sábado, 30 de março de 2013

POLÍTICA - O pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil.


O pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil. Entrevista especial com Tales Ab'Sáber

Em dez anos de gestão petista, “se produziu um novo e raro pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil, em uma espécie de social democracia mínima, que levou à verdadeira hegemonia política lulista ao final de seu segundo mandato, em 2010”, diz professor da Unifesp.

Confira a entrevista.


“O Fla-flu político-ideológico para a manutenção do governo Lula, e para a afirmação de seu sucesso, desmobilizou um tanto das exigências sociais críticas da própria esquerda, que passou a nivelar expectativas e desejos por baixo, se aproximando fortemente da ordem conservadora, o que, para um país com déficits, como é o Brasil, não é bom. Além disso, a política, o manejo cotidiano da vida pública, regrediu abertamente a um estado generalizado de complacência com a corrupção e a incompetência; ou a esquerda se instalou finalmente na fratura exposta da política fisiológica brasileira”. A descrição é do professor da Unifesp, Tales Ab’Sáber (foto abaixo), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “dialeticamente, e curiosamente, a gigantesca crise do Partido dos Trabalhadores coincidiu com o tempo do governo de Lula – e, dada a contradição radical com sua própria história, creio que não poderia ser diferente –, o que precipitou sua efetiva renovação, e acabou fazendo com que o partido saísse um passo na frente na necessária renovação geral da vida política brasileira”. E conclui: “pela primeira vez o Brasil sentiu a força ideológica da soma de democracia, mercadoria e emprego, de modo que esta experiência, a do capitalismo integrado, vinda muito tardiamente e do todo, repercutiu sobre todo o povo brasileiro. Em termos políticos clássicos, o líder popular apoiado pelo que restou da esquerda, com vínculos sindicalistas fortes, comandou um imenso processo de aceitação da hegemonia – como dizia Gramsci – do modo de ser do capitalismo contemporâneo por estas bandas, cacifando a vida ruim dos pobres no Brasil com o acesso a celulares, tevês de plasma e carros populares, de modo que todos, trabalhadores e mercados, ficaram satisfeitos”.

Tales Ab’Sáber, psicanalista e ensaísta, é professor de Filosofia da Psicanálise na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Formado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP, é mestre em Artes pela mesma instituição. Também é psicólogo pelo Instituto de Psicologia da USP, onde defendeu doutorado sobre clínica psicanalítica contemporânea. É membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É autor de, entre outros, Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (São Paulo: Hedra, 2011) e A música do tempo infinito (São Paulo: Cosac Naify, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Passados 10 anos, como era o Brasil antes e como é agora, depois da passagem do PT pela Presidência da República?

Tales Ab’Sáber – Não há dúvida de que houve um pequeno salto de civilização no Brasil nestes dez anos. Mas acredito que, de fato, pequeno. O fato de o governo petista ter insistido, através de práticas econômicas e sociais de inclusão social, mas também através de uma política fortemente simbólica a respeito desta inclusão – principalmente nos dois governos Lula – no compromisso do Estado e da nação com a inserção social das massas pobres brasileiras, e os bons resultados econômicos e simbólicos destas políticas, que também dizem respeito ao lugar do Brasil no mundo, talvez tenham estabelecido como definitiva a necessidade de que o crescimento econômico nacional esteja atrelado e comprometido a uma simultânea dinâmica social de transformação e inclusão. Se isso for verdade, a irreversível dinâmica nacional de associar crescimento e integração social, o Brasil ganhou um ponto muito importante no processo de sua modernização real atrasada.

Crescimento com inclusão

Até muito recentemente não havia garantias políticas nem a perspectiva de que a máxima concentração de renda tradicional brasileira e o desprezo das elites brasileiras pela vida popular levassem a uma solidificação desta posição: a do crescimento com inclusão. As elites brasileiras conceberam por duzentos anos um país sem este tipo de veleidade civilizatória – e nos primeiros 66 anos do país ainda se deram ao grande luxo antimoderno de ser uma elite de senhores de escravo, em pleno século XIX – e, sendo assim, podiam manter a vida do país no regime da máxima concentração, como sempre foi, por que não? Esta conquista, que talvez seja a principal dos governos petistas, é fruto dos processos políticos competitivos da democracia de massas, que envolveram o próprio surgimento e desenvolvimento do PT, e da orientação popular, ou neopopulista de mercado, como escrevi sobre Lula, dos últimos tempos.

No entanto, tal inserção social ainda é muito incompleta e foi acompanhada de imensas mazelas, tanto políticas quanto culturais. De fato ela não está garantida, e pode ser revertida por um novo ciclo de acumulação capitalista no país. Ainda, por outro lado, a inserção dos pobres, exclusiva e preferencial via consumo, ilude com o acesso ao mercado e seu fascínio pelas coisas. O que seria, na prática, uma vida decente para os pobres no país, o que, se considerarmos as garantias básicas de direitos cidadãos, como educação, saúde, transporte e moradia decentes, absolutamente não é verdade. Também, o Fla-flu político-ideológico para a manutenção do governo Lula, e para a afirmação de seu sucesso, desmobilizou um tanto das exigências sociais críticas da própria esquerda, que passou a nivelar expectativas e desejos por baixo, se aproximando fortemente da ordem conservadora, o que, para um país com déficits, como é o Brasil, não é bom. Além disso, a política, o manejo cotidiano da vida pública, regrediu abertamente a um estado generalizado de complacência com a corrupção e a incompetência; ou a esquerda se instalou finalmente na fratura exposta da política fisiológica brasileira. Sem falarmos no rebaixamento cultural mais amplo e irrestrito, onde se insere inclusive, e principalmente, a classe média alta e os ricos nacionais, satisfeitos de modo caipira e bem desinteligente com um mundo imediato de consumo de quinquilharias do luxo mundial, e com a vida voltada para um hedonismo o mais barato concebível. Desse ponto de vista, a política geral das humanidades da esquerda no poder, de fato bem liberal, nos últimos dez anos, não pode ser considerada suficientemente boa.

IHU On-Line – Passados 10 anos, como era o PT antes e depois da passagem pela Presidência da República?

Tales Ab’Sáber – A história do PT depois da sua chegada ao poder federal é uma mistura de “uma montanha russa com uma casa dos horrores”. A transformação acelerada do PT em um novo tipo de partido tradicional brasileiro teve início com as decisões de real politique levadas a cabo para eleger Lula em 2003: alianças com partidos tradicionais, de centro e até de direita, para garantir uma coalizão governista e maior tempo de TV, e a aceitação de uma aberta política da imagem, da espetacularização dos atributos do líder Lula, para operar seu novo e alavancado carisma pop junto à vida popular, o que ocupou o lugar das antigas políticas de esclarecimento e exigências públicas críticas, que sempre distinguiram a atuação, iluminista e inteligente, do PT na política brasileira.

O PT ganhou a eleição exatamente no feitio, propagandístico e de espetáculo no lugar da política, que foi o de seus adversários de direita, Collor ou Fernando Henrique, em pleitos anteriores. E este modo de partir para os efeitos alienantes e acríticos da nova política da imagem, ancorada no potencial carismático do líder, já era, em meu entender, uma conversão política bem radical do Partido dos Trabalhadores aos novos tempos. No poder, o partido aceitou as decisões conservadoras sobre a política econômica, dando garantias de contratos ao grande capital, aceitou a gestão fisiológica, e mesmo corrupta, da máquina política de Brasília, expulsando inapelavelmente a esquerda do partido, e liberou Lula para ser o garoto propaganda, regressivo e fetichista, da imagem de seu próprio governo.

Aumento da renda com foco no consumo

Tudo isso era compensado pelo projeto de acelerar o aumento da renda dos pobres, orientado para o consumo. Em 2005, em um episódio de imensa incompetência no manejo dos compromissos assumidos, veio a crise grosseira do mensalão, escancarando publicamente a nova ordem de práticas, de fato as mais velhas conhecidas no Brasil, do novo PT do poder. José Dirceu caiu, e com ele todo o núcleo central do partido que orbitava junto a Lula. O partido saiu marcado por uma contradição realmente insolúvel para a sua história: ele era o novo grande promotor de práticas corruptas, e de apropriação de riqueza pública na política brasileira. Rompeu-se a última barreira, acelerou-se a montanha russa, surgiu, para mim e para muitos, a casa dos horrores. Lula saiu a campo para defender em um corpo a corpo de imagem seu governo combalido e que corria riscos, e neste momento a conversão à política do espetáculo foi de grande importância; o PMDB passou a ser o regulador da real política petista no congresso; Lula ficou maior que seu partido – cujos nomes principais tinham que se haver com polícia e tribunais – e após os sucessos de sua política de transferência de renda e crédito para os pobres, no segundo mandato, ele determinou, de modo meio imperial, mas com tino político perfeito, a renovação forçada do partido, sustentando a neófita política Dilma Rousseff e, no ano seguinte, o novíssimo quadro petista Fernando Haddad, em São Paulo. Dialeticamente, e curiosamente, a gigantesca crise do Partido dos Trabalhadores coincidiu com o tempo do governo de Lula – e, dada a contradição radical com sua própria história, creio que não poderia ser diferente –, o que precipitou sua efetiva renovação, e acabou fazendo com que o partido saísse um passo na frente na necessária renovação geral da vida política brasileira.

Nada disso impediu que uma parte significativa dos companheiros petistas, que escaparam à degola do mensalão, enriquecesse abertamente em um processo de franco aburguesamento com o período no poder. O caso de Antonio Palocci se recusando a declarar as empresas que lhe pagaram milhões por assessorias, nas vésperas de sua entrada para o governo Dilma, de modo que o político abriu mão do ministério, mas não do dinheiro e dos negócios, é bastante exemplar a este respeito. O da secretária de Lula indicando amigos para órgãos reguladores e demandando deles, muito à vontade, sucessivos favores em dinheiro, é outro. E neste processo, mais uma vez, os petistas apenas confirmaram o movimento mais geral e muito tradicional da política brasileira, o que quer dizer, em outras palavras, que outros partidos, incluindo aí o refinado PSDB, não fariam melhor.

IHU On-Line – Quais os mecanismos utilizados pelo PT para se manter tanto tempo no poder Executivo federal dentro de uma democracia direta? Qual a importância das alianças e da política de coalizão nesse sentido?

Tales Ab’Sáber – Creio que os mecanismos usados para o predomínio petista, que é a própria configuração do governo, foram as quatro posições assumidas pelo governo Lula:
1) aceitação da real politique fisiológica e arcaica brasileira,
2) manutenção dos contratos e dos preços do capitalismo financeirizado brasileiro de então, com autonomia e garantia de gestão pró-mercado do Banco Central brasileiro,
3) políticas de investimento e de aumento de renda, via transferência e via crédito, para os muitos pobres, visando a dinamização e o aumento do mercado interno e
4) aberta e calculada política da imagem de Lula, junto aos pobres e à indústria cultural global, ao ponto dele chegar a alcançar um novo nível de mistificação política, o do carisma pop. Com estas ações se produziu um novo e raro pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil, em uma espécie de social democracia mínima, que levou à verdadeira hegemonia política lulista ao final de seu segundo mandato, em 2010.
Sobre a política de coalizão: no Brasil ela coincide com a cessão, em regime de “porteira fechada”, de grandes “nacos” do poder público e do Estado, para a gestão privada, eu diria quase privatizada, do partido que faz parte da aliança governista e que recebeu a benesse nos jogos do poder, de modo que as ações destas verdadeiras partes autônomas do poder de Estado não estão sincronizadas ou afinadas com a política geral do governo majoritário. Nosso presidencialismo de coalizão produz uma política privatizada para os partidos, cuja gestão da coisa pública é, em geral, incompetente e fortemente corrupta. Esta estrutura institucional, da própria política, tem imensos custos para o país, e pode levar a grandes instabilidades e crises. Ela teria que ser redesenhada, mas todas as forças políticas se igualam e estão satisfeitas nela, desde que o PT passou a fazer parte e dar legitimidade para o clube da partilha do Estado. Lula estabeleceu este estado de coisas, não muito diferenciado do modo tucano de acolher o PFL em seu governo, e Dilma foi obrigada a fazer o teatrinho da faxina política, que apenas troca um gestor incompetente e corrupto de um dado partido, por outro igual, do mesmo partido.

IHU On-Line – O senhor afirma que “o mensalão é a instalação do PT na política de direita brasileira”. Desde quando o PT deixou de ser um partido de esquerda?

Tales Ab’Sáber – Desde quando o PT assumiu, de modo conservador, que sua tarefa histórica é a modernização do capitalismo brasileiro, buscando ser o fio da meada de um pacto social difícil, dada a imensa disparidade de poder entre as classes no país. Ao assumir esta posição, no governo, o PT liquidou o lugar histórico do PSDB – que era exatamente este, mas sem compromisso social forte – com o adendo de que o partido tucano seria o tampão para barrar, pelo centro, a chegada do PT, então sentido como anticapital, ao poder. E não por acaso o partido também se aburguesou, e se tornou corrompível no poder, o que tem muita lógica com o projeto assumido.

O sucesso amplo de tal posição política petista junto ao grande poder e ao grande dinheiro nacional também significou o rebaixamento geral das práticas, e mesmo das expectativas culturais exigentes, do velho PT ao ramerrão geral da baixaria, tradicionalmente própria das elites brasileiras. Este foi o outro pacto social: o do encontro da baixa cultura de elite com a regressão cultural petista satisfeita. Mas que pode significar isto, se os pobres estão satisfeitos no consumo, os ricos estão liberados e felizes, e os companheiros de Lula enriquecem com os bons negócios do Estado? A regressão cultural é, desse modo, hegemônica.

IHU On-Line – Quais os principais efeitos políticos regressivos que a “política do absurdo para salvar a própria pele”, como o senhor definiu a atuação do PT no mensalão, pode provocar?

Tales Ab’Sáber – Para mim o que houve de mais lamentável no inteiramente lamentável episódio histórico do mensalão foi a incapacidade total do PT, e do governo Lula, de politizar de modo afirmativo e verdadeiramente progressista o fato de homens do partido terem sido apanhados em práticas ilegais, e que eram, até então, endêmicas no país. O fato do partido se ver envolvido em práticas corruptas, de circulação de dinheiro não contabilizado, com origem em fontes públicas, para a gestão da política nacional, e de ser exatamente este o estado generalizado das coisas políticas entre nós, era forte o suficiente, expressivo o suficiente, exemplar o suficiente, para produzir uma ação política propositiva e transformadora deste estado de coisas, para precipitar, a partir do protagonismo histórico do PT, e sua autocrítica exigente, uma reforma política que banisse definitivamente tal estado de degradação e submissão da vida política nacional aos jogos e diretos do dinheiro.
O PT, por estar no centro do lugar em que todos estavam, e por sua grande história de negação ética destas mesmas coisas da política brasileira em que estava envolvido, podia, e eu diria, tinha mesmo a obrigação, de propor uma mudança na regra do jogo que corrompera o próprio partido, o que o instalou na política de direita brasileira. Mas isso não ocorreu. Que posição o partido e o governo tomaram? A que havia verdadeiramente de pior no espaço e nas tradições políticas brasileiras. Apanhados em graves ilícitos, com provas fartas a partir da denúncia de um político, de direita, participante ativo do esquema, o PT, sem nenhuma crítica ou autocrítica, produziu uma negação geral dos fatos, e demandou do Supremo a tradicional impunidade dos poderosos brasileiros... Não apenas o partido foi apanhado em ato de circulação de dinheiro ilegal – como um velho Maluf qualquer, digamos assim de modo metafórico – como ao negar explicitamente o inegável, e exigir a indevida impunidade, apostando na degradação institucional e política a favor do poder, o partido se comportou inteiramente, efetivamente, em toda a linha, como um Maluf qualquer... Não apenas as práticas, mas toda a ação simbólica foi de direita, e o resultado institucional e político do affaire, se estes políticos regressivos vencessem o jogo, seria a reafirmação da impunidade da justiça brasileira para os poderosos, um dos mais graves males de nossa democracia danificada...
O PT jogou inteiramente na regressão, contra sua história, e contra toda expectativa de vida política inteligente no partido, e contra o país, demandando a impunidade das elites, a mesma que degrada a vida da justiça e da política brasileira, tornando-as mafiosas, igualando-se a um Maluf qualquer, aquele que, condenado, continua dizendo nunca ter sido condenado. Por isso falei em “a aposta em uma política do absurdo para salvar a própria pele”, neste episódio lamentável em toda extensão e profundidade que podemos alcançar. Com estas ações públicas o PT se fez idêntico, em todos os passos, antes durante e depois, ao modo de ser da direita brasileira. E, por isso, há profunda coerência na foto, exigida pelo político de direita, de Lula cumprimentando Maluf no jardim de sua mansão, que revelou aos petistas escandalizados aquilo que cuidadosamente eles tentam ocultar de si mesmos. Uma atuação política pública desastrada em toda linha, horrível e lamentável, além de, não por acaso, incompetente e derrotada.

IHU On-Line – Qual é o partido que pode ser considerado de esquerda hoje no Brasil?

Tales Ab’Sáber – Se há alguma esquerda, que sustente algum grau de crítica ao modo de ser do capitalismo contemporâneo, ela está fragmentada e se tornou de fato irrelevante, pelas próprias más avaliações do mundo e do tempo. Um mínimo grupo de sindicalistas que anima um partido nanico, com segundos na tevê, como ocorre no Brasil, não é de fato uma esquerda digna das grandes tradições críticas e da intensidade política da tradição.
Além disso, temo fortemente pelo mal entendimento das práticas de poder e de alienação muito avançadas na técnica do mundo de hoje, que creio que a esquerda de fato não sabe conceber, realística e criticamente. Por não saber pensar estas coisas – a indústria da diversão, o poder do fetichismo da mercadoria, a submissão sadomasoquista à indústria cultural – a esquerda, quando se aproxima do poder, faz um pacto apressado e mimético com elas.
A única esquerda à altura do tempo efetiva entre nós, mas irrelevante para a política real e partidária, me parece ser a esquerda de alta exigência teórica e crítica que se protegeu na universidade. A voz desta vida intelectual de esquerda deveria poder alcançar de algum modo a vida pública mais ampla.

IHU On-Line – Como definir o que seria o pensamento de esquerda política em nossos dias?

Tales Ab’Sáber – Existe uma new left mundial que tem alguns parâmetros importantes para o pensamento de esquerda, como orientar o crescimento global e a crítica ao poder a favor das massas violentadas e alienadas em injustiça presentes em todo o mundo, ao mesmo tempo em que ela não cede da crítica racional e exigente às mazelas do capitalismo ali onde ele se tornou universal.
Esta esquerda mantém viva uma avaliação muito rigorosa das contradições e novas ordens de violência do momento atual de globalização do capital e dos mercados e de redução dos espaços de potencial democrático assim como das novas tecnologias de informação a espaços de mera circulação da mercadoria e de seu sistema do espetáculo, de imagem lixo, baixa informação e fofocas.
Em geral, trata-se de uma crítica independente e universitária, mas é uma reserva de racionalidade e exigência de valores humanos que pode ser ativada em algum momento de falência e de crise da acumulação do capital, o que ocorreu, por exemplo, em 2008. Obama, que chegou ao poder nos Estados Unidos por causa da crise real do capitalismo mundial, promovida pelos grandes terroristas de Wall Street, era alimentado e informado por parte desta esquerda acadêmica norte-americana. De todo modo, já é plenamente possível falarmos de uma verdadeira crise do pensamento político de direita em nossos dias.

IHU On-Line – Como se deu o processo da integração capitalista brasileira? O senhor continua achando que essa foi a grande obra de Lula na presidência, seu grande legado?

Tales Ab’Sáber – Certa vez Caio Prado Jr. disse que se tivesse que definir o Brasil em uma única palavra ele diria que é um país muito atrasado. A integração capitalista brasileira foi um processo extremamente atrasado e atravessado pelo déficit de cidadania e de relações econômicas e políticas entre as classes sociais que trabalhassem na direção da reparação social da escravidão original e da integração de todos na vida simbólica e material do presente. O Brasil atravessou o século XIX, o século do significante universal do progresso, com escravidão, o que significa integração social zero, e ainda no tardio 1964, por motivos internos que recebiam por aqui o influxo da guerra fria norte-americana, o país mergulhou em uma ditadura de extrema direita, autoritária e antipopular, que geriu de modo muito conservador o imenso crescimento econômico do século XX brasileiro. Mais uma aposta na não integração social. A democracia demorou a dar as caras e algum mínimo resultado por aqui.
Os dez anos de Sarney, Collor e Itamar foram praticamente perdidos para o efeito e a necessidade de integração das massas pobres na economia moderna e na plena cidadania. FHC, com o combate à inflação, criou as bases para o sucesso do governo petista, oito anos depois, mas com seu rígido controle monetário, corte total dos gastos públicos e grande elitismo, praticamente parou o país, efeito econômico deletério para os mais pobres. Sobraram para Lula as condições de reanimar a economia visando o mercado interno e um simulacro de um tipo de pleno emprego, sem o qual a ordem ideológica capitalista simplesmente não funciona, em nenhuma parte.
Pela primeira vez o Brasil sentiu a força ideológica da soma de democracia, mercadoria e emprego, de modo que esta experiência, a do capitalismo integrado, vinda muito tardiamente e do todo, repercutiu sobre todo o povo brasileiro. Em termos políticos clássicos, o líder popular apoiado pelo que restou da esquerda, com vínculos sindicalistas fortes, comandou um imenso processo de aceitação da hegemonia – como dizia Gramsci – do modo de ser do capitalismo contemporâneo por estas bandas, cacifando a vida ruim dos pobres no Brasil com o acesso a celulares, tevês de plasma e carros populares, de modo que todos, trabalhadores e mercados ficaram satisfeitos.
Para isso se rebaixaram as exigências críticas e éticas do PT, se aceitou a gerência global dos números do mercado financeiro local e pobres e ricos sintonizaram no projeto Lula, em um pacto não explicitado realizado em seu nome, aceitando o seu desenho e os seus limites. Evidentemente, ao contrário do que diz a propaganda geral, os ricos ganharam imensamente mais no processo. De resto, nos últimos tempos temos visto a grande dificuldade de Dilma Rousseff em governar o país de modo a produzir um verdadeiro maior desenvolvimento econômico, diminuindo os juros devidos pelo governo aos mercados, e a nova dificuldade política que esta primeira cisão histórica do governo petista com parte do capital vem produzindo.

IHU On-Line – Quais os rumos do PT depois que ele deixar o poder? Poderá ser novamente considerado um partido de esquerda quando voltar a ser oposição?

Tales Ab’Sáber – O PT se originou e tem um vínculo, hoje nada profundo, mas eficazmente simbólico, com a história da democratização brasileira após a violenta ditadura de extrema direita brasileira de 1964. Em sua fundação, em 1981, convergiram para um amplo projeto, que então tentava equacionar a ideia de um socialismo democrático, várias forças e estratos sociais brasileiros de esquerda, de algum modo reencenando no interior do partido a tentativa de aproximação entre as classe sociais que existiu no Brasil e que foi violentamente cortada em 1964. Estas forças heterogêneas, que viam na sua própria aproximação em um partido a possibilidade de um verdadeiro movimento de democratização social no país, que envolviam sindicalistas, intelectuais de esquerda, religiosos ligados à teologia da libertação latino-americana, passaram fortemente a investir na figura estratégica do grande líder popular, Lula. As intensas discussões democráticas do partido convergiam para o trabalho da liderança nacional de Lula, o que acabou, nos últimos tempos históricos, constituindo o carisma quase mítico do presidente.

Deste modo, o PT sempre vai poder, em tom de fábula, ou mesmo de farsa, recontar os tempos heroicos da congregação nacional das esquerdas que ele de fato significou, nos anos 1980 e 1990. E dado o imenso atraso cidadão e material de grande parte do povo brasileiro em relação à realidade do tempo do mercado e da cidadania plena, o partido sempre terá uma margem de não integração social para representar na política. Isso tranquiliza o seu patronato político que, se não forem presos, ou caírem na lei da ficha limpa, terão ainda longa vida para o poder.

Todavia, o importante é a adequação política ao jogo do poder brasileiro, como ele é, que deu imensos resultados para Lula, e que permite, à direita e ao capital no Brasil, receber do PT influxos sociais pró-capitalistas que eles próprios são incapazes de realizar.

Fonte:IHU

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