sexta-feira, 6 de julho de 2012

GEOPOLÍTICA - Um outro olhar sobre a América Latina e Caribe.


É sempre bom ler um artigo com um enfoque diferente do que é normalmente apresentado pela mídia tradicional com relação ao que ocorre no continente sul - americano. Aqueles que se deixam pautar pelo JN, O Globo e Cia, sempre terão uma visão distorcida sobre o que acontece nesta parte do mundo, não sendo nenhuma surpresa que considerem o Chaves um ditador e que o Rafael Correa persegue a imprensa do seu país.

 

Carlos Dória 

 

Um Olhar Geopolítico sobre a América Latina e Caribe


                                     Gisele Rodrigues - Economista

Nos dias 22 e 23 do mês passado, teve lugar, em Cancun, México, a Cúpula da Unidade da América Latina e Caribe. Reunindo 32 países da região, seus delegados – entre eles vários chefes de Estado – aprovaram 2 declarações e 8 documentos especiais. Nas declarações, foi anunciada oficialmente a proposta de criação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), organização empenhada em


priorizar e impulsionar a integração regional e a promoção de uma agenda comum em fóruns globais. Tal bloco deverá ser inaugurado em julho de 2011, quando seus fundamentos e diretrizes serão elaborados e pactuados pelos países-membros.

Não muito tempo atrás, em 23/05/08, alguns dos mesmos países que ajudaram a gestar a ideia em Cancun de um bloco sem a presença do Canadá e dos EUA se reuniam para criar a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), uma comunidade formada por doze países sul-americanos, cuja principal intenção é análoga a do bloco anteriormente mencionado, ou seja, fomentar a integração entre seus países-membros nas áreas econômica, social e política. Quase 7 meses mais tarde, em 15/12/08, foi criado com o apoio dessas mesmas nações o Conselho de Defesa Sul-Americano.

Os mais desavisados, embalados por uma mídia conservadora e obscurante que insiste em rebaixar os horizontes de reflexão de seus interlocutores, poderiam ser levados a crer que a recente safra de organismos internacionais no hemisfério ocidental não passa de megalomania dos representantes daquelas nações (“mais uma entre tantas!” - sic) – uma redundância inconcebível diante das organizações já existentes de que esses países fazem parte - como a ONU e a OEA.

Entretanto, há muito tais instituições dão mostra de esgotamento do poder de enforcement de suas deliberações. O apoio estadunidense ao fracassado golpe de Estado contra o Presidente eleito da Venezuela, Hugo Chávez, em abril de 2002, e a invasão do Iraque pelos EUA, em março de 2003, atitudes amplamente condenadas pela maioria absoluta dos membros da OEA e ONU, são apenas parcos exemplos entre dezenas que poderiam ser citados como sintomas de que ambas foram há muito esvaziadas e sobrepujadas pelos interesses de seu membro dominante, os EUA, sendo operativas apenas quando funcionais à nação estadunidense.

O desgaste do Governo belicista e unilateral de George W. Bush e a eleição do democrata Barack Obama à presidência dos EUA em 04/11/08 pareciam dar novo alento às esperanças de um mundo onde as instâncias diplomáticas preexistentes recobrariam o seu valor. Parecia impossível imaginar que Obama fosse capaz de dar continuidade à política externa de seu predecessor, diante de todas as expectativas que se galvanizavam em torno do seu nome. Mas, como preconizou Eisenhower, ex-presidente dos EUA entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial, seria muito difícil fugir aos desígnios do complexo-militar-industrial que ampliava sobeja e continuamente seu poder econômico e lançava seus tentáculos sobre o aparato estatal estadunidense, desenvolvendo com este uma relação de promiscuidade crescente desde o fim da última grande guerra e, inaugurando, desde o fim da guerra fria, a noção de conflito permanente. E, ao contrário do que se poderia fantasiar à primeira vista de um Prêmio Nobel da Paz, Obama não só deu sequência à política externa belicista de Bush como a recrudesceu.

Fato é que, em vez de reduzir, a administração Obama ampliou em 4% os gastos militares totais dos EUA para 2010, segundo consta da página 254 do documento elaborado em maio de 2009 pelo Departamento de Defesa dos EUA e aprovado pelo congresso estadunidense, ou seja, de US$ 513,3 para US$ 533,8 bilhões. A rubrica que mais cresceu foi a de pessoal (8,9%) – hoje, em larga medida, mão-de-obra terceirizada, subcontratada pelas Companhias Militares Privadas (CMP’s) em várias partes do mundo – e, portanto, de orçamento mais palatável ao congresso dos EUA.

Em relação à América Latina e Caribe, o governo de Obama tem agido à revelia das decisões de organizações supranacionais das quais participa, bem como tem representado o endurecimento de uma política de desestabilização dos governos “antiamericanos” e exibido uma postura mais proativa em relação a seus interesses econômicos na região. Vejamos:

  A manutenção da base de Guantánamo, em Cuba, contradizendo promessas de campanha e contrariando o desejo da maioria dos países-membros da ONU;

A negociação para instalação de 13 bases militares na América Latina e Caribe (7 na Colômbia, 1 em Aruba, 1 em Curaçao e 4 no Panamá), fechando o cerco sobre a República Bolivariana da Venezuela - um de seus antagonistas políticos e principais fornecedores de petróleo. Com respeito à base colombiana de Palanquero, o Pentágono foi bastante claro, indo muito além do Plano Colômbia e do surrado jargão narco-terrorista que serve de biombo a seus verdadeiros propósitos. No mesmo citado documento do Departamento de Defesa endereçado ao congresso, podia-se ler, à página 215, como justificativa à base: “Palanquero confere uma oportunidade de conduzir operações de largo espectro por toda América do Sul incluindo missões anti-drogas. Ela também fornece apoio a missões móveis ao garantir acesso a todo continente, exceto à região do Cabo Horn, se houver disponibilidade de combustível, e a mais da metade do continente se não houver reabastecimento” [grifos meus]. Em outro trecho (página 217), fica evidente que a base visa combater, além do narcotráfico (sic), os governos não-alinhados da região: “O desenvolvimento desta Locação Cooperativa de Segurança [base de Palanquero] confere uma oportunidade única para uma operação de largo espectro em uma sub-região crítica do nosso hemisfério, onde segurança e estabilidade estão sob constante ameaça de insurreições de narco-terroristas, governos anti-EUA, pobreza endêmica e desastres naturais recorrentes” [grifos meus]. Após a emissão deste documento, e sob veemente protesto da UNASUL com respeito ao acordo de cooperação EUA-Colômbia assinado em 30/10/09, os EUA foram obrigados a se retratar, retirando os trechos mais polêmicos do texto e encaminhando nova cópia ao congresso em 16/11/09;

  O apoio “sutil” ao golpe de Estado em Honduras em junho de 2009 contra o presidente constitucionalmente eleito, Manuel Zelaya, a partir da base militar de Soto Cano, naquele país. Contrastando com a maioria esmagadora dos países da América Latina e Caribe, os EUA respaldaram a nova eleição presidencial que definiu Porfirio Lobo como novo presidente de Honduras;

 A ocupação militar do Haiti sob pretexto de apoio humanitário pós-terremoto. Os EUA enviaram para a região 16 mil soldados, mais que o dobro dos 6,7 mil soldados que compõem os efetivos da ONU liderados pelo Brasil, e sua atuação impositiva (ocupação do aeroporto e do palácio presidencial em Porto Príncipe, condução de comboios de mantimentos) já gerou atritos com o comando brasileiro da Minustah;

  A destinação de US$ 1,4 bilhão em 3 anos ao Plano Mérida para o combate ao narcotráfico e terrorismo na fronteira com o México. Na verdade, o nível de violência no país tem crescido em função do desemprego que se amplificou com a constituição do NAFTA e os efeitos da atual crise financeira mundial. O Pentágono está se preparando para ampliar sua presença militar nestes conflitos e as forças militares dos EUA já patrulham os ares mexicanos;

 A reação tíbia e complacente do governo estadunidense diante do início da perfuração, em 22/02/10, por uma companhia inglesa, a Desire Petroleum, em águas a 100 km ao norte das Ilhas Malvinas (ou Falklands como nominam os ingleses), territórios reivindicados pela Argentina que foram o pivô de uma sangrenta batalha com o Reino Unido há 28 anos. Apesar de serem membros de um acordo de defesa com os países latino-americanos (o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), os EUA destoaram da maioria dos países da região ao ficar do lado britânico durante a Guerra das Malvinas. As ilhas estão em uma plataforma que pode conter até 60 bilhões de barris de petróleo em reservas (a Argentina possui apenas 2,6 bilhões de barris de óleo em reservas provadas e o Reino Unido 3,4 bilhões de barris). Além da Desire, 5 outras empresas pretendem utilizar o serviço da plataforma de perfuração Ocean Guardian. Durante a Cúpula da Unidade, a Presidente da Argentina, Cristina Fernández, denunciou que o Reino Unido evadiu várias tratativas da ONU que estabeleciam que qualquer exploração econômica da região deveria ser antecedida por um acordo formal entre os dois países. Atualmente, os EUA reclamam neutralidade em relação à disputa entre os dois países, apesar de reconhecer a presente administração britânica. Se confirmada, a existência de substanciais recursos petrolíferos nas Ilhas Malvinas certamente virá acompanhada da instalação de uma base militar aeronaval pelos britânicos – a menos de 3 mil milhas de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, em cuja costa estão as recém-confirmadas e vultosas jazidas de óleo e gás do pré-sal. Uma consequência nada desejável para o Brasil, e, talvez, mais temível que a IV Frota (reativada em abril de 2008 pelo USSOUTHCOM – Comando Militar Estadunidense do Sul - durante a gestão Bush e mantida pelo governo Obama);

 A pressão exercida pela Secretária de Estado, Hillary Clinton, sobre o governo brasileiro em seu giro de 5 dias pela América Latina iniciado em 1°/03/10, para que o Brasil continue sendo parceiro dos EUA na “preservação da democracia na região”, tentando, com isto, afastar o país das políticas de integração latino-americana e dos governos populares da região. Além disso, a visita da Secretária é mais uma tentativa de evitar que o Brasil assine o acordo de cooperação nuclear com o Irã, bem como de fazer propaganda do AF-18E/F, o caça estadunidense da Boeing que concorre com o francês (Rafale, da Dassault) e o sueco (Gripen-NG da SAAB) pela preferência nacional. Não por acaso a visita oficial foi precedida da chegada do porta-aviões US Carl Vinson ao Rio de Janeiro, onde personalidades brasileiras puderam ter acesso ao caça da Boeing após recepção oferecida pelo comandante do navio. O fator preço definitivamente não tem sido o único componente da análise para o governo brasileiro, que pretende adquirir um total de 36 novos aviões. Segundo a FAB, a compra que oferece as melhores condições para o Brasil é a do Rafale francês, na medida em que a Aeronaútica já tem tradição de operar aeronaves importadas da França e que existe a possibilidade de futuramente a própria marinha brasileira utilizar a versão naval do avião. Além disso, a França não impõe as mesmas restrições que os EUA colocam à venda de equipamentos que incluem componentes de alta tecnologia para o Brasil, e um dos objetivos prioritários da nova Estratégia Nacional de Defesa (END), decretada pelo governo brasileiro em fins de 2008, é a transferência e capacitação tecnológica para a retomada da indústria bélica nacional. Motivos para incrementar a defesa não faltam. Além de um melhor patrulhamento das riquezas e biodiversidade da região amazônica, o Brasil está pleiteando junto à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) da ONU o reconhecimento da Amazônia Azul, que abarcaria as águas territoriais brasileiras (12 milhas a partir da costa), a Zona Econômica Exclusiva (ZEE) - 200 milhas a partir da costa (já reconhecida pela CNUDM) - e ainda 960 mil km² da plataforma continental. Um total de 4,45 milhões de km², ou área marítima equivalente a metade do território brasileiro,com grande biodiversidade e recursos petrolíferos incalculáveis do pré-sal. Entretanto, até o hoje os EUA não ratificaram a CNUDM, e reconhecem apenas o limite marítimo de 12 milhas a partir da costa, o que deixa o Brasil em situação bastante desconfortável, já que a região do pré-sal ultrapassa em muito esta faixa. Portanto, mais do que nunca, o resguardo dos interesses e riquezas brasileiros tornou-se dependente de uma estratégia de defesa muito bem azeitada que regate a capacidade do país em dizer não quando necessário.

Dado ao exposto, nada mais natural do que a criação de organismos internacionais que tentem preservar seus membros da presença e interferência de um país com o peso político-econômico-militar dos EUA.

Com recursos minerais e energéticos inestimáveis, biodiversidade exuberante, o maior manancial de água potável do mundo, o Aquífero do Guarani, e um longo caminho a percorrer em busca do desenvolvimento, a América Latina e Caribe têm motivos de sobra para buscar um entendimento comum que garanta a sua soberania e auto-determinação. Especialmente ante a existência de um projeto hegemônico de expansão de mercados de uma nação escrava de seu complexo bélico-militar e que não medirá esforços para manter o seu poder e influência sobre a região. A mídia conservadora passa batido por estas questões, e tenta reduzir a atual tentativa de concertação latino-americana a uma ópera-bufa adornada por estereótipos. A integração regional, para além de qualquer folhetim, deveria ser considerada assunto demasiado sério para ser deixado a mercê dos tablóides de fofocas.

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