11 de setembro, dez anos depois: ''Nesse inferno, eu descobri a graça''.
Entrevista especial com James Martin
“Na manhã do 11 de setembro de 2001, eu estava trabalhando em minha mesa na revista America. Perto das 9 horas da manhã, minha mãe me telefonou da Filadélfia para dizer que ela tinha ouvido falar de um avião que havia colidido com o World Trade Center. Achei estranho que ela me telefonasse; ela sabia que os nossos escritórios ficavam na parte alta da cidade, não no centro. Poucos minutos depois, eu liguei a TV. Foi só então que eu vi a tragédia em desdobramento.”
É assim que James Martin, padre jesuíta e editor de cultura da renomada revista semanal America, dos jesuítas dos Estados Unidos, inicia um recente relato publicado em sua coluna Of Many Things, retratando o que ele viveu na manhã do fatídico dia do ataque às Torres Gêmeas, há 10 anos.
Na tarde desse mesmo dia, Martin foi caminhando pelas ruas vazias do centro de Nova Iorque até o lado leste da cidade, ao Chelsea Piers, um grande centro de eventos e de esportes, onde ficou aguardando para ajudar as vítimas que nunca chegaram – houve muito poucos sobreviventes. No dia 13, ele perguntou aos policiais se não precisavam de ajuda no centro da cidade. Foi assim que ele acompanhou os oficiais até “o lugar”. “Era uma visão horrível, da qual certamente você já viu fotografias. Dez anos depois, eu ainda me lembro do cheiro acre que permeava tudo”.
Mas foi “nesse inferno que eu encontrei a graça”, relata o jesuíta. “Trabalhar no World Trade Center foi uma das experiências mais profundas do Espírito Santo que eu já tive”, uma experiência de “caridade, unidade e concórdia”.
A IHU On-Line entrevistou Martin por e-mail para aprofundar essa experiência que marcou a história, também a partir do ponto de vista cristão. Além do 11 de setembro, Martin também comenta alguns de seus livros, best-sellers nos EUA, e o papel da teologia no mundo e na cultura contemporâneos.
James Martin é padre jesuíta e editor de cultura da revista semanal America, fundada em 1909 pelos jesuítas dos EUA. É formado em economia pela Wharton School of Business, da Universidade da Pensilvânia. Depois de trabalhar durante seis anos no setor de finanças e de recursos humanos da General Electric Co., entrou na Companhia de Jesus em 1988. Formou-se em filosofia pela Universidade Loyola de Chicago e em teologia pela Weston Jesuit School of Theology, de Cambridge, onde também fez seu mestrado e doutorado em Teologia. Trabalhou por dois anos junto ao Serviço Jesuíta aos Refugiados, em Nairóbi, no Quênia. É o autor de vários livros, dentre os quais destacamos My life with the saints (Loyola, 2006), que vendeu mais de 120 mil cópias nos EUA. A obra recebeu o Prêmio Christopher de 2007, concedido por uma grande organização cristã dos EUA, foi nomeado como um dos “melhores livros” de 2006 pela revista Publishers Weekly e também recebeu o prêmio de primeiro lugar da Catholic Press Association. Seu livro mais recente é The Jesuit guide to almost everything (HarperOne, 2010). Em português de Portugal, publicou Torna-te aquilo que És: Da imitação à autenticidade (Edições Paulinas, 2009). Martin também participa frequentemente em programas da TV dos EUA, comentando sobre religião e espiritualidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Passados dez anos após os eventos de 11 de setembro, como o senhor analisa essa tragédia? Em sua opinião, que aspectos são os mais importantes para compreender esse episódio que marcou a história recente?
James Martin – Na verdade, é bastante difícil analisar uma tragédia como essas. Eu diria, entretanto, que nos dias e nas semanas depois do 11/9 parecia haver um sentimento de unidade nacional tremendo, quase palpável, mas que se dissipou tão logo nós invadimos o Iraque, algo que mais ou menos dividiu o país politicamente.
IHU On-Line – Qual foi o papel da Igreja Católica dos EUA nos momentos posteriores à tragédia? Quais foram as suas maiores contribuições e os seus maiores desafios?
James Martin – Como havia muitos bombeiros e policiais que eram católicos (esses dois grupos são compostos fortemente por católicos de descendência irlandesa), a maior paróquia da cidade, por várias semanas, foi, em essência, o Ground Zero. E a Igreja fez um excelente trabalho com esses homens e mulheres, embora fosse principalmente em uma base ad hoc. Além disso, houve literalmente milhares de funerais presididos por padres e diáconos nos dias e nas semanas depois do 11/9. E, claro, a primeira vítima “oficial” do desastre foi o Pe. Mychal Judge, OFM, um sacerdote franciscano que era também o capelão do corpo de bombeiros. Ele correu para uma das torres em chamas e perdeu a sua vida – um verdadeiro herói. Ele tem sido uma espécie de ícone para o serviço abnegado prestado no 11 de setembro.
IHU On-Line – A partir da sua experiência pessoal no 11 de setembro, o senhor afirmou, em artigo na revista America, que “Deus é como o bombeiro que corre em direção a um edifício em chamas para salvar alguém”. Pode nos explicar melhor essa parábola?
James Martin – Quando Jesus queria explicar algo difícil, como o Reino de Deus, ele usava coisas simples da vida quotidiana – sementes, aves, trigo, arbustos, árvores. Quando eu ouvi falar dos bombeiros que corriam para prédios em chamas para salvar as pessoas (literalmente correndo contra aqueles que estavam correndo para fugir), eu pensei nisso como uma poderosa imagem de quanto Deus nos ama. Jesus nos amou tanto que morreu por nós; o bombeiro faz a mesma coisa. Por isso, foi uma espécie de parábola – uma lição explicada não apenas com princípios abstratos, mas com algo da nossa vida real.
IHU On-Line – O senhor afirma que a sua experiência do 11 de setembro “não foi simplesmente a de uma tragédia, mas também de ressurreição. Para mim, ela encarnou o mistério cristão da cruz”. Como o mistério da cruz pode nos ajudar a superar outras tragédias, sejam elas sociais (como a pobreza na América Latina) ou pessoais e familiares?
James Martin – Certamente, seria errado se eu sugerisse que o sofrimento tem uma “resposta”. Mas eu vi, no 11/9, as sementes de uma nova vida, particularmente nos atos de caridade que aconteceram depois dos ataques. Mas esses tipos de “males morais” (aqueles que resultam de ações humanas) são bastante diferentes dos desastres naturais, que são mais inexplicáveis (a pobreza, claro, é uma espécie de mal moral e social). Mas em cada caso pode haver um convite para experimentar Deus de novas maneiras (já que, quando estamos vulneráveis, geralmente estamos mais abertos à ação de Deus em nossas vidas) e também para lembrar que o sofrimento, como a história de Jesus nos ensina, nunca tem a última palavra. Mais uma vez, porém, cada crente precisa chegar à sua própria compreensão do mistério do sofrimento, um mistério que não será respondido até que cheguemos a ver Deus face a face.
IHU On-Line – O 11 de setembro também colocou em questão o diálogo inter-religioso, especialmente a relação entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano. Depois de 10 anos da tragédia, como é possível fortalecer esse diálogo e as relações entre os “homens de boa vontade”?
James Martin – Simplesmente ouvindo. Eu acho que a maioria das denominações cristãs são muito boas na proclamação, mas não tão boas na escuta. Algumas semanas atrás, por exemplo, eu fui em uma peregrinação à Terra Santa, a Israel, e novamente me dei conta de quão pouco eu sabia sobre o judaísmo e o islã. Então, por que eu abriria a minha boca e diria algo sobre o meu vizinho, antes de tê-lo ouvido? Ouvir vem antes do diálogo.
IHU On-Line – O senhor é autor do livro The Jesuit guide to almost everything. Como Santo Inácio de Loyola pode nos inspirar nos desafios da vida espiritual e eclesial deste início do século XXI?
James Martin – De muitas maneiras. Para começar, a espiritualidade de Santo Inácio é flexível e adaptável. É claro que ela está fundamentada em princípios cristãos, mas, para dar um exemplo, Inácio disse que é errado fazer com que todos avancem pelo mesmo caminho. Deus se encontra com você onde você está, e assim, portanto, o lugar onde você está é um lugar para se encontrar com Deus – não importa quem você seja. Em segundo lugar, a espiritualidade inaciana lembra as pessoas que Deus pode ser encontrado, como jesuítas gostam de dizer, “em todas as coisas”. Isso significa que a espiritualidade não se confina simplesmente ao interior das paredes de uma igreja. Deus pode ser experimentado nas amizades, na família, nas relações de trabalho (assim como no trabalho em si), na natureza, na música, na diversão e assim por diante. E esse tipo de espiritualidade prática e de mente aberta é tão relevante no século XXI como era quando foi explicada pela primeira vez, no século XVI.
IHU On-Line – Seu outro livro, My life with the saints, aborda a sua relação com diversos santos, em formato de memórias espirituais da sua própria vida. Dentre os escolhidos, dois deles são dos EUA, Thomas Merton e Dorothy Day. Que pontos importantes das vidas e dos legados deles o senhor destacaria para os nossos leitores brasileiros?
James Martin – Quando eu penso no Brasil, eu penso não só nas grandes riquezas culturais, intelectuais e naturais do país, mas também no seu engajamento com os problemas dos pobres. Dorothy Day, a fundadora do Movimento Operário Católico [Catholic Worker Movement], foi a grande apóstola norte-americana dos pobres, fundando dezenas de “casas de hospitalidade” para homens e mulheres sem-teto. E ela favoreceu um tipo de ação política em que alguém não só ajudava os pobres, mas também questionava as estruturas que os mantinham pobres. Como D. Hélder Câmara disse uma vez: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. Dorothy Day certamente concordaria com isso (ela gostava de dizer que Jesus veio para confortar os aflitos e afligir os confortados).
Merton poderia ser visto como o grande apóstolo da vida interior [inner life], que é algo que eu penso que todas as pessoas modernas (incluindo os brasileiros) desejam. Todos nós temos aquela inquietação interior que só uma profunda relação com Deus irá satisfazer; e todos nós desejamos nos tornar, como disse Merton, os nossos “verdadeiros eus” [true selves], que nós somos diante de Deus. Assim, esses dois norte-americanos têm muito a dizer ao Brasil – embora nenhum deles falasse português!
IHU On-Line – Em sua opinião, diante da sociedade tecnocientífica atual, quais são as contribuições que a teologia cristã tem a dar? Como pensar Deus e o papel da Igreja no contexto contemporâneo?
James Martin – A principal contribuição é o lembrete de que o núcleo de qualquer desenvolvimento tecnológico ou científico deve ser a pessoa humana. Um dos grandes sucessos do papado de João Paulo II, creio eu, foi a sua ênfase constante sobre a dignidade do ser humano. Facilmente se esquece que, em nossa cultura tecnocientífica, tende-se a celebrar qualquer avanço tecnológico antes de perguntar se ele vai aumentar ou diminuir a dignidade humana, aumentar ou diminuir a comunidade e aumentar ou diminuir aqueles que estão nos degraus mais baixos da escada econômica.
IHU On-Line – Como editor de cultura da revista America, em sua opinião, como a teologia pode dialogar com a cultura e o mundo das artes? E como a cultura pode despertar o desejo pelo sagrado?
James Martin – A teologia deve dialogar com a cultura porque ela faz parte da experiência humana. Afinal, um dos grandes documentos do Concílio Vaticano II era A Igreja no Mundo Moderno [Gaudium et Spes]. Não acima dele, ou separado dele; mas nele. Por isso, a Igreja deve se envolver com a cultura – até mesmo com a cultura pop –, se deseja comunicar a mensagem do Evangelho aos novos grupos de crentes.
Quanto à segunda questão, a cultura e a arte naturalmente são orientadas ao sagrado. Porque as maiores obras de arte são aquelas que levantam as questões essencialmente religiosas (quem sou eu? Por que estou aqui? Por que existe sofrimento?). Até mesmo a cultura pop – cantores/as, músicos/as, artistas, atores, atrizes, diretores/as – lidam com essas questões. O convite para a Igreja é o de reconhecer que esse questionamento continua até mesmo em um nível pop: na televisão, nos filmes, na música popular. Tendemos a esquecer disso por nossa conta e risco, e assim, às vezes, não somos capazes de reconhecer que uma música pop ou um filme popular podem falar às pessoas em níveis às vezes bastante profundos.
IHU On-Line – Em 2012, comemoraremos os 50 anos de convocação do Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro Teologia da libertação. Perspectivas, de Gustavo Gutiérrez. Como essas duas datas podem iluminar a caminhada da Igreja no contexto atual?
James Martin – A Igreja, penso eu, ainda está digerindo os efeitos secundários do Concílio Vaticano II, que um comentarista chamou de o maior evento religioso do século XX. Mesmo agora, há um debate feroz entre os teólogos sobre as questões daquilo que é chamado de “continuidade” e “descontinuidade”. Em resumo, a questão é: o Vaticano II representa uma ruptura com o passado ou uma continuação? Uma versão ainda mais simples da questão poderia ser dita desta forma: o que aconteceu no Vaticano II? Questões relacionadas poderiam ser: qual é o lugar da tradição em meio à mudança? Ou a relação entre o aggiornamento (abertura [atualização]) e o ressourcement (voltar às fontes)? Pode levar algum tempo até que a Igreja reflita sobre essas questões, assim como a Igreja levou muitos anos para digerir o Concílio Vaticano I.
O mesmo pode ser dito com relação à monumental obra de Gustavo Gutiérrez. Houve uma grande quantidade de críticas fomentadas contra a teologia da libertação, mas eu acho que ela é uma das contribuições mais significativas dos teólogos do século XX para a vida da Igreja. Eu não sou um teólogo profissional, mas posso dizer que a teologia da libertação – que eu definiria como o convite para ver o Evangelho a partir dos olhos dos pobres para compreender o desejo de Cristo para que todos vivam em um mundo tão justo quanto possível – tem sido de grande utilidade no meu próprio trabalho com os pobres e na minha própria vida espiritual. Mas eu acho que a Igreja está digerindo tudo isso também. Ambos são refeições muito ricas!
Fonte:IHU
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