"A sociedade do cada um por si foi derrotada nos EUA"
O corolário lógico do “cada um por si” é “a culpa é somente sua”. Os estadunidenses em geral são useiros e vezeiros em enxergar problemas sociais como fossem fraquezas individuais. Essa mentalidade é parte especialmente do DNA da direita. Afinal de contas, se você toma as pessoas como as únicas responsáveis pelos seus problemas, você pode ignorá-las, privá-las, até odiá-las. O artigo é de Katha Pollit.
Katha Pollit (*) - The Nation
De todas as diferenças entre os candidatos nesta eleição, talvez a mais profunda tenha sido, como disse o presidente Obama, a que considera o fato de estarmos todos juntos nessa. Acreditamos em resolver os nossos problemas compartilhando-os – por meio do Affordable Care Act [a reforma do sistema de saúde por Obama, que está sendo chamada de Obamacare], em financiamento estudantil para estudantes de baixa renda, impostos progressivos, pesquisa científica e outras características essenciais às democracias modernas que são tomadas como certas em quase todo os países ocidentais industrializados? Ou acreditamos, com Mitt Romney, que cada um de nós – talvez especialmente as mulheres – só conta consigo próprio na sociedade? Acreditamos no governo ou nos bilionários? Uma rede de seguridade social para todos ou uma série de benefícios fiscais retalhados e de igrejas sem obrigação – vamos ser realistas, sem capacidade alguma – de ajudar a todos os que precisam? Concordamos com Mitt Romney que o governo deveria delegar a recuperação após os desastres climáticos para os governos dos estados ou, “melhor ainda”, para empresas privadas? Talvez o furacão Sandy tenha deixado esta questão clara para alguns dos famosos eleitores indecisos.
O corolário lógico do “cada um por si” é “a culpa é somente sua”. Os estadunidenses em geral são useiros e vezeiros em enxergar problemas sociais como fossem fraquezas individuais – preste atenção em como demonizamos as pessoas gordas, como se a razão pela qual há tanta gente com sobrepeso fosse simplesmente uma falta de força de vontade. Mas essa mentalidade é parte especialmente do DNA da direita. Afinal de contas, se você toma as pessoas como as únicas responsáveis pelos seus problemas, você pode ignorá-las, privá-las, até odiá-las. Vítimas de estupro, mulheres com gravidezes indesejadas, pessoas pobres (arranjem um emprego!), usuários de drogas, crianças que cometeram crimes, pessoas que têm levado uma vida imprudente ou fora da linha da maneira que for só têm a si mesmas para culpar.
Nicholas Kristof escreveu uma coluna no New York Times há algumas semanas a respeito de seu amigo Scott, que teve uma crise de meia idade, largou o seu emprego para ler livros e jogar pôquer e que, mesmo quando voltou ao trabalho, não adquiriu um plano de saúde, em parte porque estava muito caro e em parte para guardar dinheiro, mas também porque ele estava ocupado e não tinha esposa "para incomodá-lo", para adiar a ida ao médico para tratar dos sintomas que se provou terem dado causa a um avançado câncer de próstata. O ponto de Kristof era que todos cometem erros, e que uma boa política pública leva isso em conta.
Na coluna seguinte, em que comenta a morte de Scott, Kristof escreveu a respeito de como ele “tinha ficado surpreso com a quantidade de leitores selvagemente antipáticos em relação às escolhas de seu amigo: 'seu amigo fez uma escolha estúpida, e ações têm consequências’, disse um leitor, numa mensagem para o seu twitter”. Sim, ações têm consequências, e é por isso que precisamos de sociedade para nos proteger de nossa loucura, ignorância e avaliações ruins – a respeito de nós mesmos e dos outros. Cedo ou tarde, todos nós assumimos riscos que acabam não dando certo.
Algumas pessoas fazem sexo desprotegidas, cruzam o sinal vermelho, dirigem muito rápido, andam de moto sem capacete em Connecticut (onde por alguma razão louca é legal fazer isso), não usam cinto de segurança, bebem muito, enviam dinheiro em resposta a e-mails de príncipes nigerianos, não vacinam suas crianças. Algumas pessoas se recusaram a evacuar a cidade durante o furacão Sandy – os trabalhadores da área da defesa civil devem fornecer-lhes um bife quente ou um cobertor?
Se você quer um exemplo de como tratar questões sociais com uma mentalidade individualista prejudica a todos, considere o caso do câncer de pulmão. Esta doença extremamente séria mata 160 mil estadunidenses por ano – isso é mais do que um para cada quatro mortes por câncer. É o "número um" do ranking dos cânceres fatais, tanto em homens como em mulheres. As mulheres morrem duas vezes mais de câncer de pulmão do que de mama – e uma em cada cinco dessas mulheres nunca fumou um cigarro (para o homem, essa relação é de um para doze).
Na verdade, ao menos 55% das pessoas com câncer de pulmão nunca fumaram ou não fumam mais; alguns largaram o cigarro décadas atrás. E ainda assim, porque o câncer de pulmão é geralmente associado ao cigarro, e o cigarro é um vício e coisa que somente “idiotas” (para usar a terminologia do Tea Party) fariam e sempre fazem, o câncer de pulmão não recebe nada como o fundo de pesquisa dos Institutos Nacionais de Saúde, como recebem as pesquisas em outros tipos de câncer, com base na relação entre números de mortos e causas. Não se trata de um programa de televisão com estrelas de Hollywood, nenhuma corrida para a cura do câncer de pulmão, nada dessas estranhamente alegres campanhas de “conscientização”.
O paciente mesmo e suas famílias tendem a ficar quietos – o estigma é grande demais. Pouco importa que muitos deles tenham começado a fumar lá atrás, na época em que se passa o seriado Mad Men (anos 50-60), quando era um costume onipresente promovido pelo governo, pela mídia e, claro, pela própria indústria de tabaco. Por anos a fio, depois que já havia reportagens e estudos apontando a relação entre ambas as coisas, as revistas femininas eram lotadas de anúncios de cigarros, enquanto deixavam o cigarro e outras doenças relacionadas ao fumo fora de sua cobertura editorial e das matérias sobre saúde.
Hoje, os anúncios da indústria do tabaco são em menor quantidade – graças a, sim, regulações governamentais – mas, por causa de culpa ou vergonha, o silêncio continua. “Você não sabe como nós somos ignorados pela mídia”, disse-me por telefone Linda Wenger, líder do grupo União Contra o Câncer de Pulmão.
Como acontece, uma querida amiga minha está morrendo de câncer de pulmão. Lynn nunca fumou; ela fez yoga e se exercitou muito e comeu muito arroz integral e vegetais e viveu a maior parte de sua vida ao ar livre, no interior. Eu costumava brincar com ela, por ela ser uma maluca por saúde. O câncer não liga. Talvez, se a doença de Lynn tivesse sido pesquisada e recebido financiamento com base em sua prevalência, ela teria sido diagnosticada antes, tivesse mais anos pela frente, talvez viesse a ser curada do câncer.
Um outro amigo com câncer de pulmão era um fumante leve. E daí? Se ele tivesse fumado um pacote de cigarro por dia, como eu fiz por vários anos, ou três pacotes, como meu pai, que viveu até os 86, ele ainda seria um pai, um marido, um escritor, um amigo. Uma pessoa valiosa como todo mundo e que – como todo mundo – não é perfeita. O que foi mesmo que o cara disse a respeito de atirar pedras? Você sabe, o cara da direita cristã que não podia esperar para anular o Obamacare que eles dizem que amam tanto?
Homem nenhum é uma ilha, ou todos os homens que se virem por si sós? Ontem, a América decidiu qual será o seu lema.
(*) Katha Pollitt é uma premiada escritora, premiada poetisa e premiada jornalista, nascida em Nova York e formada em Harvard e na Escola de Artes da Universidade Columbia. Já lecionou em Harvard, Yale, Princeton, Brooklyn College, UCLA, Universidade do Mississippi e Cornell. Sua coluna “Tema para debate”, iniciada em 1995, foi chamada pelo Washington Post como “o melhor lugar par air em busca de um pensamento original de esquerda’, escreve semanalmente no The Nation, para onde contribui desde 1980. Muitas de suas contribuições para o The Nation foram compiladas em três livros: Reasonable Creatures: Essays on Women and Feminism (Knopf) [Algo como: criaturas racionais: ensaios sobre a mulher e o feminism]; Subject to Debate: Sense and Dissents on Women, Politics, and Culture (Modern Library) [algo como Senso e Dissenso: sobre Mulher, Política e Cultura] e Virginity or Death! And Other Social and Political Issues of Our Time (Random House) [Virginidade ou Morte! E Outros Ensaios e Questões Políticas de Nosso Tempo]. Em 2007 a editora Random House publicou sua coletânea de ensaios pessoais, Learning to Drive [Aprendendo a Dirigir], que foram originalmente publicados na The New Yorker e participa da antologia dos Melhores Ensaios Americanos de 2003.
Tradução: Katarina Peixoto
O corolário lógico do “cada um por si” é “a culpa é somente sua”. Os estadunidenses em geral são useiros e vezeiros em enxergar problemas sociais como fossem fraquezas individuais – preste atenção em como demonizamos as pessoas gordas, como se a razão pela qual há tanta gente com sobrepeso fosse simplesmente uma falta de força de vontade. Mas essa mentalidade é parte especialmente do DNA da direita. Afinal de contas, se você toma as pessoas como as únicas responsáveis pelos seus problemas, você pode ignorá-las, privá-las, até odiá-las. Vítimas de estupro, mulheres com gravidezes indesejadas, pessoas pobres (arranjem um emprego!), usuários de drogas, crianças que cometeram crimes, pessoas que têm levado uma vida imprudente ou fora da linha da maneira que for só têm a si mesmas para culpar.
Nicholas Kristof escreveu uma coluna no New York Times há algumas semanas a respeito de seu amigo Scott, que teve uma crise de meia idade, largou o seu emprego para ler livros e jogar pôquer e que, mesmo quando voltou ao trabalho, não adquiriu um plano de saúde, em parte porque estava muito caro e em parte para guardar dinheiro, mas também porque ele estava ocupado e não tinha esposa "para incomodá-lo", para adiar a ida ao médico para tratar dos sintomas que se provou terem dado causa a um avançado câncer de próstata. O ponto de Kristof era que todos cometem erros, e que uma boa política pública leva isso em conta.
Na coluna seguinte, em que comenta a morte de Scott, Kristof escreveu a respeito de como ele “tinha ficado surpreso com a quantidade de leitores selvagemente antipáticos em relação às escolhas de seu amigo: 'seu amigo fez uma escolha estúpida, e ações têm consequências’, disse um leitor, numa mensagem para o seu twitter”. Sim, ações têm consequências, e é por isso que precisamos de sociedade para nos proteger de nossa loucura, ignorância e avaliações ruins – a respeito de nós mesmos e dos outros. Cedo ou tarde, todos nós assumimos riscos que acabam não dando certo.
Algumas pessoas fazem sexo desprotegidas, cruzam o sinal vermelho, dirigem muito rápido, andam de moto sem capacete em Connecticut (onde por alguma razão louca é legal fazer isso), não usam cinto de segurança, bebem muito, enviam dinheiro em resposta a e-mails de príncipes nigerianos, não vacinam suas crianças. Algumas pessoas se recusaram a evacuar a cidade durante o furacão Sandy – os trabalhadores da área da defesa civil devem fornecer-lhes um bife quente ou um cobertor?
Se você quer um exemplo de como tratar questões sociais com uma mentalidade individualista prejudica a todos, considere o caso do câncer de pulmão. Esta doença extremamente séria mata 160 mil estadunidenses por ano – isso é mais do que um para cada quatro mortes por câncer. É o "número um" do ranking dos cânceres fatais, tanto em homens como em mulheres. As mulheres morrem duas vezes mais de câncer de pulmão do que de mama – e uma em cada cinco dessas mulheres nunca fumou um cigarro (para o homem, essa relação é de um para doze).
Na verdade, ao menos 55% das pessoas com câncer de pulmão nunca fumaram ou não fumam mais; alguns largaram o cigarro décadas atrás. E ainda assim, porque o câncer de pulmão é geralmente associado ao cigarro, e o cigarro é um vício e coisa que somente “idiotas” (para usar a terminologia do Tea Party) fariam e sempre fazem, o câncer de pulmão não recebe nada como o fundo de pesquisa dos Institutos Nacionais de Saúde, como recebem as pesquisas em outros tipos de câncer, com base na relação entre números de mortos e causas. Não se trata de um programa de televisão com estrelas de Hollywood, nenhuma corrida para a cura do câncer de pulmão, nada dessas estranhamente alegres campanhas de “conscientização”.
O paciente mesmo e suas famílias tendem a ficar quietos – o estigma é grande demais. Pouco importa que muitos deles tenham começado a fumar lá atrás, na época em que se passa o seriado Mad Men (anos 50-60), quando era um costume onipresente promovido pelo governo, pela mídia e, claro, pela própria indústria de tabaco. Por anos a fio, depois que já havia reportagens e estudos apontando a relação entre ambas as coisas, as revistas femininas eram lotadas de anúncios de cigarros, enquanto deixavam o cigarro e outras doenças relacionadas ao fumo fora de sua cobertura editorial e das matérias sobre saúde.
Hoje, os anúncios da indústria do tabaco são em menor quantidade – graças a, sim, regulações governamentais – mas, por causa de culpa ou vergonha, o silêncio continua. “Você não sabe como nós somos ignorados pela mídia”, disse-me por telefone Linda Wenger, líder do grupo União Contra o Câncer de Pulmão.
Como acontece, uma querida amiga minha está morrendo de câncer de pulmão. Lynn nunca fumou; ela fez yoga e se exercitou muito e comeu muito arroz integral e vegetais e viveu a maior parte de sua vida ao ar livre, no interior. Eu costumava brincar com ela, por ela ser uma maluca por saúde. O câncer não liga. Talvez, se a doença de Lynn tivesse sido pesquisada e recebido financiamento com base em sua prevalência, ela teria sido diagnosticada antes, tivesse mais anos pela frente, talvez viesse a ser curada do câncer.
Um outro amigo com câncer de pulmão era um fumante leve. E daí? Se ele tivesse fumado um pacote de cigarro por dia, como eu fiz por vários anos, ou três pacotes, como meu pai, que viveu até os 86, ele ainda seria um pai, um marido, um escritor, um amigo. Uma pessoa valiosa como todo mundo e que – como todo mundo – não é perfeita. O que foi mesmo que o cara disse a respeito de atirar pedras? Você sabe, o cara da direita cristã que não podia esperar para anular o Obamacare que eles dizem que amam tanto?
Homem nenhum é uma ilha, ou todos os homens que se virem por si sós? Ontem, a América decidiu qual será o seu lema.
(*) Katha Pollitt é uma premiada escritora, premiada poetisa e premiada jornalista, nascida em Nova York e formada em Harvard e na Escola de Artes da Universidade Columbia. Já lecionou em Harvard, Yale, Princeton, Brooklyn College, UCLA, Universidade do Mississippi e Cornell. Sua coluna “Tema para debate”, iniciada em 1995, foi chamada pelo Washington Post como “o melhor lugar par air em busca de um pensamento original de esquerda’, escreve semanalmente no The Nation, para onde contribui desde 1980. Muitas de suas contribuições para o The Nation foram compiladas em três livros: Reasonable Creatures: Essays on Women and Feminism (Knopf) [Algo como: criaturas racionais: ensaios sobre a mulher e o feminism]; Subject to Debate: Sense and Dissents on Women, Politics, and Culture (Modern Library) [algo como Senso e Dissenso: sobre Mulher, Política e Cultura] e Virginity or Death! And Other Social and Political Issues of Our Time (Random House) [Virginidade ou Morte! E Outros Ensaios e Questões Políticas de Nosso Tempo]. Em 2007 a editora Random House publicou sua coletânea de ensaios pessoais, Learning to Drive [Aprendendo a Dirigir], que foram originalmente publicados na The New Yorker e participa da antologia dos Melhores Ensaios Americanos de 2003.
Tradução: Katarina Peixoto
Fotos: The Nation
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