No dia 31 de março de 1964 se iniciou uma longa e tenebrosa noite que durou 21 anos. Milhares foram perseguidos, torturados, assassinados e até hoje os criminosos não foram punidos.
ENQUANTO OS DEMAIS PAÍSES JULGARAM E CONDENARAM SEUS GENERAIS CRIMINOSOS RESPONSÁVEIS PELAS DITADURAS CRUÉIS QUE ASSOLARAM A AMÉRICA LATINA NAQUELES TRISTES ANOS, NO BRASIL A OPÇÃO FOI CONTEMPORIZAR COM OS GENERAIS CRIMINOSOS E SEUS APOIADORES CIVIS.
Pra que não percamos a memória daqueles anos cruéis e tentar iluminar corações e mentes de quem defende a volta aqueles nefastos tempos onde a Ditadura imperou, republico artigo da Cynara Menezes :
Na tarde do dia 28 de março de 1968, quatro anos após o golpe militar, um grupo de policiais armados invadiu o restaurante público Calabouço, no centro do Rio de Janeiro. A intenção era reprimir o movimento de estudantes que reclamava dos preços do restaurante, centro de encontro e de discussão política da oposição jovem à ditadura. Na entrada, segurando uma bandeja, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, recebeu um tiro à queima-roupa no peito e morreu na hora.
Edson, o primeiro estudante a ser morto pelo regime, é uma das 434 vítimas fatais oficialmente reconhecidas pela ditadura militar no Brasil. O blog fez um levantamento por idade entre os mortos e desaparecidos e descobriu que 56% deles eram jovens como ele: tinham menos de 30 anos de idade. 29%, ou quase um terço dos mortos e desaparecidos da ditadura, tinham menos de 25 anos. São esses meninos que os defensores do coronel Brilhante Ustra falam que pretendiam implantar a “ditadura do proletariado” no País e por isso foram barbaramente torturados e executados.
Este raciocínio é, além de cínico, falacioso. Não se pode comparar o poderio militar do Estado, com seus tanques, fuzis, metralhadoras, bombas e soldados fortemente armados, com algumas dezenas de jovens que entraram para a guerrilha com o sonho de derrotar um regime de força. Só alguém desprovido de inteligência (ou mal-intencionado) pode comprar o caô de que os militares utilizaram a tortura para “evitar que transformassem o Brasil em Cuba”. Para aceitar isso, é preciso admitir que um governo militar apoiado pelos EUA era “frágil”, em vez dos ferozes brucutus contra quem os adeptos da luta armada mais pareciam o exército de Brancaleone.
Ora, a primeira intenção dos guerrilheiros era acabar com a ditadura militar; o que fariam depois pouco importa, ainda mais quando sabemos que esta vitória jamais se concretizaria, dada a desproporcionalidade dos dois lados em disputa. O que os adeptos da luta armada fizeram pode ser considerado, no máximo, sabotagem do regime. Algo inteiramente legítimo em se tratando de lutar contra a tirania. São, portanto, heróis. Quem os chama “terroristas” é conivente com o terrorismo de Estado perpetrado durante 21 anos em nosso País.
Mas o mais grave é que essa mentira esconde um fato facilmente comprovável ao se estudar as biografias dos mortos pelo regime. Os defensores do DOPS e do DOI-CODI tratam os torturados e mortos como se todos fossem Lamarcas e Marighellas. Só que muitos deles tiveram trajetórias semelhantes à de Edson Luís: envolvimento incipiente ou nulo na militância política. “No primeiro período, a repressão era contra a luta armada. Depois do AI-5, passou a ser contra qualquer um que se posicionasse contra a ditadura”, diz o ex-deputado Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade em São Paulo. “Eu mesmo nunca peguei numa arma e fiquei 90 dias na solitária na OBAN (Operação Bandeirante)”.
Naqueles anos, participar de uma passeata contra o governo era o suficiente para receber um tiro no meio da cara. Um coxinha destes que ia às ruas xingar a Dilma, por exemplo, poderia ser assassinado sem qualquer justificativa, como aconteceu com Edson ou com o goiano Ornalino Cândido da Silva.
Ornalino foi um dos estudantes que, em 1968, se rebelaram contra a ditadura sob a inspiração de Edson Luís. Seu “erro”: participar de uma manifestação contra o governo em Goiânia, onde morava, no dia 1º de abril, exatos quatro anos após o golpe. Quando o grupo já se dispersava, foi alvo de uma cilada: armados com fuzis, metralhadoras, bombas, revólveres e cassetetes contra guris desarmados, policiais militares desceram o sarrafo nos estudantes. Um sargento encostou a arma na têmpora esquerda de Ornalino e atirou. Ele tinha 19 anos.
Em alguns casos, bastava ser jovem: mesmo sem comprovação de que a pessoa fizesse parte de um movimento ou organização clandestina, os militares se achavam no direito de invadir sua casa e simplesmente desaparecer com ela. Paulo Torres Gonçalves, também de 19 anos, era estudante secundarista e funcionário do Ibope no Rio, sem militância comprovada até hoje. Em 26 de março de 1969, seus pais receberam a notícia de que Paulo havia sido preso pelo DOPS sabe-se lá por quê, mas que seria libertado em breve. Nunca foi encontrado.
Na manhã do dia 21 de junho de 1968, que passou à história como a “sexta-feira sangrenta”, os estudantes faziam uma manifestação em frente ao prédio do antigo MEC (Ministério da Educação e Cultura), no centro do Rio de Janeiro, quando, na esquina das ruas México e Santa Luzia, agentes do DOPS, da Polícia Federal e soldados da PM gritaram que atirariam para matar. E atiraram. Três moças que participaram do protesto caíram feridas. Atingida no rosto, a comerciária Maria Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu em seguida.
Como vivíamos um estado de exceção, os militares, mesmo os de mais baixa patente, se comportavam como donos do Brasil, invadindo propriedade privada quando lhes dava na telha. Em junho de 1968, dois civis e dois militares à paisana chegaram ao bar e pensão Estrela Dalva, em Francisco Beltrão, no Paraná, e tentaram entrar na residência sem autorização. Foram barrados por Iguatemi Zuchi Teixeira, de 24 anos, funcionário da casa, e o conflito resultou em luta corporal. No dia seguinte, Iguatemi foi levado para o quartel do Exército e não voltou mais.
“Doutor, veja se me tira hoje mesmo de lá. Estão me surrando muito. Não aguento mais uma noite”, disse ele ao advogado, dias antes de ser fuzilado por um dos soldados com quem tinha se indisposto. No laudo cadavérico, aparece escrito que Iguatemi morreu “por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel, devido ao número e ao tipo de lesões encontradas”. A causa da morte era “anemia aguda por hemorragia interna e externa provocada por ferimentos penetrantes de abdômen e tórax” por “instrumento perfuro-contundente”.
Fala-se tanto que os guerrilheiros mataram militares inocentes em suas ações, como foi o caso de Mário Kozel Filho. Mas e os militares inocentes torturados e mortos pelos próprios militares? Segundo sargento do Exército, Manoel Alves de Oliveira, de 29 anos, foi arrancado de casa em abril de 1964, na frente da mulher e dos cinco filhos pequenos, por um homem em trajes civis acompanhado de outros à paisana, e levado em uma Kombi. Foi torturado com ferro quente e recebeu choques elétricos, ainda que as únicas acusações contra ele fossem de ter se candidato à presidência do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército e de ser simpatizante do ex-presidente João Goulart.
“Numa das poucas vezes em que consegui visitá-lo, verifiquei que o seu corpo estava coberto de marcas, que mais tarde soube serem de ferro quente. Estava transformado em um verdadeiro flagelado, com a barba e os cabelos crescidos”, disse sua mulher, Norma Conceição, ao extinto jornal Correio da Manhã, em setembro de 1964. Quando Norma o viu novamente, Manoel estava morto.
A farsa dos “suicídios” não aconteceu apenas com o jornalista Vladimir Herzog. Era algo banal para o regime assassinar alguém e depois encenar que a vítima “se matou”. O ferroviário José Nobre Parente tinha 38 anos quando foi preso, no Ceará, acusado de participar do movimento dos trabalhadores da RFFSA (Rede Ferroviária Federal). Dois dias depois, em 19 de maio de 1966, a mulher de Parente foi visitá-lo e ouviu o delegado dar a ordem ao carcereiro de verificar se o preso “estava em condições de receber visita”, mas Parente já estava morto na cela. Teria “se enforcado” com um cinto, sendo que no dia anterior a própria Francisca tinha recolhido seus pertences pessoais: um anel, a aliança, o relógio e… o cinto.
Os ferroviários foram proibidos de comparecer ao velório e ao cemitério, mas muitos não respeitaram a ordem e pularam o muro da empresa para ir até lá. Durante o velório, o irmão da vítima, Valfredo, recebeu a certidão de óbito, onde a causa mortis era “fratura de crânio”. Ao denunciar a insólita modificação, Valfredo acabou sendo preso. A farsa do suicídio se completaria quatro anos mais tarde, em 1970, com uma nova certidão em que constava “asfixia mecânica por constrição do pescoço, enforcamento” como a causa da morte de José Nobre Parente.
Estudante secundarista, Ismael Silva de Jesus era militante do PCB e foi preso em Goiânia três dias antes de completar 19 anos, em agosto de 1972. Foi brutalmente espancado e levou choques elétricos, mas seu corpo foi entregue à família como se tivesse se matado com uma corda de persiana por sentir “vergonha de estar preso”. A verdade só viria à tona em 1991.
Até mesmo supostos desertores da guerrilha foram vítimas de “suicídios” suspeitos. Celebrado pela mídia golpista de então como um “terrorista arrependido” e exibido pela ditadura como propagandista contra os rebeldes, Massafumi Yoshinaga chegou a ser vice-presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas e militou na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), embora não tivesse participado de nenhuma ação armada. Em meados de 1970, aos 21 anos, teria se entregado voluntariamente aos órgãos de segurança.
A partir daí, passou a aparecer em rádios e TVs como “ex-terrorista”, mas logo começou a apresentar sequelas psicológicas –hoje se sabe que alguns destes “arrependimentos” também eram resultado de tortura. Yoshinaga passou a sofrer alucinações e a repetir que a OBAN iria matá-lo. Submeteu-se a tratamentos psiquiátricos e chegou a ser internado, mas acabaria cometendo três tentativas de suicídio: na primeira, se jogou embaixo de um ônibus; na segunda, tentou se atirar pela janela; na terceira, morreu. Teria se enforcado com a mangueira de plástico do chuveiro, em casa.
Outro suicídio suspeito vitimou a baiana Esmeraldina Carvalho Cunha, de 49 anos, encontrada morta em casa com um fio de máquina elétrica em volta do pescoço em outubro de 1972. Havia um ano que Esmeraldina interpelava militares, inconformada com a morte da filha caçula Nilda, de apenas 17 anos, após dois meses de torturas em Salvador. Nilda estava no apartamento em que foi morta Iara Iavelberg, companheira de Carlos Lamarca, quando foi presa, em agosto de 1971. Entre as torturas a que foi submetida, Nilda foi obrigada a tocar no corpo frio da guerrilheira morta. A estudante saiu de lá com cegueiras repentinas, deprimida e com alucinações.
Internada num hospital na capital baiana, a menina recebeu a “visita” do major Nilton de Albuquerque Cerqueira, que ameaçou levá-la de volta se não “parasse com suas frescuras”, como contam os jornalistas Oldack Miranda e Emiliano Neto no livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha. A saúde de Nilda piorou e ela veio a falecer em novembro de 1971. Seu prontuário dizia que não comia, via soldados dentro do quarto, e repetia que ia morrer. Não se sabe a real causa da morte. No atestado de óbito aparece “edema cerebral a esclarecer.” Pouco antes de “se suicidar”, Esmeraldina, sua mãe, recebera a visita de um desconhecido que lhe levara um recado: “o major mandou avisar à senhora que se não se calar, nós seremos obrigados a fazê-lo”.
A covardia dos militares também foi grande com idosos. Leopoldo Chiapeti tinha 58 anos quando foi preso em sua casa, em Mariano Moro (RS), no dia 30 de abril de 1964. Era acusado de pertencer ao “grupo dos onze”, ligado a Leonel Brizola. Foi mantido nu e incomunicável durante quase um mês, período em que sofreu choques elétricos, inclusive nos genitais, e afogamentos em água gelada. Nunca se recuperou das torturas, e, no ano seguinte, morreu.
Na caça aos guerrilheiros no Araguaia, os militares deixaram terra arrasada por onde passaram, torturando e matando camponeses que encontraram pelo caminho. Sebastião Vieira da Silva foi preso e torturado por tropas do Exército na frente de familiares e vizinhos em 19 de janeiro de 1972, em Poço Azul, município de São Geraldo do Araguaia, onde vivia com a mulher e os filhos. Buscavam informações sobre uma guerrilheira chamada “Dina”. Antes de deixarem o local, os soldados mataram os animais e destruíram a roça da família, sob o argumento de que poderiam ser usados para alimentar guerrilheiros. Sebastião faleceu uma semana depois, em decorrência das torturas.
Se a ditadura fazia isso com cidadãos comuns, quando era alguém que de fato tinha ligações com a luta armada, aí a coisa era ainda mais tenebrosa, não importando a idade do sujeito. O estudante paulistano Eremias Delizoicov, militante da VPR, foi morto aos 18 anos, em outubro de 1969, no Rio de Janeiro, fuzilado com 19 tiros, após o “aparelho” em que se encontrava ser cercado pelo Exército. Os pais do garoto nunca receberam os restos mortais.
Eremias ficou tão deformado que, em seu depoimento à Comissão da Verdade, o jornalista Urariano Mota disse: “Na foto, não reencontro Eremias. A imagem é de um cadáver de 18 anos perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque só uma ferida, os cabelos, tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, que fazem a impressão de Eremias flutuar no chão seco.”
Todas essas tragédias e outras mais podem ser conferidas no relatório da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (clique aqui para pesquisar você mesmo). É somente conhecendo a verdade que se é capaz de julgar, e não dando ouvidos a políticos e jornalistas da extrema-direita truculenta, interessados em falsear os fatos de acordo com seus interesses ideológicos.
Quem conhece a História e segue apoiando a ação de torturadores e assassinos que se escondem detrás da falácia de que estavam “salvando o Brasil de uma ditadura comunista” ou é cúmplice ou tão psicopata quanto foi Brilhante Ustra.
Na Foto de Capa, Mãe do Estudante Edson Luiz chora sobre o Caixão do Estudante. Foto Reprodução
Foto de Capa, Maria de Belém Souto Rocha no velório de seu filho, o estudante Edson Luís — Arquivo Nacional » Memórias
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