Sete anos atrás, quando eu acompanhava de perto as políticas públicas de combate à fome no Brasil, o benefício médio do Bolsa Família era de R$ 170. Famílias em condições mais vulneráveis recebiam mais, mas o benefício era sempre um complemento de renda, nunca era alto demais a ponto de, digamos, desmobilizar a pessoa, impedi-la de buscar outras fontes de renda.
Naquela época, no entanto, um dos maiores desafios quando se falava do programa era combater os mitos que foram construídos sobre ele. O principal deles era o de que as pessoas que recebiam o benefício deixavam de trabalhar por causa disso. O Bolsa Família formava vagabundos, diziam.
Diziam também que as beneficiárias faziam mais filhos para receber mais. Diziam que o benefício era usado para alimentar vícios. Diziam um monte de absurdos.
Era possível combater cada um deles com dados. Não, quem recebe Bolsa Família não deixa de trabalhar ou procurar trabalho. Não, o número de filhos por família não aumentou, pelo contrário. O benefício contribuía para melhorar a alimentação e era usado também para comprar roupas e material escolar. Tudo tinha estudos comprovando, era fácil.
Mas todos os argumentos tinham uma mesma origem. Todos vinham do preconceito.
É fácil combater mentiras com argumentos, a gente tem dados. Mas combater preconceito com argumentos é bem mais difícil, como temos visto cada vez mais nos últimos anos.
Eu estou trazendo tudo isso agora porque, bom, você deve ter visto nos últimos dias as notícias envolvendo o uso de trabalho análogo à escravidão em vinícolas gaúchas. E talvez você tenha visto também a nota da entidade que representa as indústrias da cidade de Bento Gonçalves, onde os trabalhadores foram encontrados vivendo em condições degradantes, que colocava a culpa pelo trabalho escravo no Bolsa Família! Imagina, por causa do Bolsa Família os empregadores foram obrigados a dar choque em trabalhadores, subentende-se. Se você não viu, tampe o nariz e clique aqui para ler a matéria.
A lógica por trás da nota é a mesma que eu via sete anos atrás quando se falava sobre programas de transferência de renda. A opinião não é exclusiva de quem escreveu o texto ou de quem representa o órgão, embora cause espanto terem de fato colocado isso no papel e publicizado essa visão. Mas repare: eles se sentiram confortáveis em colocar preconceitos no papel justamente porque eles sabem que os preconceitos estão enraizados no meio em que vivem.
Quão centrado no seu próprio universo elitista e racista um indivíduo tem que ser para achar que alguém vai deixar de trabalhar para ganhar meio salário mínimo? Quão descolada da realidade da vida da população brasileira essa pessoa tem que ser? Quão preconceituosa?
Mas, convenhamos, se alguém deixou de trabalhar em condições precárias por causa do Bolsa Família, não existe prova maior de que o Bolsa Família funciona. E é isso que essa gente odeia.
“Essa é uma desculpa elaborada com frequência, como forma de se esquivar do problema, e também uma forma de estigmatizar o próprio trabalhador, de colocar nas costas dele a responsabilidade por um sistema e por uma forma de produção que estruturalmente causa esse tipo de exploração do trabalho. Na realidade, nosso sistema econômico atual, capitalista, gera ciclos de superexploração do trabalho”, disse ao Brasil de Fato o advogado Felipe Adão, doutorando em ciência política pela Unicamp e pesquisador acadêmico que estuda trabalho escravo.
Pois é.
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