Carlos Chagas
Juscelino Kubitschek era homem de coragem física. Sabendo por amigos comuns que Jânio Quadros faria violento discurso contra o seu governo, na hora da transmissão da faixa presidencial, mandou avisar que reagiria. Chamou o chefe da Cerimonial e indagou como seria a solenidade. Informado de que logo atrás dele estaria o seu ministério, assim como o ministério de Jânio atrás do novo presidente, pegou o mapa e, com um lápis vermelho, mudou a disposição. Queria ficar frente a frente com o sucessor, a menos de um metro um do outro. E os ministros bem atrás.
Disse-me anos depois estar pronto para, se ofendido em sua honra, dar um passo à frente e um soco na cara de Jânio. Ia ser um escândalo internacional, mas estava decidido. Os tais amigos comuns souberam, avisaram o novo presidente e, na hora da passagem do governo, Jânio foi todo sorrisos e elogios.
Ao deixar o palácio do Planalto, JK foi acompanhado por grande multidão até o aeroporto que hoje leva o seu nome. No Galeão, voaria direto para Portugal, com a família. A aeronave começava a sobrevoar o Atlântico quando o piloto chama-o à cabine. Colocou os fones de ouvido e percebeu que Jânio discursava, na “Hora do Brasil”. Dizia tudo aquilo que não tivera coragem de dizer com os olhos nos olhos. Voltou à sua poltrona e pensou como o Brasil ainda tinha muito a percorrer em matéria de democracia.
Muito mais tarde, com os dois já cassados, foi ao Guarujá para uma palestra. Descansava depois do almoço, no quarto do hotel, quando escutou um vozerio na porta. De repente, quem irrompe pelo aposento, sentando-se na beirada da cama? Jânio Quadros. Nunca mais se tinham encontrado e o ex-presidente, segurando seu braço com as duas mãos, exclamou aos berros: “Errei, meu amigo, errei. Também, eu nem tinha lido antes o discurso que escreveram para mim…”
Quando da renúncia de Jânio Quadros, a imprensa encontrou Juscelino na sede do extinto PSD, no Rio. Só teve um comentário: “É doido mesmo…” Integrou-se à campanha de Leonel Brizola pela posse de João Goulart, mas, já senador por Goiás, insurgiu-se contra a decisão do Congresso de implantar o parlamentarismo.
Era candidatíssimo a voltar ao poder em 1965. Só que, pouco antes de deixar o governo, fechou a cara para Tancredo Neves, seu dileto amigo, diante da proposta de ver votada emenda constitucional permitindo sua reeleição. Nem quis ouvir falar no assunto… Em 1963 e 1964, estava em plena campanha. Adotou o costume de visitar jornalistas, mais do que ser visitado por eles. Foi ao apartamento do saudoso Oyama Telles, do “Correio da Manhã”, conversar com cinco ou seis repórteres políticos, entre os quais eu estava incluído.
Semanas depois, a vez da casa do também hoje desaparecido Heráclio Salles. Estava marcada para o final de abril de 1964 sua ida ao meu apartamento, no Flamengo. Não deu, por conta do golpe militar.Na tarde de 31 de março, consegui localizá-lo pelo telefone. Eu trabalhava no “Globo” e tivera a informação de que Juscelino havia estado no palácio das Laranjeiras, com o presidente João Goulart.
Ele foi seco, do outro lado da linha: “Estive sim, estou chegando agora do Laranjeiras. Mas não me pergunte mais nada porque não vou contar.”
Os militares batiam cabeça, com a queda de Jango, até que dez dias depois de os tanques terem ido para a rua, os generais decidiram botar ordem na bagunça e substituir o Comando Supremo da Revolução (Costa e Silva, Augusto Rademaker e Francisco de Assis Correia de Melo) pelo general Castelo Branco.
Imaginando que as instituições funcionavam, ou fingindo muito bem, Castelo Branco quis ser eleito pelo Congresso. Mesmo com as esquerdas cassadas, votos eram necessários, e o futuro presidente foi recebido pela direção do PSD, maior partido nacional. Foi na casa do deputado Joaquim Ramos, em Copacabana. Lá estavam Amaral Peixoto, José Maria Alkimin, Negrão de Lima, Martins Rodrigues e outros. Juscelino também. A conversa seguia amável, mas tensa, e JK não parava de olhar o relógio de pulso. Seu diálogo com Castelo foi curto. Quis saber se teríamos eleições presidenciais no ano seguinte, e o futuro presidente garantiu que sim.
Malicioso, ao notar que Juscelino continuava olhando o relógio, comentou: “Senador, percebo que o senhor deve ter outro compromisso. Não se prenda por mim, ainda que eu tenha reservado esta noite para dialogar com o PSD”.
Por mais estranho que pudesse parecer, Juscelino retirou-se logo depois, para espanto dos companheiros. Na manhã seguinte, Negrão de Lima telefonou: “Juscelino, você ficou maluco? Abandonar o todo poderoso general que vai tomar posse amanhã! O que você tinha de tão urgente assim?”
Resposta: “Uma reunião na casa do Bené Nunes, que ia tocar piano para um grupo de amigos…”
Como senador por Goiás, JK votou em Castelo Branco, sem perceber que se transformaria na maior vítima do regime de arbítrio. Não demorou para que o mandato primeiro general-presidente fosse prorrogado por um ano, sob o argumento de que o país não poderia viver em 1965 uma convulsão eleitoral. A verdade é que a impopularidade da chamada Revolução aumentava dia a dia e todos previam que Juscelino seria eleito por larga margem. Quando da prorrogação, foi alertado de que dificilmente o deixariam ser candidato, mas só acreditou quando, em julho, teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos.
Seu maior algoz foi o então governador Carlos Lacerda, que também se julgava candidato. Avisado por José Maria Alkimin de que seria atingido pelo Ato Institucional, veio a Brasília para pronunciar seu último discurso. Contou-me depois que após o protesto feito pela tribuna, uma das maiores peças de oratória que produziu, deixou o plenário do Senado pelo corredor central.
Rostos se viravam quando passava. Nenhum cumprimento. Desceu com Dona Sarah até o saguão principal do Congresso. A vida soube ser cruel com quem, meses antes, era bajulado aos extremos. Um apressado retorno do exílio levou-o à humilhação de responder a dois Inquéritos Policiais Militares, tratado com desdém por coronéis e majores, obrigado a passar horas sentado num banquinho, sem direito sequer à presença de seu advogado, Sobral Pinto.
Logo voltou para Portugal, sendo que no aeroporto do Galeão, pela primeira vez na vida, botou um pequeno revolver na cintura. O Rio estava cheio de boatos de que não o deixariam embarcar, que o prenderiam na hora. Disse-me que se fosse humilhado, ou se Dona Sarah submetida a violências, atiraria no primeiro oficial da Aeronáutica que surgisse à sua frente. Seria morto depois, mas com honra.
O tempo passou, a angústia de JK crescia em progressão geométrica, longe do Brasil. Pensou em dar fim à vida, num Natal passado em Paris só com o fiel coronel Afonso Heliodoro.
No final de 1966 o general Costa e Silva havia imposto sua candidatura ao presidente Castelo Branco, mas as relações entre eles eram tão tensas que o segundo presidente do ciclo revolucionário entendeu de viajar para o exterior. Fui mandado acompanhá-lo, pelo “O Globo”. Lisboa era a primeira parada. No intervalo de uma visita e outra do general a autoridades portuguesas, em companhia do jornalista Washington Novaes, aproveitei para visitar o ex-presidente Juscelino. Ele tinha escritório no Chiado, bem defronte à Lisboa Antiga. Recebeu-nos emocionado, pediu notícias do Brasil e em dado momento, levou-nos á sacada, para ver a vista. Estávamos os três de frente para a paisagem e aí percebi o porquê da iniciativa. Olhando-o de soslaio, vi que chorava.
De noite, no hotel, um daqueles coronéis truculentos da comitiva veio tirar satisfações. Como tínhamos ido conversar com o inimigo da Revolução? Para falta de sorte dele o general Costa e Silva vinha saindo do elevador e quis saber sobre o que discutíamos. Contei sobre a visita e ainda perguntei ao futuro presidente: “Se um dia desses, passeando na rua, o senhor desse de frente com o presidente Juscelino? Faria o quê?
“O sempre surpreendente general respondeu, encerrando o assunto: “Nos cumprimentaríamos, como todo brasileiro deve fazer com outro brasileiro, quando se encontram no exterior…”
Juscelino acabou voltando ao Brasil, mesmo suspenso em seus direitos políticos, proibido de entrar em Brasília e recebendo os ônus de se haver composto com Carlos Lacerda, na estranha Frente Ampla que os reuniu a João Goulart numa luta efêmera pela volta do país à democracia. O resultado foi a agitação dos radicais e a edição do Ato Institucional número 5, o mais hediondo de todos.
O presidente era paraninfo de uma turma de formandos, na noite de 13 de dezembro de 1968. Depois de discursar no Teatro Municipal, no Rio, ao sair foi preso, conduzido ao Forte Copacabana, onde permaneceu alguns dias. Horror dos horrores, naquela mesma hora Carlos Lacerda também tinha sido detido e conduzido a um quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O cárcere não deixou sequelas em JK, ao contrário do antigo desafeto.
Fonte: Tribuna da Internet
Juscelino Kubitschek era homem de coragem física. Sabendo por amigos comuns que Jânio Quadros faria violento discurso contra o seu governo, na hora da transmissão da faixa presidencial, mandou avisar que reagiria. Chamou o chefe da Cerimonial e indagou como seria a solenidade. Informado de que logo atrás dele estaria o seu ministério, assim como o ministério de Jânio atrás do novo presidente, pegou o mapa e, com um lápis vermelho, mudou a disposição. Queria ficar frente a frente com o sucessor, a menos de um metro um do outro. E os ministros bem atrás.
Disse-me anos depois estar pronto para, se ofendido em sua honra, dar um passo à frente e um soco na cara de Jânio. Ia ser um escândalo internacional, mas estava decidido. Os tais amigos comuns souberam, avisaram o novo presidente e, na hora da passagem do governo, Jânio foi todo sorrisos e elogios.
Ao deixar o palácio do Planalto, JK foi acompanhado por grande multidão até o aeroporto que hoje leva o seu nome. No Galeão, voaria direto para Portugal, com a família. A aeronave começava a sobrevoar o Atlântico quando o piloto chama-o à cabine. Colocou os fones de ouvido e percebeu que Jânio discursava, na “Hora do Brasil”. Dizia tudo aquilo que não tivera coragem de dizer com os olhos nos olhos. Voltou à sua poltrona e pensou como o Brasil ainda tinha muito a percorrer em matéria de democracia.
Muito mais tarde, com os dois já cassados, foi ao Guarujá para uma palestra. Descansava depois do almoço, no quarto do hotel, quando escutou um vozerio na porta. De repente, quem irrompe pelo aposento, sentando-se na beirada da cama? Jânio Quadros. Nunca mais se tinham encontrado e o ex-presidente, segurando seu braço com as duas mãos, exclamou aos berros: “Errei, meu amigo, errei. Também, eu nem tinha lido antes o discurso que escreveram para mim…”
Quando da renúncia de Jânio Quadros, a imprensa encontrou Juscelino na sede do extinto PSD, no Rio. Só teve um comentário: “É doido mesmo…” Integrou-se à campanha de Leonel Brizola pela posse de João Goulart, mas, já senador por Goiás, insurgiu-se contra a decisão do Congresso de implantar o parlamentarismo.
Era candidatíssimo a voltar ao poder em 1965. Só que, pouco antes de deixar o governo, fechou a cara para Tancredo Neves, seu dileto amigo, diante da proposta de ver votada emenda constitucional permitindo sua reeleição. Nem quis ouvir falar no assunto… Em 1963 e 1964, estava em plena campanha. Adotou o costume de visitar jornalistas, mais do que ser visitado por eles. Foi ao apartamento do saudoso Oyama Telles, do “Correio da Manhã”, conversar com cinco ou seis repórteres políticos, entre os quais eu estava incluído.
Semanas depois, a vez da casa do também hoje desaparecido Heráclio Salles. Estava marcada para o final de abril de 1964 sua ida ao meu apartamento, no Flamengo. Não deu, por conta do golpe militar.Na tarde de 31 de março, consegui localizá-lo pelo telefone. Eu trabalhava no “Globo” e tivera a informação de que Juscelino havia estado no palácio das Laranjeiras, com o presidente João Goulart.
Ele foi seco, do outro lado da linha: “Estive sim, estou chegando agora do Laranjeiras. Mas não me pergunte mais nada porque não vou contar.”
Os militares batiam cabeça, com a queda de Jango, até que dez dias depois de os tanques terem ido para a rua, os generais decidiram botar ordem na bagunça e substituir o Comando Supremo da Revolução (Costa e Silva, Augusto Rademaker e Francisco de Assis Correia de Melo) pelo general Castelo Branco.
Imaginando que as instituições funcionavam, ou fingindo muito bem, Castelo Branco quis ser eleito pelo Congresso. Mesmo com as esquerdas cassadas, votos eram necessários, e o futuro presidente foi recebido pela direção do PSD, maior partido nacional. Foi na casa do deputado Joaquim Ramos, em Copacabana. Lá estavam Amaral Peixoto, José Maria Alkimin, Negrão de Lima, Martins Rodrigues e outros. Juscelino também. A conversa seguia amável, mas tensa, e JK não parava de olhar o relógio de pulso. Seu diálogo com Castelo foi curto. Quis saber se teríamos eleições presidenciais no ano seguinte, e o futuro presidente garantiu que sim.
Malicioso, ao notar que Juscelino continuava olhando o relógio, comentou: “Senador, percebo que o senhor deve ter outro compromisso. Não se prenda por mim, ainda que eu tenha reservado esta noite para dialogar com o PSD”.
Por mais estranho que pudesse parecer, Juscelino retirou-se logo depois, para espanto dos companheiros. Na manhã seguinte, Negrão de Lima telefonou: “Juscelino, você ficou maluco? Abandonar o todo poderoso general que vai tomar posse amanhã! O que você tinha de tão urgente assim?”
Resposta: “Uma reunião na casa do Bené Nunes, que ia tocar piano para um grupo de amigos…”
Como senador por Goiás, JK votou em Castelo Branco, sem perceber que se transformaria na maior vítima do regime de arbítrio. Não demorou para que o mandato primeiro general-presidente fosse prorrogado por um ano, sob o argumento de que o país não poderia viver em 1965 uma convulsão eleitoral. A verdade é que a impopularidade da chamada Revolução aumentava dia a dia e todos previam que Juscelino seria eleito por larga margem. Quando da prorrogação, foi alertado de que dificilmente o deixariam ser candidato, mas só acreditou quando, em julho, teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos.
Seu maior algoz foi o então governador Carlos Lacerda, que também se julgava candidato. Avisado por José Maria Alkimin de que seria atingido pelo Ato Institucional, veio a Brasília para pronunciar seu último discurso. Contou-me depois que após o protesto feito pela tribuna, uma das maiores peças de oratória que produziu, deixou o plenário do Senado pelo corredor central.
Rostos se viravam quando passava. Nenhum cumprimento. Desceu com Dona Sarah até o saguão principal do Congresso. A vida soube ser cruel com quem, meses antes, era bajulado aos extremos. Um apressado retorno do exílio levou-o à humilhação de responder a dois Inquéritos Policiais Militares, tratado com desdém por coronéis e majores, obrigado a passar horas sentado num banquinho, sem direito sequer à presença de seu advogado, Sobral Pinto.
Logo voltou para Portugal, sendo que no aeroporto do Galeão, pela primeira vez na vida, botou um pequeno revolver na cintura. O Rio estava cheio de boatos de que não o deixariam embarcar, que o prenderiam na hora. Disse-me que se fosse humilhado, ou se Dona Sarah submetida a violências, atiraria no primeiro oficial da Aeronáutica que surgisse à sua frente. Seria morto depois, mas com honra.
O tempo passou, a angústia de JK crescia em progressão geométrica, longe do Brasil. Pensou em dar fim à vida, num Natal passado em Paris só com o fiel coronel Afonso Heliodoro.
No final de 1966 o general Costa e Silva havia imposto sua candidatura ao presidente Castelo Branco, mas as relações entre eles eram tão tensas que o segundo presidente do ciclo revolucionário entendeu de viajar para o exterior. Fui mandado acompanhá-lo, pelo “O Globo”. Lisboa era a primeira parada. No intervalo de uma visita e outra do general a autoridades portuguesas, em companhia do jornalista Washington Novaes, aproveitei para visitar o ex-presidente Juscelino. Ele tinha escritório no Chiado, bem defronte à Lisboa Antiga. Recebeu-nos emocionado, pediu notícias do Brasil e em dado momento, levou-nos á sacada, para ver a vista. Estávamos os três de frente para a paisagem e aí percebi o porquê da iniciativa. Olhando-o de soslaio, vi que chorava.
De noite, no hotel, um daqueles coronéis truculentos da comitiva veio tirar satisfações. Como tínhamos ido conversar com o inimigo da Revolução? Para falta de sorte dele o general Costa e Silva vinha saindo do elevador e quis saber sobre o que discutíamos. Contei sobre a visita e ainda perguntei ao futuro presidente: “Se um dia desses, passeando na rua, o senhor desse de frente com o presidente Juscelino? Faria o quê?
“O sempre surpreendente general respondeu, encerrando o assunto: “Nos cumprimentaríamos, como todo brasileiro deve fazer com outro brasileiro, quando se encontram no exterior…”
Juscelino acabou voltando ao Brasil, mesmo suspenso em seus direitos políticos, proibido de entrar em Brasília e recebendo os ônus de se haver composto com Carlos Lacerda, na estranha Frente Ampla que os reuniu a João Goulart numa luta efêmera pela volta do país à democracia. O resultado foi a agitação dos radicais e a edição do Ato Institucional número 5, o mais hediondo de todos.
O presidente era paraninfo de uma turma de formandos, na noite de 13 de dezembro de 1968. Depois de discursar no Teatro Municipal, no Rio, ao sair foi preso, conduzido ao Forte Copacabana, onde permaneceu alguns dias. Horror dos horrores, naquela mesma hora Carlos Lacerda também tinha sido detido e conduzido a um quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O cárcere não deixou sequelas em JK, ao contrário do antigo desafeto.
Fonte: Tribuna da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário