Por Gilson Caroni Filho - do Rio de Janeiro
Dilma Rousseff foi resistente contra a ditadura militar e foi uma das jovens presas no Dops.
Escrever sobre o golpe de Estado de 1964, passados 47 anos, não deixa de ser um trabalho de reconstituição que conserva toda a sua atualidade política no momento em que o sermão pelo esquecimento do passado, pelo desarmamento das vontades, continua sendo pregado pelas mesmas classes e grupos que apoiaram, e depois conduziram o regime autoritário. É bom lembrar que essas forças políticas romperam, na undécima hora, com o núcleo decisório da ditadura, forjando uma transição por alto, que desidratou todos os projetos políticos da oposição progressista.
Isso explica, como que, num passe de mágica, José Sarney, o presidente do PDS, após comandar no Parlamento a batalha contra as Diretas-já, tenha ressurgido como um dos líderes da redemocratização e candidato à vice-presidência na chapa de oposição junto a Tancredo Neves. Não estamos falando apenas de um projeto pessoal oportunista bem sucedido, mas da incrustação no próprio centro de decisões, de setores políticos e econômicos comprometidos com as concepções do regime político anterior. Não compreender as implicações desse processo nos dias de hoje pode levar a um voluntarismo pueril. Aceitá-lo como fato incontornável é uma resignação em tudo, e por tudo, pusilânime.
O golpe veio para barrar a emergência de um movimento de massas. Não foi para atingir personalidades, ainda que muitas delas tenham desempenhado um papel importante na abertura dos espaços para essa nova dinâmica, mas para conter o crescimento popular.
Como destacou Almino Afonso, ministro do Trabalho no governo João Goulart, o movimento tinha dois objetivos: “Primeiro, barrar o avanço dos movimentos sociais; segundo, impedir a tomada de consciência nacional que começava a esboçar uma linha de resistência internacional com uma nitidez nunca havida antes em nosso passado. Esses dois fatores confluíram gradualmente para um todo mais ou menos homogêneo e, embora não tivéssemos nem partido político para ser expressão desse despertar, nem lideranças claras para se converterem em porta-vozes desses novos atores, essa emergência foi suficientemente forte para alarmar os setores dirigentes do país e seus aliados internacionais, que se associaram na implantação da ditadura” (Folha de S. Paulo, 1/4/1984)
Numa retrospectiva das medidas tomadas naquela época, é impressionante ver, no governo de Jango, a quantidade de iniciativas que foram adotadas, projetadas e enviadas ao Congresso Nacional. Na sua totalidade é inequívoca a vontade de atacar os pilares da estrutura capitalista num país subdesenvolvido.
Disciplinou a remessa dos lucros das empresas estrangeiras, estabeleceu o monopólio da compra do petróleo, desapropriou as refinarias privadas, bem como os latifúndios improdutivos nas margens das rodovias, congelou os aluguéis e buscou o apoio dos sargentos, cabos e soldados, diretamente. Atacando a todos simultaneamente, João Goulart facilitou a aglutinação dos interesses econômicos contrariados em torno dos generais da direita, que chegaram a receber a garantia do Pentágono, conforme documentos divulgados em Washington.
A índole dos golpistas pôde ser apreciada desde os primeiros atos legislativos baixados. Seguiu-se a arrasadora repressão, ampla entrega do subsolo, compra pela União das empresas de serviços públicos pertencentes à Bond & Share (American Power) e depois os da Light, por preços absurdamente abaixo do valor de mercado. A corrupção generalizada nos negócios do Estado e a censura à imprensa – apesar do apoio do baronato do campo midiático – fizeram da noite dos generais a luxúria dos cartéis e grandes corporações.
Apesar de tudo, um fio de continuidade, transverso e denso, percorre a história desses anos. A história dos tempos de arbítrio é a história de uma crise feita de muitas dimensões: das sucessivas crises militares, dos esforços de Geisel e Figueiredo de usar a “abertura” como garantia do monopólio do poder a serviço do grande capital. É, no entanto, no crescimento do movimento popular – da luta pela anistia, da reabertura da UNE à criação do Partido dos Trabalhadores – que se avolumam os choques maiores e as contradições mais profundas do regime. Um ciclo se esgota, mas a história não se encerra. Mobilizar a vontade nacional, tendo como fundamento um pacto social mais justo e não excludente, em defesa da soberania nacional, da cultura brasileira, da sua integridade, visando a realização do bem comum é o projeto nacional posto em pauta desde 2003.
Para continuar sendo exeqüível, é fundamental não ceder terreno. Reafirmar os princípios do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, cumprir as propostas aprovadas na Confecom, avançar na questão agrária e na manutenção do diálogo com os movimentos sociais são passos decisivos para organizar uma nação moderna e organizada. Não fazê-lo é conviver com o permanente risco de retrocesso. E nunca é bom desconsiderar o aspecto trágico da História e o papel motriz da violência em sua caminhada. Os golpistas esperam o sono dos justos para lançar os dados do nosso destino. Não podemos dormir novamente.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Correio do Brasil, do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.
Fonte: Correio do Brasil.
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