POR CLAUDIO LEAL
Em seus delírios no hospital, chumbado por uma pneumonia, Jarbas Passarinho se ajustava ao terno de senador, na tribuna de um plenário vazio, entre paredes sonhadas. Membro de três governos da ditadura iniciada em 1964, o ex-ministro e coronel da reserva mergulhava em discursos sem fim; e repentinamente se imaginava em sala de aula, inconsciente, e voltava a discutir teses no Senado, semidesperto, e enxergava uma mulher com comprimidos. Acordou em algum dia de outubro de 2009. Delirava desde agosto. Sua caligrafia mudara: as palavras, enladeiradas, tremiam.
 
Passarinho descreveu esses fotogramas do coma em 9 de junho de 2010, devolvido à biblioteca de sua casa, em Brasília, mas ainda em recuperação, sob assistência de enfermeiras. “Eu era um quase morto. Fiquei como um moribundo. Todas as coisas desapareceram de minha cabeça. Eu tinha delírios”, relembrou, ao vasculhar as horas em que seu corpo se insinuou para o lado de lá. Por um tempo, abandonou os jornais, disposto a não cuidar de notícias. “Mas você não pode viver isolado de um conjunto de 190 milhões de pessoas. Agora, recomeço a ler. Estava com um livro sobre o Bolsa Família”, disse. Músicas instrumentais amoleciam as suas leituras.
 
A metro e meio de um exemplar de “Terra Encharcada”, obra ficcional lançada em 1959, não deixou de rir de uma boutade do crítico Agrippino Grieco, lembrada pelo repórter: “Não li Terra Encharcada, o romance do Jarbas Passarinho. Tenho medo de pegar impaludismo”. Noutra estante de madeira, os livros marxistas compunham uma prateleira estranha a qualquer gabinete de oficial outrora engajado em golpe anticomunista. “Toda ela é marxista!”. Troçava: Marx era bom para dar o diagnóstico e péssimo para curar o doente. “E tenho o grande Raymond Aron”, realçou, apontando as memórias do sociólogo francês que se opôs a regimes totalitários.
 
Aron era seu “mestre” nos estudos sobre os protestos de maio de 1968 na França. Citava-o com frequência, mas não sem abafar o encantamento recente pela obra do romancista André Gide, o autor de “Córidon” e “Os subterrâneos do Vaticano”: “Achei belíssimo o livro memorialístico de Gide. Em algumas partes, pensei naquela má vontade que a gente tinha com os homosexuais. Houve um momento em que ele era superior a Sartre, em matéria de popularidade literária”. Nessa semana, queria aprofundar-se na história do retorno de Gide à União Soviética, em 1936, ano em que o escritor retirou a simpatia pelos bolcheviques e atacou o stalinismo.
 
Suas opções políticas nem sempre se afinavam com seus autores preferidos. “As pessoas podem dissentir das outras sem necessariamente serem fanáticas. Os nacionalistas que eu chamava de epidérmicos, estes são os fanáticos. Tem pouca gente qualificada para discutir. O que eu li de ciência política, rapaz!”, Passarinho arfou. Para ilustrar a tolerância entre oponentes, mencionou as dedicatórias do jornalista Flávio Tavares e do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, vinculados à resistência contra a ditadura civil-militar. Flávio, que o entrevistara para o documentário “O dia que durou 21 anos”, com direção de Camilo Tavares, escreveu numa folha de rosto: "A Jarbas Passarinho, com quem se aprende mesmo quando se dissente". A outra, de Gabeira: “A Jarbas Passarinho, por cima das nossas divergências”.
 
O deputado federal e capitão da reserva, Jair Bolsonaro, era a caricatura do interlocutor que lhe aborrecia. "Ah, esse homem eu nunca pude suportar! Já tive com ele aborrecimentos sérios. Ele é um radical e eu não suporto radicais, inclusive os radicais da direita. Eu não suportava os radicais da esquerda e não suporto os da direita”, diria, por telefone, em março de 2011. Com as provações das casernas e dos palácios, sentenciou na década de 90: "Os militares pensam que são monopolistas do patriotismo e os civis pensam que são monopolistas da inteligência".
 
Um dos signatários do Ato Institucional Nº5 (AI-5), marco das restrições arbitrárias das liberdades individuais no Brasil, baixado em 13 de dezembro de 1968, Jarbas Passarinho foi governador biônico do Pará (1964-66) e ocupou o ministério do Trabalho e Previdência Social, no governo Costa e Silva; o da Educação, com Emílio Garrastazu Médici; e outra vez a Previdência, com João Figueiredo.
 
Presidiu o Senado, nos anos 80, e voltou à Esplanada no regime democrático, assumindo o ministério da Justiça no mandato de Fernando Collor, ao qual fez a indicação do médico Adib Jatene, também nascido na acreana Xapuri, para comandar a Saúde. Diante da dúvida do conterrâneo, apelou: “Aceita, Jatene, porque vamos ser dois de Xapuri no ministério!”.
 
No livro de memórias "Um híbrido fértil", Passarinho justificou a frase que marcaria sua presença no AI-5 e na história: "Quando chegou minha vez de opinar, não me furtei às palavras comprometedoras (…) Preferi não ser monossilábico. Disse, sem medo de mostrar que estávamos ingressando na ditadura: – A mim me repugna, senhor presidente, enveredar pelo caminho da ditadura, mas já que não há como evitá-la, às favas os escrúpulos de consciência". Nunca se arrependeu desse apoio e acreditava que o ato discricionário nasceu de muitos fatores acumulados, não apenas do combate à esquerda armada.
 
No final de 1970, foi o primeiro ministro militar a reconhecer publicamente a existência de torturas em dependências do Exército, em resposta a uma pergunta do repórter Reali Júnior, num programa de TV em São Paulo. “Eu tinha levado um caso de tortura ao Médici e ele tomou providência. Por isso que eu defendo a memória dele. Mas esse aí já é mais um fato desvinculado. Porque não se podia dizer isso a Médici. O Médici virou o vilão da história porque era isso”, afirmou Passarinho, na longa conversa vespertina em seu gabinete-biblioteca.
 
Numa carta a Médici, em março de 1971, narrou a tortura contra uma universitária da UnB: “pontapé no ventre, seguido de hemorragia uterina; eletrochoques, que provocaram coma, pois a moça era epiléptica”. Aparentemente surpreso, o ditador teria recomendado uma conversa com o general Walter Pires, para identificar e punir os torturadores.
 
Criticado por sua passagem pelo Ministério da Educação, na era Médici, ele dizia ser contrário ao “draconiano” Decreto-Lei 477, conhecido como o “AI-5 das universidades”, que atingiu professores, alunos e funcionários envolvidos em atividades subversivas. Mas, segundo suas próprias contas, aplicou-o 39 vezes contra estudantes (suspensos e impedidos de cursar outra faculdade por três anos). Decidiu-se por 106 absolvições. Apesar disso, ele costumava ressalvar, pedira a Médici para anular o decreto, esbarrando na oposição do general João Figueiredo, do Gabinete Militar. Confessava ainda ter dificuldades no diálogo com Golbery do Couto e Silva, ex-chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel. Depois de demitir-se do governo Figueiredo, em 1981, Golbery recebeu em seu sítio uma visita de Passarinho, que congelou a visão das precárias estantes de livros. De perto, observou os volumes da biblioteca do “Feiticeiro”, e concluiu: “Ele não comprava a coisa por metro”.
 
Em suas pastas, as queixas de estudantes e professores se somavam, de alguma forma, às antipatias de oficiais da “linha dura”, que o qualificavam como “moderado”. Híbrido, coronel embarcado na carreira civil, Passarinho manifestava desavenças com extremistas como o general sergipano Humberto de Mello, um dos artífices das operações que dizimaram a guerrilha em São Paulo. O jornalista Elio Gaspari relatou em “A ditadura escancarada” (Ed. Intrínseca, 2014): “Em 1971, prevaleceu o extermínio. Pelo menos na área sob jurisdição do II Exército, essa política está documentada. O general Vicente de Paulo Dale Coutinho, ex-comandante da 2ª Região Militar, descreveria a diretriz do colega Humberto de Souza Mello, que assumiu o comando do II Exército em janeiro de 1971: ‘Eu vi em São Paulo, e justiça se faça ao Humberto. Quando começou o comando do Humberto, começou a diminuir o terror, porque a ordem era matar. A ordem dele era matar”.
 
“Humberto de Mello era um anticomunista furibundo”, definiu Passarinho, que não apagara uma briga com o então coronel, no tempo em que serviram na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Comandante do corpo de cadetes, Mello se empertigava na estação de trem, para punir os faltosos. Certa vez, retornando do Rio de Janeiro, um cadete se viu atrapalhado por um acidente na estrada e chegou somente no dia seguinte. O boletim “cantou”. E nem mesmo um recorte do “Diário de Notícias”, com fotografia do desastre, sensibilizou Mello. “Pelo regimento do Exército, um subordinado não pode rever a decisão do superior, mas pode recorrer”, explicou Passarinho, que defendeu o recurso.
 
-Talvez o senhor não conheça seu cadete mais do que eu – encrespou Mello.
 
- Ponho em dúvida, coronel – reagiu o capitão Passarinho.
 
- O senhor sabe que ele foi punido no Rio de Janeiro, antes de ser aprovado aqui? Ele tem histórico de indisciplina.
 
- Mas, no momento em que foi aprovado para as Agulhas Negras, isso não foi levado em conta. O rapaz provou que houve um contratempo, não teve culpa.
 
“Ele tinha oito dias para apagar a punição da ficha do cadete. Eu acompanhava dia a dia. Só retirou no sétimo”, revelou o ex-ministro, espantado com a mesquinhez do colega.
 
Aos 90 anos, Jarbas Passarinho acabara de lançar “Amazônia, Patrimônio Universal?” (Edições do Senado Federal), em que discutia o conceito de soberania e o direito de ingerência internacional na floresta. “Escrevi como um dever meu para com a Amazônia. Nasci no Acre, em Xapuri, e tive em Belém a parte preliminar de ensino, até o nível médio e colegial. O resto foi todo no Exército. A primeira missão minha, já como oficial, foi feita em Belém. A segunda, como aluno aprovado pelo Estado-Maior, foi servir à 8ª Região Militar. Depois veio o Comando Militar da Amazônia, onde cheguei a chefe de Estado-Maior”, contou.
 
Em seus papos, intercalava as narrativas com parênteses irônicos. “Tenho aqui um livro (In the Stream of History) do secretário de Estado do primeiro governo de Clinton, Warren Christopher, que comprei na Amazon durante o governo Fernando Henrique Cardoso, quando ele nos enganou na política cambial…”, apunhalou. Outro dia, por telefone: “O Geneton (Moraes Neto, jornalista) ficou do meu lado, praticamente empurrando pela boca o microfone. Foi quando parei e fiz a brincadeira: eu estava à morte, ano passado, mas como tinha que ser entrevistado pelo senhor, esperei”. Manhoso, respondeu ao repórter que desejava falar sobre os protestos de 1968: “Eu sei que você quer mesmo é chegar ao AI-5…”.
 
Estático em sua cadeira, desculpou-se no final da conversa: "Não vou poder me levantar e te levar à porta".
 
Depois da internação hospitalar de 2009, persistiu na fisioterapia, nas entrevistas e na caligrafia. “Quando me ligam para vir pra cá, eu digo: pode vir a hora que quiser, porque estou desempregado”, sorriu, em 2011. Há cerca de dois anos, por razões de saúde, interrompeu a publicação de artigos na imprensa e brecou os contatos com jornalistas. Em casa, ainda lê jornais e revistas – no gabinete, sem Aron nem Sartre.