O 15-M acaba de completar seu primeiro aniversário. Em plena onda de cortes, com uma austeridade suicida cujo final não se divisa, um desemprego galopante e uma crise ecológica que invalida qualquer saída para a depressão dentro do sistema, o movimento dos indignados ganha força. Sempre foi assim já que, segundo o jornalista e analista político Rafael Cid, “historicamente foi o povo nas ruas o sujeito das mudanças sociais profundas, para além dos epidérmicos avanços que os partidos tradicionais tenham podido conquistar”.
A reportagem é de Enric Llopis e está publicada no sítio espanhol Rebelión, 18-05-2012. A tradução é do Cepat.
Rafael Cid analisou as chaves do 15-M como Assembleia Constituinte de uma nova democracia na Universidade de Valência, dentro do ciclo de conferências que celebram o 30º aniversário da Rádio Klara. Com uma experiência de quatro décadas no exercício do jornalismo, Rafael Cid colabora atualmente com meios alternativos de tendência libertária, como a Rádio Klara ou “Vermelho e Preto”. Antes de se dedicar à imprensa alternativa, trabalhou no jornalismo de investigação, no Cambio 16, Diario 16 e no El País. Entre suas indagações jornalísticas se destacam as revelações sobre os casos do GAL e do óleo de colza adulterado. Em 1984, foi agraciado com o Prêmio Ortega y Gasset de jornalismo.
Um olhar histórico, de longo alcance, permite constatar as conquistas do povo auto-organizado nas ruas. Ultimamente, no Egito e na Tunísia, recorda Rafael Cid. “Nestes países a população e as organizações sociais derrubaram governos feudais e ditatoriais, embora de fachada democrática, presididos por figuras como Mubarak (Egito) ou Ben Ali (Tunísia), que além disso faziam parte da Internacional Socialista. O Muro de Berlim caiu assim mesmo porque o povo desistiu de apoiar os regimes ditatoriais que o subjugavam”, explica o jornalista.
Em 2012, no estado espanhol, o 15-M se reivindica como Assembleia Constituinte e carrega o germe da construção política de uma nova sociedade. Por isso, segundo Rafael Cid, é apelidado de bonito e utópico. Emerge num momento em que o descrédito atinge os tradicionais poderes de fato (monarquia, exército e igreja), mas também os partidos políticos (inclusive os da esquerda) e sindicatos majoritários. Convoca as pessoas na rua e nas praças para reclamar o autogoverno do povo, dos 99%, frente à política oficial. E conseguiu “que passemos de massa informe a povo”, explica o jornalista.
Mas o 1% que domina a sociedade, “que representa as instituições hierárquicas e autoritárias surgidas das eleições”, não faz concessões. “A sociedade espanhola é muito mais rançosa, hierárquica e envelhecida que outras europeias; basta ver a nossa direita, submetida com gosto à igreja católica”. “Quatro notáveis fizeram um acordo num taxi sobre as linhas mestras de uma democracia aparente, na qual o monarca se situa à frente do exército, se desmantelou o aparelho produtivo e as taxas de desemprego dobram a média europeia”; após 34 anos, se algo mudou é, parafraseando Lampedusa, “para que tudo fique como está”, concluiu Rafael Cid.
Além disso, o movimento dos indignados aspira a reinventar a democracia; a recuperar sua essência. De fato, assegura Cid, “a contribuição medular do movimento, do ponto de vista da Ciência Política, é o retorno às fontes, à democracia ateniense, à assembleia deliberativa como governo do povo. Foi Péricles no século V a.C. quem proclamou a necessidade de uma forma de governo em que, com toda as suas limitações, primasse a liberdade e que limitasse as desigualdades entre os cidadãos; além disso, num contexto de catástrofe: a derrota na guerra do Peloponeso; o 15-M também luta por uma democracia num cenário de crise e, portanto, de oportunidades”.
Que elementos de ruptura o 15-M introduz em uma política convencional comum e sujeita aos interesses das elites? Em primeiro lugar, a horizontalidade. “O movimento do 15-M rompe com as hierarquias”, matiza o jornalista. Além disso, diante da urgência e da imediatez da política, e do capitalismo financeiro, os indignados apostam em processos de longo prazo e fins harmônicos (“Vamos depressa porque vamos longe”, reza um de seus lemas); também a tomada de decisões é realizada por deliberação, em assembleias realizadas nas ruas e praças; sem líderes, famosos, figuras providenciais nem vanguardas. “Estes princípios marcaram uma linha transformadora e soaram o alarme do sistema”, conclui o jornalista.
Após sua eclosão há um ano, o movimento foi ganhando maturidade. Um sintoma desta plenitude é, entre outros, a aproximação ao mundo do trabalho. “Na greve geral apoiaram, com generosidade e formando um bloco crítico com outros movimentos alternativos, a convocatória das organizações sindicais; organizações que foram antes pouco receptivas às colocações do 15-M”. Incluíram, além disso, na agenda um elemento perturbador para o sistema: a greve contra o consumo. A descentralização em bairros e povoados, para além da hegemonia urbana, e a presença crescente na universidade e a assunção da democracia de proximidade (expandir-se a partir de iniciativas locais) apontam também a fratura com uma democracia, a do dinheiro e das elites políticas, que permanece no meramente formal e nominal.
O 15-M é acossado com perguntas capciosas que pretendem separá-lo de sua essência. Por que não se converte em partido político? Desde já, porque “é um contra-modelo do sistema”, responde Rafael Cid. “Pedem ao movimento que se transfigure no que eles são, ou seja, que assuma o que pretende impugnar”. “No 15-M os meios são os fins; é preciso acabar com a ideia de que para alcançar objetivos altruístas, pode um partido ou movimento corromper-se e agir com métodos contrários aos fins que pretende”, acrescenta o analista.
Mas o 15-M não representa a panaceia universal. Embora seja um estímulo muito energético. Nas palavras de Rafael Cid, um catalisador “para criar mentalidades que refazem integralmente o sistema; de fato, se o movimento demonstrou algo em seu ano de existência é que lutar contra o sistema vigente é possível; as mensagens de liberdade, participação e solidariedade hasteadas pelo 15-M representam uma ameaça que os poderes dominantes não podem tolerar”. E o jornalista recorda uma frase de Manuel Azaña: “A liberdade não nos faz mais felizes; simplesmente, nos faz humanos”.
Sinergias e conexões. O movimento dos indignados inclui pessoas de todas as condições sociais, pessoas que pela primeira entram na política e entram em contato, além disso, com associações de bairro, grupos libertários, ecologistas e feministas de base, entre outros movimentos alternativos. “Muitos destes coletivos, e isto é essencial, questionam o sistema capitalista como insustentável, caduco e injusto”. Pois bem, “é o historicamente existente e, como criaturas do mesmo, muitas vezes nos custa pensar em sentido contrário”, argumenta o jornalista.
No final das contas, o 15-M é um grito de raiva. Um contundente “não” ao sistema. “A um partido e a outro – PP e PSOE –, e aos meios de comunicação que tratam de impedir, para salvaguardar a essência franquista do modelo, que o povo participe da política”. E o sistema mostra suas garras para marcar o território. Acusa-se os indignados de tornar possível o advento de Rajoy a Moncloa; “mas o certo é que, segundo o CIS, mais de um milhão de cidadãos mudou seu voto em 20 de novembro do PSOE para o PP”, responde Cid. “Radicais?”. “Evidentemente”, afirma o jornalista, “porque vamos à raiz das coisas; não se trata unicamente de questionar a epiderme”.
Qual é o balanço um ano depois? “Na primavera de 2011, num país sonolento e sem capacidade de resposta diante das atrocidades do sistema, apareceu espontaneamente a luz em um punhado de pessoas que decidiram gritar basta: o 15-M”. Atualmente, acrescenta o jornalista, “quase todos os partidos, inclusive os da esquerda, as instituições, grandes sindicatos e intelectuais vulgares mandam suas tropas – os meios de manipulação de massa – para desacreditar o movimento e descarrilá-lo”. A razão é que “o 15-M representa o povo em marcha, um intelectual orgânico (em termos gramscianos), fonte de contrainformação e contravalores”. Rafael Cid conclui com duas citações do médico e poeta português, Miguel Torga: “O universal é o local sem muros” e “A única forma de ser livre diante do poder é ter a dignidade de não servi-lo”. Estas são duas grandes lições do 15-M.
A reportagem é de Enric Llopis e está publicada no sítio espanhol Rebelión, 18-05-2012. A tradução é do Cepat.
Rafael Cid analisou as chaves do 15-M como Assembleia Constituinte de uma nova democracia na Universidade de Valência, dentro do ciclo de conferências que celebram o 30º aniversário da Rádio Klara. Com uma experiência de quatro décadas no exercício do jornalismo, Rafael Cid colabora atualmente com meios alternativos de tendência libertária, como a Rádio Klara ou “Vermelho e Preto”. Antes de se dedicar à imprensa alternativa, trabalhou no jornalismo de investigação, no Cambio 16, Diario 16 e no El País. Entre suas indagações jornalísticas se destacam as revelações sobre os casos do GAL e do óleo de colza adulterado. Em 1984, foi agraciado com o Prêmio Ortega y Gasset de jornalismo.
Um olhar histórico, de longo alcance, permite constatar as conquistas do povo auto-organizado nas ruas. Ultimamente, no Egito e na Tunísia, recorda Rafael Cid. “Nestes países a população e as organizações sociais derrubaram governos feudais e ditatoriais, embora de fachada democrática, presididos por figuras como Mubarak (Egito) ou Ben Ali (Tunísia), que além disso faziam parte da Internacional Socialista. O Muro de Berlim caiu assim mesmo porque o povo desistiu de apoiar os regimes ditatoriais que o subjugavam”, explica o jornalista.
Em 2012, no estado espanhol, o 15-M se reivindica como Assembleia Constituinte e carrega o germe da construção política de uma nova sociedade. Por isso, segundo Rafael Cid, é apelidado de bonito e utópico. Emerge num momento em que o descrédito atinge os tradicionais poderes de fato (monarquia, exército e igreja), mas também os partidos políticos (inclusive os da esquerda) e sindicatos majoritários. Convoca as pessoas na rua e nas praças para reclamar o autogoverno do povo, dos 99%, frente à política oficial. E conseguiu “que passemos de massa informe a povo”, explica o jornalista.
Mas o 1% que domina a sociedade, “que representa as instituições hierárquicas e autoritárias surgidas das eleições”, não faz concessões. “A sociedade espanhola é muito mais rançosa, hierárquica e envelhecida que outras europeias; basta ver a nossa direita, submetida com gosto à igreja católica”. “Quatro notáveis fizeram um acordo num taxi sobre as linhas mestras de uma democracia aparente, na qual o monarca se situa à frente do exército, se desmantelou o aparelho produtivo e as taxas de desemprego dobram a média europeia”; após 34 anos, se algo mudou é, parafraseando Lampedusa, “para que tudo fique como está”, concluiu Rafael Cid.
Além disso, o movimento dos indignados aspira a reinventar a democracia; a recuperar sua essência. De fato, assegura Cid, “a contribuição medular do movimento, do ponto de vista da Ciência Política, é o retorno às fontes, à democracia ateniense, à assembleia deliberativa como governo do povo. Foi Péricles no século V a.C. quem proclamou a necessidade de uma forma de governo em que, com toda as suas limitações, primasse a liberdade e que limitasse as desigualdades entre os cidadãos; além disso, num contexto de catástrofe: a derrota na guerra do Peloponeso; o 15-M também luta por uma democracia num cenário de crise e, portanto, de oportunidades”.
Que elementos de ruptura o 15-M introduz em uma política convencional comum e sujeita aos interesses das elites? Em primeiro lugar, a horizontalidade. “O movimento do 15-M rompe com as hierarquias”, matiza o jornalista. Além disso, diante da urgência e da imediatez da política, e do capitalismo financeiro, os indignados apostam em processos de longo prazo e fins harmônicos (“Vamos depressa porque vamos longe”, reza um de seus lemas); também a tomada de decisões é realizada por deliberação, em assembleias realizadas nas ruas e praças; sem líderes, famosos, figuras providenciais nem vanguardas. “Estes princípios marcaram uma linha transformadora e soaram o alarme do sistema”, conclui o jornalista.
Após sua eclosão há um ano, o movimento foi ganhando maturidade. Um sintoma desta plenitude é, entre outros, a aproximação ao mundo do trabalho. “Na greve geral apoiaram, com generosidade e formando um bloco crítico com outros movimentos alternativos, a convocatória das organizações sindicais; organizações que foram antes pouco receptivas às colocações do 15-M”. Incluíram, além disso, na agenda um elemento perturbador para o sistema: a greve contra o consumo. A descentralização em bairros e povoados, para além da hegemonia urbana, e a presença crescente na universidade e a assunção da democracia de proximidade (expandir-se a partir de iniciativas locais) apontam também a fratura com uma democracia, a do dinheiro e das elites políticas, que permanece no meramente formal e nominal.
O 15-M é acossado com perguntas capciosas que pretendem separá-lo de sua essência. Por que não se converte em partido político? Desde já, porque “é um contra-modelo do sistema”, responde Rafael Cid. “Pedem ao movimento que se transfigure no que eles são, ou seja, que assuma o que pretende impugnar”. “No 15-M os meios são os fins; é preciso acabar com a ideia de que para alcançar objetivos altruístas, pode um partido ou movimento corromper-se e agir com métodos contrários aos fins que pretende”, acrescenta o analista.
Mas o 15-M não representa a panaceia universal. Embora seja um estímulo muito energético. Nas palavras de Rafael Cid, um catalisador “para criar mentalidades que refazem integralmente o sistema; de fato, se o movimento demonstrou algo em seu ano de existência é que lutar contra o sistema vigente é possível; as mensagens de liberdade, participação e solidariedade hasteadas pelo 15-M representam uma ameaça que os poderes dominantes não podem tolerar”. E o jornalista recorda uma frase de Manuel Azaña: “A liberdade não nos faz mais felizes; simplesmente, nos faz humanos”.
Sinergias e conexões. O movimento dos indignados inclui pessoas de todas as condições sociais, pessoas que pela primeira entram na política e entram em contato, além disso, com associações de bairro, grupos libertários, ecologistas e feministas de base, entre outros movimentos alternativos. “Muitos destes coletivos, e isto é essencial, questionam o sistema capitalista como insustentável, caduco e injusto”. Pois bem, “é o historicamente existente e, como criaturas do mesmo, muitas vezes nos custa pensar em sentido contrário”, argumenta o jornalista.
No final das contas, o 15-M é um grito de raiva. Um contundente “não” ao sistema. “A um partido e a outro – PP e PSOE –, e aos meios de comunicação que tratam de impedir, para salvaguardar a essência franquista do modelo, que o povo participe da política”. E o sistema mostra suas garras para marcar o território. Acusa-se os indignados de tornar possível o advento de Rajoy a Moncloa; “mas o certo é que, segundo o CIS, mais de um milhão de cidadãos mudou seu voto em 20 de novembro do PSOE para o PP”, responde Cid. “Radicais?”. “Evidentemente”, afirma o jornalista, “porque vamos à raiz das coisas; não se trata unicamente de questionar a epiderme”.
Qual é o balanço um ano depois? “Na primavera de 2011, num país sonolento e sem capacidade de resposta diante das atrocidades do sistema, apareceu espontaneamente a luz em um punhado de pessoas que decidiram gritar basta: o 15-M”. Atualmente, acrescenta o jornalista, “quase todos os partidos, inclusive os da esquerda, as instituições, grandes sindicatos e intelectuais vulgares mandam suas tropas – os meios de manipulação de massa – para desacreditar o movimento e descarrilá-lo”. A razão é que “o 15-M representa o povo em marcha, um intelectual orgânico (em termos gramscianos), fonte de contrainformação e contravalores”. Rafael Cid conclui com duas citações do médico e poeta português, Miguel Torga: “O universal é o local sem muros” e “A única forma de ser livre diante do poder é ter a dignidade de não servi-lo”. Estas são duas grandes lições do 15-M.
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