Economia | texto 5996
As luzes do mercado se apagam: as falsas promessas do neoliberalismo ao término de um século em crise
Robert Kurz
Nenhuma dúvida: a falência econômica do socialismo de Estado estimulou enormemente todas as ilusões do Ocidente sobre si mesmo. A consciência crédula na economia de mercado, pouco menos ideológica que a sua contrapartida falsificada na prática, encara-se como vencedora da história. Parece já ter sido quase esquecido que o neoliberalismo dos anos 80 foi, ele próprio, uma reação às crises econômica e social do Ocidente, que já ameaçam há mais de uma década. A emergencial bandagem em torno da própria testa, que até agora pouco ajudou, é estilizada subitamente como se fosse um brilhante louro da vitória, por ter-se afundado na poeira um outro combatente da história da modernização. Agora, no entanto, o Ocidente e um mundo economicamente ocidentalizado estão sozinhos consigo, e seria adequado recolocar sob o microscópio as receitas do neoliberalismo, bem como a realidade a que se referem.
Que há tempos estamos diante de uma crescente crise econômica mundial, não é negado sequer por muitos neoliberais. Eles fundamentam tal crise, no entanto, não nas contradições do próprio sistema de mercado, mas primeiramente em erros de ordem institucional, econômica e ideológica, que teriam sido cometidos por socialistas, keynesianos etc. A visão de mundo aí subjacente é de uma nobre simploriedade iluminista. O discurso neoliberal pressupõe que todas as economias nacionais poderão prosperar por toda a eternidade dentro do sistema da economia de mercado, bastando seguirem o modelo correto de ordem e desenvolvimento (muitas vezes designado inclusive como natural) de uma economia maximamente privatizada e não-regulamentada, na qual o Estado se restrinja a manter a estabilidade do valor da moeda (política financeira monetarista) e a garantir law and order. Tanto o Ocidente em crise, que teria ficado doente por excesso de intervencionismo estatal, despesas sociais e deficit spending, quanto também as sociedades do Oriente e do Sul, ainda não suficientemente formadas em termos de economia de mercado, precisariam tão somente fazerem as suas tarefas domésticas, em termos de uma política da ordem no sentido dos Chicago-Brothers de Milton Friedman, para que paz e prosperidade passassem a imperar no One World do dinheiro global.
O platonismo modelar dessa ideologia choca-se, no entanto, cada vez mais com as condições sociais e históricas concretas, nas quais devem ser implementadas - de novo ou até pela primeira vez - a concorrência, a privatização e a desregulamentação. Só aparentemente chegam a ter voz essas condições quando, desde há algum tempo, o modelar platonismo da economia de mercado é flanqueado por uma doutrina político-cultural institucionalizada, entre outros fatores devido à teoria de Mancur Olson (1). A teoria olsoniana, inicialmente desenvolvida em função dos problemas da própria economia de mercado ocidental, afirma, em seu cerne, que a consolidação política e cultural de grupos de interesse, os quais bloqueiam inovações e acessos ao mercado, acaba inibindo o crescimento econômico das sociedades. Para os que acreditam na economia de mercado, isso quer dizer que a liberdade precisa ser treinada, que precisa ser desenvolvida uma cultura da concorrência e da responsabilidade pessoal adequada ao mercado. Portanto, essa doutrina à base de modelos, ahistórica e cega diante dos condicionamentos estruturais, é estendida apenas à disposição cultural dos sujeitos e às suas formas de articulação política.
Também para as relações entre as diferentes economias nacionais entre si, o neoliberalismo tem novamente a oferecer a concepção de um modelo teórico e, naturalmente, é claro, uma concepção de livre-comércio. Assim como precisa-se desregulamentar para dentro, também precisa-se para fora. Exige-se a abertura dos mercados (ainda que nem sequer os governos de inspiração neoliberal tenham se atido a isso), e a orientação para a exportação mediante vantagens comparativas recíprocas, o que pretende arrancar até mesmo o antigo Terceiro Mundo do desastre em termos de desenvolvimento. Seremos levados, portanto, para épocas maravilhosas se tudo se comportar assim. Infelizmente, no entanto, os inovadores neoliberais pecam contra o primeiro mandamento de sua própria doutrina, pois mostram-se extraordinariamente sem sucesso. Após menos de uma década, já deixou de brilhar de novo a estrela dos reaganomics e do thatcherismo. Em termos de economia, restou um monte de ruínas. Também no Leste e no Sul as reformas econômicas transcorrem de forma mais que decepcionante. A grosso modo, a pobreza foi drasticamente multiplicada, não reduzida. Não bastando isso, também a crise do Ocidente continua avançando. O que parece estar à porta é menos a recuperação no Oriente do que, antes, a queda no Ocidente. O rei - o sistema de mercado - está nu. Ao invés, porém, de se reconhecer abertamente esse lamentável fato, fica-se cosendo, obsessivamente, em torno de uma mitologia de sucessos, enquanto a economia mundial de mercado, que ficou sem concorrência alguma, vai gerando uma catástrofe após a outra.
Contradições inerentes à sociedade de mercado
A crise que amadurece não é mais qualquer daquelas crises cíclicas, como são conhecidas desde o processo de ascensão e preponderância dos modernos sistemas de mercado, mas uma crise estrutural que vai mais fundo, na qual as contradições intrínsecas à economia de mercado surgem à tona. Esse dilema estrutural, insolúvel em termos de mercado, pode ser descrito em dois níveis. Por um lado, mostra-se uma contradição interna entre racionalização empresarial e poder aquisitivo da sociedade, contradição que é constitutiva para mercados de colocação de produtos. O princípio da concorrência substitui sucessiva mão-de-obra por agregados materiais de origem científica: uma intensificação de capital, a crescer secularmente (isto é, capital cada vez maior em termos de equipamentos para cada lugar de trabalho ou cada mão-de-obra), confronta-se e defronta-se com uma decrescente intensidade de trabalho.
Por outro lado, no entanto, o princípio do salário do trabalho torna não só a capacidade de vida do ser humano, como também a capacidade das empresas em colocarem produtos, dependentes do fato de uma massa suficiente de força de trabalho poder ser vendida e utilizada de modo rentável no nível mais alto de cada padrão.
Esta contradição interna do sistema, há muito já conhecida, foi, no passado, sempre compensada pelo fato de o modo de produção da economia de mercado expandir-se mais rapidamente do que a racionalização empresarial. Em última instância, a contradição interna aflorava brevemente nas crises cíclicas. Desde os anos 80, contudo, essa constelação modificou-se radicalmente. A revolução microeletrônica, com as suas recentes técnicas de robotização e comunicação, possibilitou enorme quantidade de novas concepções de racionalização, tendo sido o miolo da ocupação de mão-de-obra, nos países desenvolvidos, derretido como neve ao sol. Tal processo está longe de ter acabado; sob a rubrica de produção sem adiposidades (concentração do investimento de custos no cerne lucrativo), ele entra atualmente em uma nova fase. Essa concepção comandada pelo computador procura diminuir, com a intensificação crescente do capital, o dispêndio empresarial absoluto de capital, por um lado, mediante diminuição drástica da profundidade no acabamento (repasse de parcela dos processos empresariais a fornecedores e prestadores de serviços, aos quais é repassada também a pressão dos custos e, por outro, emagrecimento das estruturas organizacionais remanescentes, até mesmo na administração, mediante uma liberação de força de trabalho. O núcleo remanescente de empregados precisa, então, aparecer sob alta densidade de trabalho, como seleção olímpica.
No início dos anos 90, os 24 países da OECD contavam com cerca de 30 milhões de desempregados. O desemprego estrutural de base (já independente de ciclos) andou se equilibrando, na Grã-Bretanha e na França, em torno de 3 milhões cada; na Alemanha, em cerca de 2 milhões. Na indústria alemã ocidental, estão previstas mais de 3 milhões de demissões até 1995; no setor de construção de máquinas, por exemplo, o decréscimo de pessoal está avaliado em 200 mil, na industria elétrica em 150 mil, na área da química e da mineração em cerca de 100 mil cada, e, no setor-chave da industria automobilística, em 300 mil postos. Ao mesmo tempo, está-se diante de uma onda de racionalização burocrática. Mesmo os setores até agora menos intensivos em termos de capital passam a ser enxugados através de reestrurações; a política de empréstimos abrange bancos e seguradoras tanto quanto empresas estatais altamente deficitárias, como o transporte ferroviário e os correios. Essa massa monstruosa de força de trabalho posta fora de ação já não pode mais ser - de um modo diferente das etapas anteriores de racionalização - reintegrada economicamente no mercado, pois a ampliação do modo de produção ultrapassou o seu limite de saturação. A incorporação dos setores tradicionais da produção agrícola, manufatura, gêneros alimentícios, pequeno comércio etc., na política de racionalização empresarial, foi concluída nos dois primeiros decênios após a Segunda Guerra Mundial e não mais dispõe de potenciais de reserva (Lutz, 1984). Novos ramos da produção, porém, já passam a integrar-se na intensificação do capital e da racionalização.
Além disso, a contradição inerente à economia de mercado mostra-se na relação de, por um lado, processos de mercado entre pessoas privadas e, por outro, ampliações da infra-estrutura global da sociedade. Mediada pela concorrência, a cientificização da produção levou, por trás das costas da racionalidade empresarial, ao não intencionado efeito colateral de que o contexto das condições infra-estruturais da produção empresarial se expandiu mais rapidamente do que a própria produção. Somente nos anos 40 do século passado é que circulou na Alemanha, entre Nürnberg e Fürth, o primeiro trem; somente na metade do século foi inventada a telecomunicação; apenas por volta da virada do século foi construída a maior parte da canalização nos novos aglomerados urbanos. Uma evolução semelhante ocorreu nas instituições educacionais e científicas, nos setores da saúde, da assistência social, da segurança social etc.
Enquanto a produção empresarial está condicionada ao êxito dos processos de mercado entre pessoas privadas segundo a lei da oferta e da procura, os agregados infra-estruturais, porém, não podem ser levados avante segundo essa lei, ou então só com grande dificuldade, já que, por sua essência, eles são imediatamente de natureza social global e, a rigor, não constituem produção de mercadorias de produtores privados. E praticamente impossível querer organizar de modo cíclico, de acordo com o parâmetro da demanda de valores monetários, a canalização de água e esgoto, o sistema ferroviário, a rede de comunicação, o sistema de saúde ou as escolas e universidades. Por outro lado, a capacidade concorrencial de um país depende cada vez mais da eficiência funcional e do nível desses agregados. Se o contexto das condições infra-estruturais começa a superar a finalidade empresarial a rigor pressuposta, tanto materialmente quanto também no valor, surge um problema que não é mais solucionável em termos de economia de mercado. Nessa contradição é que também andou se arrebentando a demasiado ingênua ideologia anglo-saxônica da privatização dos setores públicos, cuja concretização nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, durante a década de 80, conseguiu arruinar grandemente a infra-estrutura e enfraquecer de modo decisivo a posição desses países no mercado mundial.
As duas e interligadas contradições intrínsecas à economia de mercado expressam-se na cada vez maior intensificação de capital nas economias nacionais. A seus fatores pertencem não só os agregados materiais das empresas (parques de máquinas etc.), mas também os investimentos em infra-estrutura material e em capital humano. Este último fator abrange, por exemplo, não só os custos para educação, hospitais, aparelhos sociais etc., mas também os custos de manutenção de cada vez mais gente, que, por uma parcela cada vez maior parte de suas vidas, fica excluída da meta de valorizar-se o capital produtivo. Já que todos esses fatores não se devem à filantropia, mas ao padrão da concorrência mundial, eles também não podem ser impunemente reduzidos (ou mantidos em estado de subdesenvolvimento). Isso quer dizer que os custos prévios em capital financeiro para uma produção rentável crescem incessantemente, tanto na empresa individual quanto na totalidade social: cada vez mais empresas, bem como regiões e países inteiros, não mais saberão como respirar: há de ser gerado um desemprego em massa cada vez maior. A espiral da crise da autocontradição estrutural põe-se a girar.
Os Estados e o sistema financeiro comercial procuram empurrar com a barriga, a crise estrutural da economia de mercado, ao criarem um capital financeiro fictício, que não tem mais base em processos de geração de valor no capital produtivo. Isso é feito através dos mecanismos de crédito e através da especulação. O Estado suga dinheiro de poupanças através de empréstimos voluntários e compulsórios, que em parte não honra mais, ou deixa evaporar (zerando a dívida mediante perdas na moeda) ou financia-se diretamente através da impressora de notas de dinheiro. Os bancos financeiros jogam liquidez na sociedade, à medida que abrem as comportas da criação de dinheiro no sistema bancário (queda da taxa de juros para empréstimos, desregulamentação dos mecanismos de controle, como, por exemplo, reservas cambiais mínimas etc.). Daí as empresas, bem como as pessoas físicas, já não investem de modo rentável os lucros disponíveis na especulação em ações ou imóveis: assim que esta se encontra outra vez aquecida, conduz a monstruosas valorizações fictícias e transforma-se em incontrolável máquina de gerar dinheiro. Todos esses mecanismos, na década de 80, foram forçados pelo mundo inteiro em escalas diferentes, tendo encenado um boom aparente e improdutivo. A outra face do desemprego estrutural em massa, ou seja, o encolhimento dos mercados de colocação de produtos, fica escamoteado através de um poder de compra improdutivo, criado artificialmente. Sobre isso é que repousava não só o boom do luxo dos anos 80, e com ele toda a conecta e leviana ideologia yuppie, mas também o crescimento generalizado do consumo governamental, a aparente capacidade de investimento de muitos empresários e uma grande parte dos rendimentos. Segundo estimativas, somente na Alemanha Federal devem existir, além do desemprego subvencionado, mais de 5 milhões de empregos irregulares (mantidos indiretamente e, a rigor, já não mais rentáveis), que dependem de subvenções da produção (por exemplo, da Comunidade Européia) ou não mais correspondem ao último padrão de racionalização.
A crise da reacumulação, jogada mais adiante e, a rigor, ameaçando desde o final da década de 70, mostra-se já nos sistemas financeiros nacionais e internacionais (2). O improdutivo processo de criação de dinheiro leva a desvalorização da moeda em parte até à hiperinflação periódica. A explosão da bolha da especulação, que em sua fase tardia ainda se alimenta apenas de crédito, conduz a ondas de bancarrotas e a enormes amortizações. Não só nos dois crashes na bolsa, de 1987 e de 1989, os bancos de títulos tiveram de inventar desesperadamente liquidez, gastando toda a sua pólvora. As crises da dívida, interna e externa, dos Estados estão amadurecendo. Desde meados dos anos 80, ouvem-se os seus estalos nos sistemas bancários nacionais e internacionais na Escandinávia, no sul da Europa e na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Japão, na América-Latina e no Oriente Próximo. Torna-se necessária uma ação emergencial e de sustentação após a outra. A crise financeira do pseudo-crescimento à base de endividamento rebate, desde 1991, diretamente na conjuntura mundial e, com isso, na ocupação mundial de mão-de-obra. O movimento cíclico repercute negativamente, e muitas vezes reforçado por ressonância: limitação estruturai do sistema de mercado, retração periódica e crise financeira da endividada liquidez aparente conjuminam-se na direção de uma crise global. Uma maré mundial de retrações de encomendas, estornos, drásticas perdas de lucros e paralisações de atividades ameaça agudizar-se no sentido de uma depressão generalizada, em que a olho nenhum hão de ser poupadas as lágrimas.
História do mercado mundial e intermediação no mercado mundial
O problema fundamental da crise é, por certo, moderado através da intermediação no mercado mundial. Justamente nesse nível é que o neoliberal platonismo de modelos passa mais vergonha. Todas as sociedades hodiernas, sem exceção, são compatíveis com o mercado mundial, e isso significa que cada vez menos a sua graça e a sua desgraça são determinadas somente por mecanismos internos de regulamentação de ordem política. A crescente influência do mercado mundial sobre a produção social interna pode ser, a grosso modo, exposta em três fases:
1ª fase: da época dos descobrimentos e da primeira colonização até a metade do século XIX, destacaram-se inicialmente, tendo a Inglaterra como ponta de lança, algumas poucas economias nacionais do Ocidente. Nelas, o modo de produção para o mercado não havia, nem de longe, conseguido impor-se plenamente, de maneira que as crises ainda não podiam repercutir no modo de reprodução da sociedade toda, que continuava grandemente determinado pelo caráter agrário e de subsistência. Proporcionalmente estreita era a rede mundial de mercados, ainda muito marcada pelo caráter colonial.
2ª fase: da era dos pais da pátria até o final da Segunda Guerra Mundial, ou até o final dos anos 60, surgiu uma série de novas economias nacionais. Aos poucos, inclusive, o mundo foi significativamente descolonizado, e o modo de produção da economia de mercado expandiu-se para a totalidade da produção interna das sociedades. As crises atingiram, por isso, massas populacionais muito maiores que antes, como o demonstrou sobretudo a depressão mundial de 1929-33. Adensa-se a interligação mundial dos mercados. O mercado internacional continuou sendo, porém, um espaço funcional secundário, enquanto o peso principal das relações econômicas concentrava-se nos mercados nacionais internos.
3ª fase: da pax americana do pós-guerra até o final do século XX, o modo de produção para o mercado passou a romper o âmbito das economias nacionais, para gerar toda uma rede internacional dos mercados. Esse processo ainda está em andamento e transcorre diante dos nossos olhos. Os mercados internos a olhos vistos perdem o seu caráter relativamente fechado, o mercado mundial ou grandes mercados regionais de caráter mundial tornam-se o espaço funcional imediato de um número cada vez maior de sujeitos econômicos. Mesmo as maiores economias internas estão cada vez mais sujeitas a tal modificação: até na economia dos Estados Unidos, tradicionalmente orientada para dentro de si própria, duplicou, só entre 1965 e 1980, a participação do comércio exterior no produto interno bruto. Com isso, porém, a crise também ameaça transformar-se em crise global e geral, em que já não poderá mais ser superada a limitação estrutural da contradição intrínseca à economia de mercado.
Do ponto de vista do mercado, portanto, não se trata apenas de um princípio estrutural ou de ordenamento, mas simultaneamente de um processo de globalização. A escala crescente na formação da rede mundial da economia de mercado foi tornada possível desde o surgimento das linhas regulares dos grandes vapores e a criação das ligações telegráficas, através do progresso na técnica de transportes e comunicação. Na primeira fase, expandiu-se apenas o comércio mundial. Na segunda, acresceu-se a exportação extensiva de capital, isto é, setores inteiros de produção foram instalados em outros países como capital, forçando a expansão do modo de produção para o mercado. Na terceira fase, a exportação intensiva de capital, ou seja, a divisão internacional de processos de produção, arrebentou definitivamente a cápsula das economias internas. A isso corresponde, desde os anos 70, a formação de mercados financeiros internacionalizados (mercados monetários europeus), que acabaram ficando fora do controle dos sistemas nacionais.
Na história do mercado internacional, trata-se, portanto, de etapas de desenvolvimento na geração do capital mundial imediato. Isso significa, porém, que se vai superando a coexistência, até agora vigente, de diversas fases de evolução não-sincrônicas e, com isso, a existência simultânea de diferentes níveis de produtividade e rentabilidade. Constitui-se um padrão internacional, que passa a ser concretizado nos mercados financeiros globalizados através de terms of trade (relação de preços de importação e exportação) e das taxas de juros. Isso significa o fim para os retardatários históricos, porque eles já não podem mais financiar a maior parte dos custos de capital no padrão exigido pela intensificação de capital nos planos empresarial e infra-estrutural. Por isso, eles são os primeiros a serem jogados na crise pela contradição estrutural inerente ao modo de produção para o mercado. Os êxitos temporários da industrialização recuperativa, que somente foram possíveis em espaços econômicos internos relativamente compartimentados, acabam, no Contexto da globalização, sendo tornados em grande parte novamente retroativos, sendo os antigos países em desenvolvimento os primeiros a perderem o acesso ao sistema de crédito internacional.
A teoria tem se recusado até agora a refletir adequadamente essa correlação. Já que o discurso neoliberal não reconhece um entrave crítico no sistema de mercado, nem leva suficientemente em conta as mediações concretas no processo de mercado mundial (e suas conseqüências negativas), ele naturalmente não pode também levar a sério a questão do perdedor. O problema do perdedor aparece como sendo apenas relativo, isto é, no sentido de Schumpeter (1912, 1950, 1951), como destruição produtiva de setores que se tornaram sem rentabilidade e que podem ser, em todo caso, substituídos por novos procedimentos, produções e empresas, de maneira que, diz-se, a economia como um todo acaba sendo inclusive até estimulada em sua prosperidade.
Se, no entanto, o capital mundial, assim que ele se constituiu, choca-se com a barreira estrutural da contradição interna da economia de mercado (e isso através das mesmas forças produtivas que o criaram), surge então uma nova reciprocidade entre ganhadores e perdedores. O estatuto de perdedor assume agora um caráter absoluto. Já que na escala global os efeitos da racionalização empresarial vão além da ampliação do modo de produção para o mercado, um estatuto de ganhador somente é ainda possível pelo fato de, em algum outro lugar, alguém ser absolutamente aniquilado. A relação entre ganhadores e perdedores, portanto, não intermedia mais a reestratificação de capital em procedimentos mais produtivos e setores mais modernos, mas torna efetiva a barreira estrutural de crise de todo o capital global mediante a absoluta eliminação de capital, o que conduz à falência de países e continentes inteiros. Trata-se de um efeito-dominó, que começa nos retardatários históricos mais fracos em termos de capital e termina nas economias ocidentais mais fortes em termos de capital, de maneira que a crise acaba sendo, por fim, sincronizada mundialmente apenas após uma fase mais longa de incubação e evolução.
Teoria do desenvolvimento e teoria da crise
A fraqueza do neoliberalismo parece acabar sendo também a dos seus adversários da esquerda keynesiana e da socialista. Em última instância, isso não reside no fato de teoria do desenvolvimento e teoria da crise das esquerdas terem cristalizado em grande parte discursos separados (3). Enquanto as teorias da crise referem-se sobretudo aos conjuntos funcionais abstratos do capital em geral, continuando a posição axiológica fundamental da intermediação no mercado mundial a ser, apesar das análises empíricas de detalhes, um black box teórico, não se deve, portanto, referir mais a uma limitação histórica absoluta da contradição intrínseca à economia de mercado (4). Enquanto ela nem sequer deve ser mais apontada, as teorias do desenvolvimento buscam um modelo correto para a modernização e a industrialização das economias nacionais. Essas teorias, sobretudo os diferentes ramos das teorias da dependência nos anos 60 e 70, foram elas próprias formuladas no horizonte da problemática da recuperação do atraso histórico e, nessa medida, dentro do horizonte da ascensão histórica do modo de produção da economia de mercado. Elas limitam-se geralmente a deduzir o subdesenvolvimento a partir de, em última instância, determinadas relações de dependência de natureza política e neocolonial (preços injustos, monopolismo, pressões militares, instalação de regimes dóceis etc.). Mesmo análises puramente econômicas têm sido, sobretudo, assim, fundamentadas menos no plano teórico sistemático do que, muito mais, no plano teórico subjetivo e da dominação (em termos de política nacional ou sociologia de classe).
Essa politização comporta-se - numa ironia involuntária - como um espelho do platonismo de modelos conforme a ordem política do discurso neoliberal hodierno, talvez não tendo sido, por isso, tão difícil para muito teórico a passagem para a outra margem ideológica. Desde as bancarrotas do socialismo de Estado e da antiga estratégia de uma política de substituição de importações flanqueada pela economia estatal (sobretudo a Escola da CEPAL na América Latina), até mesmo antigos teóricos do desenvolvimento, que eram críticos do capitalismo, acabaram se abrindo para o neoliberalismo: na verdade, menos com relação ao papel do Estado, e mais no sentido de uma maciça integração no mercado mundial e de um voltar-se para a exportação, tomando por modelo, através de analogismos históricos, a história do desenvolvimento europeu do século XIX, num conformismo com a economia de mercado, sem se voltarem de modo adequado, enquanto sistema de referência, para o processo de globalização, ora já irreversivelmente desenvolvido (5).
Isso fizeram, pelo contrário - ao menos em parte e da boca para fora -, algumas das teorias críticas da dependência, com o conceito central de sistema mundial (6). Mesmo assim, também esses prolegômenos ficaram na tematização de uma troca desigual, assimétrica entre centros e periferia para derivar daí uma transferência de valores, supostamente irregular ou ilegítima, do Terceiro Mundo para as metrópoles. Também essas primeiras tentativas de uma teoria de um sistema mundial (não por acaso antes historicamente orientadas), por conseguinte, ainda são formuladas a partir de uma perspectiva de um desenvolvimento a ser recuperado, sem conseguirem integrar a questão de um limite crítico do sistema como um todo: elas permanecem fixadas univocamente na contradição entre desenvolvimento e subdesenvolvimento (Norte e Sul), dentro do horizonte de uma socialização pelo mercado, de maneira que as contradições intrínsecas ao sistema de mercado em sua base produtiva aparecem somente na forma superficial de um modelo global de circulação. A questão dos recentes países em desenvolvimento, um penhor do discurso neoliberal, só vem sendo assumida com dificuldade, através do superficial conceito de países semiperiféricos (com o qual seus adversários também se banquetearam a valer), pelas teorias críticas de um sistema mundial até agora existentes.
Em tudo isso, em primeira linha, não se trata por certo de fraquezas teóricas subjetivas, mas sobretudo de, como que debaixo dos olhos do observador científico, ter-se alterado o sistema global de referência. O denominador-comum entre neoliberais e teóricos da dependência, de referirem-se igualmente à segunda fase da concluinte redeficação mundial em termos de economia de mercado, enquanto a terceira fase do capital mundial imediato somente veio plenamente à luz na década de 80, determinando hoje o processo, preparando-se, entrementes, para provocar uma nova qualidade de crise, no processo sistemático de globalização. Torna-se necessário, portanto, um novo modo de abordagem, que pense simultaneamente, num metanível, a teoria do desenvolvimento e a teoria da crise. Aí, o conceito de sistema mundial precisa ser repensado de modo mais profundo, não mais apenas enquanto modelo de circulação na economia de mercado - como era adequado à fase das economias nacionais ligadas principalmente por comércio e exportação simples de capital -, mas enquanto modelo de crise do capital produtivo transnacional, em que as contradições imanentes a esse modo de produção e sua temporária suspensão através da criação não-produtiva de dinheiro reaparecem agora em nível mais global.
As perfídias do salário barato e da orientação para a exportação
No séquito dos pioneiros do pensamento neoliberal, de um modo quase unânime, é então recomendado, para as até agora economias de crise e bancarrota, uma urgente abertura para o mercado mundial: elas deveriam procurar nichos globais para si, a fim de, mediante especialização seletiva, encaminharem um desenvolvimento induzido pela exportação e, daí, um milagre econômico. Explícita ou implicitamente, está por trás disso o conceito de salário barato, com o qual devem ser estimuladas as ofensivas de exportação dos países em desenvolvimento ou em crise, cuja fraqueza de capital procura-se fazer de conta que não existe. Ora, o salário barato, ou melhor, o salário de fome, não é naturalmente nada de novo. Já a industrialização européia deu sua partida com o motor da acumulação, uma concepção que hoje é envergonhadamente favorizada, ou ao menos embelezada, até por ex-esquerdistas teóricos do desenvolvimentismo. Mas essa história não se deixa repetir, já que a intensidade do capital de produção rentável e a racionalização empresarial têm se desenvolvido continuamente desde então, ampliadas e intensificadas até o padrão mundial contemporâneo. O salário barato torna-se necessariamente um modelo em extinção. Nisso, em última instância, é que andaram fracassando também as tentativas até hoje feitas de recuperar o desenvolvimento perdido no século XX, o socialismo de Estado e os regimes de modernização no Sul, que só conseguem suster-se por algum tempo mediante salários baixos e jornadas longas de trabalho. Subjacente a isso estavam doutrinas do isolamento com relação ao mercado internacional, substituição de importações e políticas de desenvolvimento autocêntricas. Mas por que deve, afinal, o mesmo fato do salário barato, ligado agora à doutrina de orientação para a exportação, levar a melhores resultados se a concorrência global, ao mesmo tempo, leva adiante a racionalização de intensificar o capital?
A prova disso forneceram supostamente o Japão e os tigres asiáticos, que vêm sendo elogiados até não mais poder como novos modelos de sucesso. Na boca dos neoliberais, esse elogio soa bastante estranho, pois tanto o Japão como também os outros newcomers do leste asiático trabalharam desde o começo com fortes elementos de dirigismo estatal, com planejamento, subvenções etc., e continuam assim procedendo até hoje. Inclusive a própria story do sucesso precisa ser posta em duvida. Por razões históricas, o mito do Japão não cabe como comparação, pois a industrialização japonesa começou quase ao mesmo tempo que a alemã, em pleno século XIX, o que ainda possibilitou buscar uma recuperação. Depois da Revolução de 1867, já na seguinte Era Meiji passou a ocorrer uma rápida modernização e industrialização. Sem base industrial, o Japão não teria podido vencer a guerra contra a Rússia em 1905 nem atacar os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Portanto, o Japão dificilmente pode servir como mensuração para um desenvolvimento recuperativo exitoso sob as condições bem diversas do final do século XX.
Apesar desse ponto de partida historicamente muito melhor, até mesmo o Japão precisa ainda hoje produzir com elementos de salário vil. Nessa medida, o êxito japonês repousa sobre pés de barro. Segundo um estudo da Câmara Alemã de Indústria e Comércio (DHIT), de janeiro de 1993, a produtividade técnica no Japão está em parte até hoje, na média dos setores e das empresas, significativamente abaixo da alemã. As vantagens japonesas em termos de custo repousam, por um lado, nas jornadas de trabalho extremamente longas; por outro lado, o grau de automação altamente intensivo em termos de capital na fase final da montagem dentro das grandes empresas japonesas leva a não perceber, contudo, que estas sugam os seus fornecedores até a última gota, uma tendência que, entrementes, pode ser observada também na Europa, onde ela está longe, porém, de alcançar as circunstâncias japonesas. O sistema Shitauke de empresas fornecedoras dependentes, que é característico para a indústria de exportação japonesa, não só funciona à base do paternalismo, como também é muito mais profundamente escalonado que na Alemanha ou nos Estados Unidos: nos níveis de ordenação em forma de pirâmide, milhões de trabalhadores, mal pagos e quase sem direitos, produzem partes de automóveis e de aparelhos eletrônicos sob condições não raramente pré-diluvianas. Assim, também a dependência exportadora da economia japonesa é expressa de modo insuficiente pela quota de exportação nominal. Como a geração de valor no produto final é medida segundo critérios do mercado mundial, capta-se de maneira incompleta o processo japonês interno de formação de valor, que contém grandes massas de trabalho subprodutivo, especialmente nos subsistemas de fornecedores voltados para a exportação. Trabalham, portanto, muito mais pessoas para a exportação do que a quota de exportação permite supor. Essa correlação pode ser também medida pelo fato de o nível interno de preços e o nível externo divergirem entre si: os produtos japoneses são bem mais baratos no mercado internacional do que no próprio mercado interno.
Ao mesmo tempo, isso significa que o Japão concorre, ao menos em parte, com elementos que fazem lembrar, de modo suspeito, as condições existentes nas atuais economias em bancarrota, embora repouse numa organização especialmente refinada na combinação com elementos de high-tech. Enquanto a depravação social no Ocidente decorre do desemprego estrutural, no Japão ela ainda é um componente estrutural arcaico da própria organização do trabalho. A concepção japonesa primeva de produção enxuta funciona, por trás da fachada da alta automatização, principalmente por meio do dumping social na fase de pré-acabamento. Os imitadores ocidentais parecem não notar que seguem aí um modelo em extinção, que sob essa forma não é mais socialmente concretizável na Europa. A reação ocidental somente pode ser, a longo prazo, uma concentração de capital e uma racionalização à base de intensificação de capital nas indústrias fornecedoras, o que não somente há de continuar elevando o desemprego estrutural na Europa e na América do Norte, como também ameaça aniquilar a vantagem japonesa nos custos a partir de sua combinação de high-tech à base de intensa ciência mais capital na fase final de montagem. Exatamente nessa perspectiva é que o Japão se debate hoje com os limites do seu modelo.
A conseqüência não foi nem é a superação da estrutura do salário barato, o que significaria renunciar à vantagem nos custos, mas a sua transferência para um território estrangeiro vizinho. Ao menos em parte, o ponto de partida para a industrialização na Coréia do Sul proveio desse problema de exportação dos japoneses, que ainda hoje são os principais fornecedores de bens de investimento e componentes para a aquele país, ocupando parte da indústria nos tigres asiáticos através do achatamento salarial. A Coréia do Sul, portanto, precisa depender, bem mais que o Japão, da vantagem nos custos decorrente do salário barato.
Através da pressão da concorrência no mercado mundial, inclusive para a Coréia do Sul, coloca-se, porém, cada vez mais o caráter precário dessa vantagem nos custos, uma vez que movimentos sindicais e reivindicações sociais passam também a exercer pressão desde dentro. O resultado, no entanto, não é um desenvolvimento direto na direção do estado social fordístico, como na Europa. É verdade que o nível salarial avançou com a maior taxa de crescimento de toda a Ásia: só entre 1986 e 1989, a remuneração média por hora de trabalho cresceu em 28%. Justamente por isso, no entanto, a indústria sul-coreana precisa, por um lado, introduzir ela mesma processos de automatização com capital intensivo, mas, por outro, desviar-se para países vizinhos de salário baixo, como Vietnã, Tailândia e República Popular da China. A ocupação industrial em massa na Coréia do Sul, portanto, não foi de maneira alguma exitosa: o país ainda se dicotomiza em segmentos empregados pela indústria exportadora e em populações pobres. Apesar de alguns empreendimentos, também a infra-estrutura continua insuficiente (assim, por exemplo, apenas 28% das residências estão ligadas à canalização).
Todo esse discurso em torno de uma já exitosa luta pela recuperação do atraso histórico em forma dos assim chamados NIEs ou NICs (New Industrialized Economies/Countries), cujo modelo querem que seja a Coréia do Sul, tem de ser considerada apressada e superficial. Apesar das altas taxas de crescimento, o produto social bruto sul-coreano per capita, no início da década de 90, não está mais elevado que o de Portugal, mas encontra-se abaixo inclusive do da Grécia (dois países periféricos tradicionalmente de estrutura fraca e ainda fortemente marcados pelo setor agrário): alcança apenas cerca da metade do PIB iraquiano, espanhol ou israelita, raspa um quarto do norte-americano ou alemão e somente um quinto do japonês (sendo este último certamente manipulado através da estrutura de preços) (Banco Mundial, 1992). Já que grande parte do PIB decorre de uma industrialização exportadora feita à base de salário baixo, ele não pode sequer valer como indicador para o poder interno de compra em massa, que, apesar das elevações salariais, ainda se encontra muito baixo. Assim, uma reorientação para uma demanda interna fortalecida" somente seria possível com grandes dificuldades na Coréia do Sul, estando a economia sul-coreana ainda em fase de desenvolvimento induzido pela exportação e, por exemplo, as grandes elevações de salário nos últimos anos não trazerem aquele impulso na demanda interna que possa compensar perdas na exportação" (Pohl, 1991). Essas observações não são, de maneira alguma, maldosas, unfair, pois, sob o ditado da globalização, a escala de mensuração não pode mais ser um pretérito estágio de desenvolvimento da Europa, mas tão somente o contemporâneo, do capital mundial, que está se constituindo de um modo imediato.
Tudo isso vale em ainda maior proporção para os grandes Estados do ASEAN (Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas) e para a República Popular da China. Nas famosas zonas de economia especial da província costeira no sul chinês, Guandong (Chenzhen, entre outras), não parece haver maciça capacidade aquisitiva, quando as forças de trabalho de lá são descritas por neoliberais ocidentais com esperançoso júbilo: "Trabalham nove horas por dia, seis dias por semana e têm duas semanas de férias por ano. Passam a noite em dormitórios, oito em cada quarto, dois beliches na parede esquerda e outros dois na direita, com um baú para os objetos pessoais, e o rolo individual de papel higiênico ao lado do travesseiro. Eles fazem caixas e pulseiras de relógio para um fabricante de relógios de Hong-Kong, por um fração dos custos na colônia da Coroa" (Afheldt, 1993).
O século pacífico não acontece
O reduzido poder de compra interno dos NIEs, que, ao mesmo tempo, representa a principal base do êxito em sua exportação, exclui a longo prazo uma capacidade maior de importação. À primeira vista, essa constatação pode ser contradita pelo fato de a Coréia do Sul e a maioria dos países do sudoeste asiático recaírem sempre em balanços comerciais deficitários. Tais deficits, no entanto, resultam primeiro exclusivamente do intercâmbio com o Japão; segundo, comportam quase tão-somente a importação de bens estratégicos de investimento e de componentes para a respectiva indústria de exportação, porém pouco do largo espectro de bens de consumo duráveis (automóveis, aparelhos domésticos e de diversão), bens de consumo imediato etc. Os valores exportados, portanto, em grande parte são constituídos por máquinas importadas e produtos semi-acabados (extremada é essa relação, por exemplo, na Indonésia, onde, em 1990, três quartos dos valores exportados resultavam de valores importados). Assim, também a Ásia oriental não há de se transformar no esperado novo mercado de colocação de bens de consumo em massa para o Ocidente, a América Latina ou a Europa oriental. Pelo contrário, a orientação estruturalmente unilateral no sentido da exportação conduz a uma concorrência repressiva nos mercados internacionais. Portanto, a maré de exportações do oriente asiático para a Europa ocidental quase arruinou a indústria de mineração e a construção de navios, a indústria têxtil e a de calçados. Também os produtores europeus orientais foram arrasados pela concorrência em muitos setores, até mesmo na indústria-chave da construção de máquinas. Em última instância, não resulta disso a bancarrota do socialismo de Estado. A República Democrática Alemã, na década de 80, perdeu para os concorrentes asiáticos a sua tradicionalmente elevada participação em máquinas ferramenteiras, um fator essencial para o colapso do seu comércio exterior. Tanto mais difícil se torna descobrir onde os reformistas da Europa oriental vão buscar o seu otimismo em termos de economia de mercado: a quem querem eles, afinal, arrasar através da concorrência, e com que meios?
O crescimento unilateral da exportação dos newcomers asiáticos orientais, no entanto, repousa sobre pernas minguadas demais. A força somente é ostentada na aparência que, todavia, se deixa, afinal, desmascarar como fraqueza. Uma força saudável no sentido capitalista só pode ser alcançada, a longo prazo, mediante crescimento, no qual forças internas e externas se equilibram. Capacidade exportativa deve poder aparecer como capacidade importativa, portanto, devendo repousar numa relação comparativa recíproca. O baixo salário no contexto de uma estrutura exportativa unilateral não é vantagem comparativa alguma, mas um abuso com relação à respectiva teoria. A longo prazo, tal vantagem a curto prazo acaba conduzindo à eclosão de crises estruturais. Isso não é percebido pela maioria dos analistas, que, com arrogância positivista, apenas levam em conta em seus cálculos taxas de crescimento nominais das economias nacionais, sem se preocuparem muito com a conexão estrutural no sistema internacional. Encarada deste ângulo, a muito citada prognose de um século de paz aparece apenas como uma super bolha de sabão, pois a base do milagre asiático oriental revela-se, pelas razões citadas, insustentável em três níveis.
Primeiro, ela é estruturalmente dependente da vantagem nos custos decorrente do salário baixo, o que não consegue, no entanto, ser socialmente mantido nem consegue concorrer, mesmo a médio prazo, com a cientificização intensificadora de capital. O rápido movimento em dominó, do Japão para a Coréia do Sul e para os outros tigres asiáticos, daí para os grandes Estados do ASEAN e para o continente chinês, aponta já para a crise e o término desse modelo. Uma sistematização fordística, de estruturas sociais diferenciadas de reprodução, capaz de perdurar a longo prazo, não se consegue, porém, concretizar desse modo (7). Abandonar a estrutura do salário baixo, porém, seria fazer arrebentar a bolha de sabão.
Segundo, a orientação exportadora dependente de salário baixo move-se dentro de um círculo deficitário intra-asiático: todos os newcomers acumulam déficits com relação ao Japão, tanto nos balanços comerciais quanto nos balanços de capital, que não decorrem, no entanto, de importações para consumo em massa, mas da importação de bens de capital. Isso significa que, ao mesmo tempo, os setores centrais da indústria japonesa, na área automobilística, eletrônica e ótica, não podem desviar-se em larga escala para os mercados asiáticos, erigindo neles um império mercantil auto-sustentável. O boom do leste asiático, em última instância, não é senão o precário prolongamento da unilateral (e, por isso, altamente vulnerável) ânsia exportatória japonesa.
Terceiro, o aparente milagre da Ásia oriental como um todo (isto é, com a inclusão do Japão) mostra ser - para o bem e para o mal - dependente de fluxos unilaterais de exportação para os Estados Unidos e a Europa ocidental. Já que essa relação não repousa em uma parceria equitativa, ela não pode ser mantida através de capacidade aquisitiva norte-americana e européia regular, mas tão-somente através de um metacircuito deficitário global (sobretudo pelo Pacífico), cuja potência direta e indireta provém dos excessos de endividamento e das bolhas de especulação. O orçamento mundial da Sony, por exemplo, provém só em 28% do mercado pátrio japonês, enquanto 29% dele é oriundo dos Estados Unidos, 28% da Europa e 15% de outras exportações. A quebra estrutural, já às vésperas do pretenso século pacífico, pode ser lida sobretudo na estrutura do comércio externo dos Estados Unidos. Em 1987, a exportação dos Estados Unidos para a Europa e para a Ásia oriental era mais ou menos a mesma, cada uma com quase 30%; a isso correspondiam bastante as importações da Europa (até com um leve superávit para os Estados Unidos), enquanto as importações norte-americanas da Ásia oriental ascendiam a mais de 40% (e, entrementes, a quase a metade). A distribuição das exportações dos Estados Unidos para a Europa e para a Ásia oriental tem se mantido constante desde 1975, tendo inclusive caído levemente com relação ao oriente asiático, enquanto a participação das importações norte-americanas da Ásia oriental explodiu ascensionalmente, entre 1975 e 1987, de 29% para mais de 40% (8). Mais de dois terços do déficit comercial norte-americano, acumulado em dimensões jamais antes vistas, provém somente do comércio com o Japão e com os quatro pequenos tigres asiáticos. A contradição interna do sistema de mercado, portanto, não é desmentida pelo notável êxito da Ásia oriental, mas apenas repassado adiante através de diversas e complicadas intermediações. No fim, porém, essa contradição intrínseca deve reaparecer no metanível das mediações globais, soprando a vela vital dos êxitos aparentes.
Nenhum plano para grandes territórios e maiorias
A crise do modelo neoliberal desregulado pela orientação para as exportações não é mais nenhuma prognose teórica, mas já se mostra agora na prática para a maior parte do mundo. As falsas esperanças voltavam-se desde o início para os sucessos aparentes de alguns casos excepcionais, em países pequenos, com população relativamente reduzida, enquanto as grandes regiões globais dos antigos Segundo e Terceiro Mundos não eram nem são, evidentemente, reprodutíveis por meio da orientação para a exportação. Isso também é fácil de explicar. Somente países pequenos ou com população relativamente pouco expressiva podem especializar-se em nichos de exportação para o mercado mundial. Para os colossos populacionais, tal opção equivaleria, porém, à tentativa de enfiar um dinossauro na toca de um camundongo.
Na América Latina, estreito como uma toalha de mão, o Chile, que com seus 13 milhões de habitantes mal chega à população da Baviera, é considerado o grande modelo de sucesso; seguido da Argentina, aparentemente em recuperação, com seus 32 milhões de habitantes, enquanto o colosso brasileiro, que preenche a maior parte do continente e conta com uma população de 150 milhões, não consegue, ao que parece, sustentar-se sobre as próprias pernas em termos de economia de mercado. Isso não deriva somente da falta de vontade política de fazer reformas, mas também do fato de as reformas neoliberais nem sequer conseguirem alcançar estruturalmente os grandes territórios. O Brasil tem, sim, êxitos em termos de exportação, mas os problemas estruturais do país não conseguem ser resolvidos assim. A má correlação entre uma população reproduzida através da relação com o mercado mundial e aqueles que são excluídos dele fere mais à vista no caso de uma população de 150 milhões do que no de 10 a 30 milhões.
Muito semelhante é a situação na Europa do Leste. Enquanto as esperanças e os êxitos parciais, badalados a não mais poder, se limitam somente à Hungria (10 milhões de habitantes), à Tchecoslováquia, entrementes dividida em duas (15,6 milhões de habitantes, dos quais 10,3 milhões na República Tcheca), e à Polônia (38 milhões de habitantes), a grande massa territorial e populacional eurasiática (Bálcãs, Rumênia, Bulgária, Rússia e inclusive a sua parte asiática), com centenas de milhões de pessoas, mergulha no caos e na guerra civil: também aí os experimentos neoliberais acabam num vazio.
Mesmo na Ásia pode-se constatar idêntico problema. Segundo um relatório amargamente irônico do Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB), sediado em Manila, a Ásia ainda continua sendo - apesar de ter, em parte, elevadas taxas de crescimento -, com 700 milhões de pessoas abaixo do limite da pobreza, o maior asilo de mendigos do planeta, e continuará sendo assim até a virada do século. Também aí os mais importantes dos recentes modelos de êxito têm um formato liliputeano. Dos quatro famosos tigres asiáticos, Hong-Kong e Cingapura são cidades-estados, que, com 5,9 milhões de habitantes (Hong-Kong) e 2,7 milhões (Cingapura), não alcançam sequer a dimensão populacional da Baixa-Saxônia ou de Hessen; Taiwan é uma ilha com 20 milhões de habitantes; a Coréia do Sul, uma península com 42 milhões. Já o maior dos países do ASEAN distancia-se disso sem a menor esperança, apesar das elevadas taxas de crescimento: na Indonésia (180 milhões de habitantes), o produto interno bruto jaz, no início dos anos 90, muito abaixo do de Marrocos e da Namíbia
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