quinta-feira, 6 de março de 2014

AS LINHAS QUE DIVIDEM A AMÉRICA LATINA.

As linhas que dividem a América Latina

Por Camila Moraes

Pode soar como uma questão complexa — assunto de Estado, objeto de estudos, raspa de estatísticas cruéis — mas, no fundo, o cenário atual de circulação literária na América Latina caberia perfeitamente na mente de uma criança. Explica-se num desenho simples, cuja base são os contornos de um mapa político dos países do Ocidente, nosso velho conhecido desde os tempos de escola.

Lá do canto superior direito, saindo da Espanha, parte em direção ao sul das Américas um grupo de imponentes caravelas com pilhas de livros e mais livros, conduzido por um par de homens brancos. Na direção contrária, uma canoa magra, cheia de índios e a remo faz o mesmo caminho com dois ou três volumes, dando as costas para a terra que ficou para trás.
Duas imponentes flechas, a mais grossa vindo dos Estados Unidos e outra grande vinda da Inglaterra, se encontram no centro do território latino-americano, tocando a linha imaginária porém bem visível do antigo Tratado de Tordesilhas. Para reforçar essa divisão ainda tão vigente, o Brasil está pintado de uma cor, que corresponde ao português; e México, Argentina e tudo o que há no meio deles, de outra, para ressaltar o castelhano. Especialmente sobre os países latinos, chama a atenção um punhado de cifrões e também certas bolinhas bem marcadas, que uma legenda revela ser “o mercado natural espanhol”, no primeiro caso, e “grandes literaturas”, no segundo. Na porção europeia do mapa nota-se que não há demarcações, enquanto na América Latina as fronteiras que nos separam são bem grossas.
Bastaria um passeio do olhar pelo infográfico, e as conclusões são bastante óbvias. Mas podemos resumi-las assim: não é questão de talento, e sim de interesses mercantis, que a literatura latino-americana não circule como deveria, assim como é o mercado a ditar, na América Latina, que o que temos à disposição dos leitores é uma avalanche de títulos em inglês.
Agora, de volta ao mundo em três dimensões. Falamos o tempo todo dos baixos índices de leitura que nos caracterizam: 5,4 livros lidos por ano no Chile; 4 no Brasil; 2,9 no México; e 2,2 na Colômbia, segundo dados de 2012 do Cerlalc (Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe), com sede em Bogotá e ligado à Unesco. Sim, mais da metade dos latino-americanos (59%) não tem o hábito de ler, mas, nessas terras, quem se arrisca a cruzar as portas de uma livraria se depara com uma variedade insultante de livros traduzidos do inglês, de best-sellers a ensaios críticos, de autores conhecidos a novos e questionáveis talentos que provavelmente só nas prateleiras mais subdesenvolvidas encontram um lugar. O mesmo que poderia estar sendo ocupado por clássicos latino-americanos esquecidos ou até agora desconhecidos e por escritores não só contemporâneos como conterrâneos, com os quais muito mais temos a compartilhar.
Mil palavras
Parece ser uma questão editorial, mas no fundo é geopolítica. Uma panorâmica pela Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, o maior palco mundial das letras hispânicas, mostra que o mundo muda rapidamente nos dias de hoje, porém símbolos são fortes e resistem muito mais. Ao entrar no pavilhão dedicado às editoras, de cara se estabelece um jogo de forças: na dianteira se instalam os três imponentes grupos editoriais espanhóis, que são Planeta, Santillana e Random House Mondadori (este último alemão, porém radicado na Espanha). Logo atrás ou um pouco mais na periferia, as maiores empresas e instituições mexicanas (o que é de se esperar num evento no México), como o Fundo de Cultura Econômica, Conaculta etc. E no meio surgem pequenas pérolas escondidas: editoras independentes de toda a região, com seus menus únicos de autores, belas publicações e a inconfundível dignidade dos subjugados.
Essa rota da independência é a esperança de um dia poder contar com uma maior oferta de livros latino-americanos na América Latina, por mais paradoxal que isso possa soar. Aqui no Brasil, tido especialmente no meio editorial como um país que pode ser qualquer coisa, menos latino-americano, é preciso acreditar ainda mais. Outra vez, agora quem sabe de verdade, essa independência tem que ser declarada. E talvez seja preciso gritar com mais força do que antes, afinal o mundo é cada vez maior, as ofertas sempre mais amplas, e o interesse tende a ser difuso.
Já se repetiu à exaustação que uma imagem vale mais que mil palavras, e não é à toa. Pode ser que não sejamos grandes leitores de livros, mas diferenciar uma caravela de uma canoa é das primeiras coisas que aprendemos na escola. Além de ser uma imagem que nos impede continuamente de esquecer.
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Camila Moraes é jornalista, tradutora e escritora.

Fonte: Observatório da Imprensa

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