Ricardo Kotscho.
Trabalho em condições análogas à escravidão, trabalho semi-escravo, condições degradantes de trabalho. Há muitas formas modernas de qualificar o que os antigos chamavam simplesmente de escravidão.
É quando a pessoa trabalha praticamente só em troca de comida e abrigo, é desrespeitada nos seus mínimos direitos, é tratada como bicho (muitas vêzes, pior) e se torna cativa de quem a contrata.
De repente, termos e situações que pareciam enterrados com a princesa Isabel no final do século 19 ressurgem no noticiário para descrever como ainda vivem milhares de trabalhadores brasileiros em pleno começo do século 21.
O primeiro grito foi dado lá das profundas da selva amazônica, em Rondonia, quando se rebeleram os trabalhadores das obras da usina hidrelétrica de Jirau, que botaram fogo no canteiro e entraram em greve.
Depois, a revolta dos operários espalhou-se pelo complexo portuário e industrial de Suape, em Pernambuco, e outras obras do PAC, em várias regiões do país, sempre pelo mesmo motivo: relações de trabalho com práticas escravagistas em consequência da terceirização e até da quarteirização da mão de obra.
Faz poucos dias, o governo federal viu-se obrigado a convocar uma reunião com as grandes construtoras e as centrais sindicais para impor regras mais civilizadas na proteção dos trabalhadores que vivem em canteiros de obras do PAC.
Mal refeitos do susto e da indignação causada pela revelação do que acontece em paragens mais distantes do país, descobrimos que a mesma situação é vivida por trabalhadores na nossa cara, aqui ao lado de São Paulo, na região de Campinas, em obras do programa Minha Casa, Minha Vida.
“Vitrine do PAC expõe trabalho degradante _ Operários do Minha Casa, Minha Vida vivem em locais superlotados e sujos”, denuncia a manchete da Folha desta segunda-feira, em reportagem de Silvio Navarro.
Ao terminar de ler o texto, viajei no tempo pela mesma estrada rumo ao interior paulista que percorri muitas vezes nos anos 70 e 80 do século passado para fazer a cobertura de rebeliões e greves dos então chamados bóias-frias.
Eram trabalhadores recrutados em sua maioria no Nordeste, como agora, para trabalhar temporariamente nas colheitas de cana de açucar, café e laranja. Nada mudou: as condições em que vivem os trabalhadores do PAC descritas na reportagem são exatamente as mesmas que encontrei 40 anos atrás nas fazendas paulistas.
“(…) trabalhadores vivem em locais superlotados, sem ventilação e com problemas de higiene e saneamento (…) podem ser vistos colchões com beliches construídos com madeira da própria obra ao lado de botijões de gás e rede elétrica”.
Por trás da tragédia humana, encontram-se também os mesmos personagens daquela época: os “gatos”, fornecedores de mão de obra, intermediários de gente, que cobram caro pelo seu “produto” e pagam uma merreca para os trabalhadores.
A partir de denúncias do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil da região, o Ministério Público registrou casos de retenção da carteira. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Manuel Edionaldo, que chegou do Piauí e está há 21 dias sem a carteira porque o “gato” que o contratou simplesmente desapareceu.
Estamos falando de uma prática que não é nova nem localizada, e resiste há mais de dois séculos: só no ano passado, segundo relata o jornal, foram registradas 16.630 denúncias de irregularidades em relação à segurança e à saúde do trabalhador.
O Ministério do Trabalho sempre alega que faltam fiscais (são 2.994 para cuidar de todas as obras em andamento no país, e não só as do PAC), mas o problema poderia ser resolvido de uma forma bem simples, sem gastar nada: proibir de uma vez por todas a ação de “gatos”, estes gigolôs de trabalhadores, e colocar na cadeia tanto os intermediários como quem os utiliza para contratar mão de obra.
A Odebrechet, uma das empresas denunciadas em Campinas, soltou nota à imprensa para informar que vai cuidar da melhoria dos alojamentos e pagamento dos salários dos trabalhadores “até que os responsáveis pela empresa subcontratada pudessem assumir diretamente seus deveres”.
Muito justo, muito bonito. Mas, como assim? Quer dizer que só agora, depois das denúncias do sindicato, uma das maiores empreiteiras do país, com obras no mundo todo, assume sua responsabilidade perante os trabalhadores?
Será que ninguém da empresa se deu ao trabalho ou ao menos teve antes a curiosidade de saber o que estava acontecendo no seu canteiro de obras, a 93 quilômetros de São Paulo?
Afinal, o patrimônio de qualquer construtora é constituído basicamente de equipamentos e funcionários, e é preciso zelar por ambos, não importa quantas subcontratações sejam feitas ao longo das obras.
O mais triste para mim nesta história é que tais fatos ainda se repitam em 2011, no nono ano de governos eleitos pelo Partido dos Trabalhadores, que foi criado, como o nome indica, exatamente para lutar em defesa de quem ganha a vida com a força dos braços e o suor do rosto.
Se o caro leitor souber de casos semelhantes em obras na sua cidade, peço a gentileza de nos informar para que possam ser tomadas providências. Estes crimes contra os trabalhadores brasileiros não podem continuar impunes.
Fonte: Blog BALAIO.
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