A Síria nas lentes da geopolítica do petróleo: eu sou você amanhã?
A
expansão do sistema de suprimento de gás à Europa está por trás do
tabuleiro de forças na região. O ataque do governo Trump se explica mais
por questões de política interna nos EUA, já que a Rússia, aliada da
Síria, é parceira na solução de suprimento via Irã-Catar.
O
recente ataque desferido unilateralmente pelos EUA à Síria teve como
justificativa suposto uso de armas químicas pelo governo Assad contra
civis. Não foi a primeira vez. Em 2013, o governo Assad já havia sido
acusado pelos EUA de utilizar armas químicas contra rebeldes financiados
com recursos ocidentais[1].
Desta
vez, os EUA avisaram previamente o governo Putin sobre o ataque. Há
relatos de evacuação de material sírio e russo dias antes do bombardeio.
Mesmo após o ataque, as pistas encontravam-se já operacionais, tendo-se
destruído apenas conjunto de galpões vazios nos arredores.
Os
russos vêm expandindo desde 2015 o número de unidades aéreas (aviões e
helicópteros) e de artilharia (fixa e móvel) em operação na base síria
de Shayat, bombardeada pelos EUA. O contingente militar russo se soma às
forças armadas sírias no combate ao Estado Islâmico, que controla parte
importante dos poços de petróleo ao norte da Síria.
O
objetivo do presente artigo é elucidar: Por que os EUA teriam interesse
em atacar uma base aérea que combate os principais inimigos dos
próprios EUA – o Estado Islâmico e, ao mesmo tempo, cuidar para que não
houvesse baixas materiais ou humanas?
A Rússia na geopolítica do petróleo para a Europa
A
Europa não possui reservas de hidrocarbonetos significativas, o que
implica a necessidade de importação de energia. O gás natural,
considerado como energia limpa, vem sendo demandado em larga escala.
Esta importação é hoje proveniente majoritariamente da Rússia. A Gazprom
respondeu em 2013 por 30% dos 541 bilhões de m3 de gás natural
consumidos na Europa.
Cerca
de metade do gás proveniente da Rússia para Europa cruza a Ucrânia. A
posição ambígua do país em relação ao Ocidente tem levado a consolidação
de interesses comuns entre a Rússia e a Turquia. Esta última patrocinou
ramal exclusivo para suprimento de gás russo através do Mar Cáspio em
2003.
Da
mesma maneira, a Alemanha ampliou linha dedicada pelo Báltico em 2013.
Não obstante, a Ucrânia ainda hoje possui importância como território de
passagem de gás natural em direção ao velho continente.
Neste
contexto, Inglaterra e França são supridas majoritariamente pelos dutos
provenientes dos campos noruegueses. Da mesma maneira, Espanha,
Portugal e Itália são abastecidos por campos situados no norte da
África, dependendo-se pouco ou nada do suprimento russo através da
Ucrânia.
A Síria como entroncamento de rotas para o gás natural
A
expansão do sistema de suprimento de gás à Europa encontra-se
atualmente em impasse. Encontram-se sobre o tabuleiro duas alternativas
de traçado, conforme a seguir (Figura 1):
1.gasoduto
proveniente do Irã atravessa o Iraque e o Líbano até a Síria, sendo
então comercializado para a Europa. Esta alternativa tem recebido apoio
do Irã e da Rússia.
2.gasoduto
proveniente dos poços no Catar e no Irã atravessando a Arábia Saudita,
Jordânia e Síria em direção a Turquia, a qual se beneficiará de parte do
suprimento em direção à Europa. Esta alternativa tem o apoio da UE, dos
EUA e da Turquia.
Os
interesses da União Europeia e dos EUA fundamentam-se na independência
da influência russa no tabuleiro energético da região. Por outro lado, à
Rússia interessa diminuir a dependência da Ucrânia. A Turquia, neste
contexto, tem se apresentado como país-chave no traçado das novas linhas
de suprimento.
O
Catar, por outro lado, possui reservas gigantes e tem investido em
plantas de liquefação, o que permite transporte naval através do
estreito de Ormuz e do Canal de Suez até a Europa. A principal empresa
petrolífera do Quatar é uma sociedade entre o governo local e a Exxon
Mobil.
Finalmente,
o Irã passou a ser percebido como fonte de suprimento barata e
abundante. A exportação de gás iraniano tornou-se possível a partir do
Acordo de Viena, celebrado em julho de 2015 sobre a questão atômica com
países ocidentais.
O
fiel da balança na escolha entre as rotas alternativas tem sido a
posição da Síria. Dada sua importância geoestratégica na passagem do
gás, o apoio do governo Assad ao trajeto russo praticamente exclui as
reservas do Catar em favor do Irã. Com isso, tem justificado firme apoio
militar da potência asiática no combate aos opositores do regime sírio.
A
geopolítica do gás explica ainda a origem norte-americana dos recursos
materiais que alimentaram, durante o mandato B. Obama, a guerra civil
entre o governo sírio e rebeldes da “irmandade Muçulmana”, leais ao
Ocidente.
Explica
ainda porque interessa aos russos conter a expansão do Estado Islâmico
nos territórios do Iraque e da Síria. Trata-se de mais um obstáculo à
construção do gasoduto para o gás iraniano.
Finalmente,
entende-se que o Governo Trump se esforça para construir saída
negociada para o mix de suprimento Irã-Catar, o que irá, caso
bem-sucedido, alavancar largos volumes de investimento e emprego na
região. Este esforço passa por convergência de esforços com os russos no
combate ao Estado Islâmico. Ou seja, o ataque norte-americano à base
síria não faz o menor sentido sob o ponto de vista das relações
internacionais.
Em
contrapartida, com o ataque, D. Trump afasta a ameaça, promovida pelos
interesses financeiros derrotados na eleição, de construção de uma tese
de impedimento para D. Trump. O enfrentamento nos EUA entre interesses
polarizados em complexos arranjos organizacionais: (i)
industrial-militar-acadêmico e (ii) financeiro-midiático-jurídico,
parece ter justificado o recente ataque à Siria. Com os mísseis, D.
Trump reconquista a opinião pública norte-americana, na mesma medida em
que ganha tempo para negociar, com Putin e demais líderes, uma saída que
aponte para aumento de investimentos, emprego e renda na região.
Notas:
1.
Inspetores da ONU constataram emprego de agente Sarin no sítio objeto
de ataques situado na zona rural de Damasco. Não se provou, contudo, se o
agente químico foi dispersado a partir de armas manufaturadas ou de
dispositivos artesanais. O que não exclui a hipótese de sabotagem por
parte dos EUA.
2. Crédito da Tabela 1: Defense& Foreign Affairs Strategic Policy; 2016, Vol. 44 Issue 1, p6-16
*Professor
da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em
administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo
IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É
colunista do Brasil Debate.
http://brasildebate.com.br/a-siria-nas-lentes-da-geopolitica-do-petroleo-eu-sou-voce-amanha/
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