Em artigo publicado nesta sexta-feira no jornal Público, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos diz que a receita do Fundo Monetário Internacional (FMI) para Portugal só vai causar o aprofundamento da crise, a exemplo de outros países onde ela foi aplicada. "Claro que pode haver complicadores", ressalta. "Os portugueses podem revoltar-se. O FMI pode admitir que fez um juízo errado e reverter o curso, como aconteceu na crise da Ásia Oriental, em que as políticas do FMI produziram o efeito contraproducente".
Boaventura de Sousa Santos - Público
Começo por descrever os próximos passos do aprofundamento da crise para de seguida propor uma estratégia de saída. O que neste momento se está a definir como solução para a crise que o país atravessa não fará mais que aprofundá-la. Eis o itinerário. A intervenção do FMI começará com declarações solenes de que a situação do país é muito mais grave do que se tem dito (o ventríloquo pode ser o líder do PSD, se ganhar as eleições). As medidas impostas serão a privatização do que resta do sector empresarial e financeiro do Estado, a máxima precarização do trabalho, o corte nos serviços e subsídios públicos, o que pode levar, por exemplo, a que o preço dos transportes ou do pão suba de um dia para o outro para o triplo, despedimentos na função pública, cortes nas pensões e nos salários (a começar pelos subsídios de férias e de Natal, um “privilégio” que os jovens do FMI não entendem) e a transformação do SNS num serviço residual.
Tudo se fará para obter o seal of approval do FMI que restabelece a confiança dos credores no país. O objectivo não é que pague as dívidas (sabe-se que nunca as pagará), mas antes que vá pagando os juros e se mantenha refém do colete de forças para mostrar ao mundo que o modelo funciona.
Este itinerário não é difícil de prever porque tem sido esta a prática do FMI em todos os países onde tem intervindo. Rege-se pela ideia de que one size fits all, ou seja, que as receitas são sempre as mesmas, uma vez que as diferentes realidades sociais, culturais e políticas são irrelevantes
ante a objectividade dos mercados financeiros.
Feita a intervenção de emergência – que os portugueses serão induzidos a ver como uma necessidade e não como um certificado de óbito às suas justas aspirações de progresso e de dignidade –, entra o Banco Mundial para fornecer o crédito de longa duração que permitirá “reconstruir” o
país, ou seja, para assegurar que serão os mercados e as agências de rating a ditar ao país o que pode e não pode ser feito. Serão ocultadas as seguintes irracionalidades:
Que o modelo imposto ao mundo está falido na sua sede, os EUA; que o FMI faz tudo para servir os interesses financeiros norte-americanos, até para se defender do movimento que houve no Congresso para o extinguir;
que o maior credor dos EUA, a China, e segunda maior economia do mundo, tem o mesmo poder de voto no FMI que a Bélgica; que as agências de rating manipulam a realidade financeira para proporcionar aos seus clientes “rendas financeiras excessivas”.
Claro que pode haver complicadores. Os portugueses podem revoltar-se. O FMI pode admitir que fez um juízo errado e reverter o curso, como aconteceu na crise da Ásia Oriental, em que as políticas do FMI produziram o efeito contraproducente, como reconhece Jagdish Bhagwati, um respeitado economista e free trader convicto, em In Defense of Globalization. Se tal acontecer, não é sequer imaginável que o FMI indemnize o país pelo erro cometido.
Perante este agravamento concertado da crise, como buscar uma saída que restitua aos portugueses a dignidade de existir? Não discuto aqui quem serão os agentes políticos democráticos que tomarão as medidas necessárias nem o modo como os portugueses se organizarão para os pressionar nesse sentido. As medidas são as seguintes:
Realizar uma auditoria da dívida externa que permita reduzi-la à sua proporção real, por exemplo, descontando todos os efeitos de rating por contágio de que fomos vítimas nos últimos meses. Resolver as necessidades financeiras de curto prazo contraindo empréstimos, sem as condicionalidades do FMI, junto de países dispostos a acreditar na capacidade de recuperação do país, tais como a China, o Brasil e Angola. Tomar a iniciativa de promover um diálogo Sul-Sul, depois alargado a toda a Europa, no sentido de refundar o projecto europeu, já que o actual está morto. Promover a criação de um mercado de integração regional transcontinental, tendo como base a CPLP e como carros-chefes Brasil, Angola e Portugal. Usar como recurso estratégico nessa integração a requalifi cação da nossa especialização industrial em função do extraordinário avanço do país nos últimos anos nos domínios da formação avançada e da investigação científica.
(*) Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
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