Ferreira Gullar se autoiludiu, iludindo os leitores.
Pedro do Coutto
No espaço que aos domingos ocupa brilhantemente no Caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, neste fim de semana, o intelectual Ferreira Gullar, num impulso para reduzir a importância da aprovação final do governo Lula, na escala recorde de 87%, segundo tanto o Ibope quanto o Datafolha, afirmou que o presidente Médici encerrou seu período com popularidade igual. Médici foi ditador de 69 a 74.
Gullar, um perseguido político que teve de se exilar do país, conhece bem o tempo e sofreu diretamente, por sua participação no antigo centro Popular de Cultura, o peso dos anos de chumbo. Claro que Gullar, numa espécie de auto hipnose se enganou e, com isso, contribuiu para iludir os leitores mais jovens.
Errou. Tanto assim que nas eleições de 74 o PMDB venceu disparado elegendo 16 senadores, um por estado, e dobrando sua representação na Câmara. Em São Paulo, por exemplo, Orestes Quércia derrotou Carvalho Pinto. No Rio de Janeiro, Danton Jobim venceu Gama Filho. Em Minas Gerais, Itamar Franco despontava no plano federal batendo José Augusto por larga margem. Foi o chamado marevoto contra a ditadura militar.
Ao contrário do que sustentou o jornalista e poeta, cuja importante obra de arte é relançada agora de forma integral, os números mostram que a comparação entre Lula e Médici só destaca Lula. Pois enquanto os militares perdiam disparado nas urnas, Lula vencia Serra em 2002 por 62 a 38. Quatro anos depois, batia Geraldo Alckmim por 61 a 39. E, no ano passado, ainda elegeria Dilma Roussef por 56 a 44%.
Gullar deixou-se levar pela emoção contra a razão. Errou. Não foi o único artista a se equivocar. Nem isso abala sua obra. Mas é preciso não brigar com os fatos. Pois como diz o belo verso de Vinicius de Moares, a vida tem sempre razão.
Em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, um grande poeta americano de Idaho, Ezra Pound, não sei porque razão enveredou pelo sinistro caminho de apoiar o nazismo. Aliás, o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini, pois o autor dos “Contos”, tradução do meu saudoso amigo José Lino Grunewald, vivia na Itália. Em Veneza, onde praticamente não há referência sobre sua vida. Tornou-se uma figura do passado entre o Grande Canal e a Praça de São Marcos, onde se encontram obras notáveis da Renascença.
Em junho, os aliados desembarcaram na Normandia para libertar a França do jugo de Hitler. Tomavam as praias, e depois de muita luta, rumavam para Paris. Ezra Pound, através de programa de rádio, dizia exatamente o contrário: que as forças americanas, inglesas, canadenses e um batalhão de voluntários poloneses estavam sendo dizimados e destroçados. Qual a explicação para o que se passou na cabeça do gênio?
Ferreira Gullar, claro, não enlouqueceu, mas a mim parece que não consegue ouvir falar de Lula. Talvez pela falta de sintonia que separa ambos diante da beleza e da eternidade da arte. Deve ser por aí. Mas Gullar, que não nega a força da intuição no ser humano, deveria considerar este aspecto em favor do ex-presidente da República. Perdeu três eleições, venceu outras três e deixou o Planalto consagrado pela opinião pública. Um apoio de 87% não pode vir apenas das classes de menor renda. Não seriam suficientes, somadas, para conduzir a esse patamar. Não.
Seu êxito é produto de acertos concretos porque, sem eles, ninguém atinge escala assim. Deixo uma sugestão a Ferreira Gullar à altura de seu talento: reveja o índice Médici e torne mais flexível seu pensamento em relação ao ser humano Luiz Inácio. As razões de seu sucesso são mais profundas do que parecem numa primeira leitura, expressão da moda. Numa segunda visão, a imagem aparecerá com mais nitidez. E menos paixão.
Fonte: Tribuna da Imprensa online.
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