosevelt, respeita a si mesma, a fim de respeitar os direitos dos outros.


[1] O [texto (em inglês) pode ser baixado no site da candidatura de Barack Obama. Para acessá-lo (em pdf), clique aqui

[2] Em um discurso ao Congresso dos EUA, em 1941, Roosevelt enunciou o que seriam, para ele, as quatro liberdades essenciais: liberdade de expressão (freedom of speach), que incluía os direitos políticos da democracia; liberdade de culto (freedom of religion); estar livre do medo (freedom from fear), que, segundo ele, se relacionava à luta contra as agressões entre países; e estar livre das necessidades (freedom from need), referência à garantia de uma vida digna.

[3] Mais informações sobre o episódio na Wikipedia

[4] Para maiores informações sobre a lei, ver o site GovTrack (em inglês)

[5] Progressives for Obama. O manifesto de lançamento do grupo foi publicado pela revista The Nation.
Fonte: Le Monde Diplomatique.

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