Nas eleições, netos vão defender ideais de Jango e Brizola
Claudio Leal
Naquele outubro de 1976, o ex-presidente João Goulart desembarcou em Londres para uma missão familiar. Vestígios numa fotografia colorida. Com olhar de exilado, ele envolve o neto recém-nascido, Christopher. Dali, Jango retornaria para a morte, na fazenda La Villa, no município argentino de Mercedes. O filho, João Vicente, havia migrado para a Inglaterra depois de ter sido ameaçado de sequestro por um grupo extremista de direita. Na foto, o exílio de uma década se projeta no garoto - o qual, 34 anos depois, reclama sua herança política.
Pré-candidato a deputado estadual pelo Rio Grande do Sul, Christopher (PDT) pretende defender o ideário reformista do governo de Jango, deposto pelo golpe militar de 1964. E no mesmo espectro partidário, os gaúchos vão assistir a outro reencontro com um personagem da história brasileira, o ex-governador Leonel Brizola (1922-2004).
Neta do líder trabalhista, a vereadora de Porto Alegre, Juliana Brizola (PDT), também disputará uma vaga na Assembleia Legislativa. Promete insistir nos projetos de educação integral, modelados pela experiência do avô com os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), no Rio de Janeiro.
Casado com Neusa, irmã de Brizola, Jango enfrentou as pressões da esquerda, dos militares, dos udenistas, dos sindicatos - e do cunhado. Rompidos por 17 anos, os dois se reconciliariam pouco antes da morte de Goulart. Amigos, Juliana e Christopher superaram o que poderia haver de divergências familiares.
- Eles tinham estilos diferentes, mas os dois têm extrema importância política. Um mais radical, meu avô mais conciliador, de centro-esquerda. Brizola era radical, pregava a reforma agrária na lei ou na marra, o que colocava meu avô numa posição um pouco delicada, num contexto de guerra fria - analisa Christopher.
De passagem por Carazinho, terra natal de Brizola, Juliana conta que, "antes do lado partidário", cultivava a camaradagem com o primo.
- Pena que terminamos os dois concorrendo para a Assembleia. A gente conversou bastante sobre isso, mas ele entendeu que seria importante se candidatar.
"Depois de meu avô, não houve mais um governo nacionalista e reformista no País". Formado em Direito pela Unisinos, Christopher Goulart deve se afastar das refregas em fóruns para se dedicar ao ativismo político. A busca por esclarecimentos sobre a morte de Jango, nos desvãos das operações Condor e Escorpião, o lançou à primeira campanha.
Em novembro de 2006, seu pai, João Vicente, entrevistou o ex-agente secreto uruguaio Mario Neira Barreiro, no presídio de segurança máxima de Charqueada, em Porto Alegre. Revolveu-se a suspeita de envenenamento do líder petebista.
- A ação vai muito além da morte de meu avô. É um instrumento para a abertura de documentos - define o advogado, que pediu o depoimento do ex-chefe do DOPS, o senador Romeu Tuma. - Devido a sua forte influência, ele não foi, nem deu resposta.
Christopher considera "uma vergonha" o tratamento histórico dispensado a João Goulart. Na vida pública, deseja recuperar "o Estado reformista" do ex-presidente. Enfrentará um choque de vultos no partido.
- Meu avô não conheceu o PDT, um partido que propaga a política trabalhista dele e de (Getúlio) Vargas. Vou propor a assimilação do legado reformista, como a reforma agrária e educacional. No PDT, não existe a cultura política de trabalhar quadros na doutrina partidária, ainda é muito focado na figura de Leonel Brizola.
Semelhanças entre Lula e Jango? Christopher aponta somente o Itamaraty, pois critica o "assistencialismo" do Bolsa Família, um programa que veio antes de o governo promover a "justiça social".
- Na década de 60, uma das diretrizes do meu avô era a política externa independente. Foi o primeiro líder latino a visitar a China. Ele tinha a ideia de que ela representava a abertura para o mercado mundial. Essas diretrizes o Lula está assumindo. Sim, tem algumas semelhanças, mesmo que distantes.
Diretor do Instituto João Goulart, Christopher rebate as avaliações negativas da personalidade do avô, criticado por não ter sabido administrar os tumultos sociais e políticos, agravados pelo comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil.
- Essa avaliação é muito limitada. Naquele comício, ele sabia que ia ser deposto e fez um discurso pra deixar uma mensagem para a posteridade. Era um líder de vanguarda. Sinto que a história vem sendo reajustada. Percebo que essas críticas são claramente limitadas, formuladas no calor da hora. Meu avô foi aconselhado por Darcy Ribeiro a não fazer aquele comício. Mas fez questão de discursar.
- Meu avô achava que meu pai tinha que ir. Para agradar a ele, convidei meu pai e pedi pra ele não ir, pois queria a presença de meu avô. Um ficou com medo do outro. Nenhum dos dois foi à cerimônia.
Guarde o lenço, pois o casamento não deu lá muito certo. Juliana casou pela segunda vez e tem um filho de cinco meses. Ela explica as zangas mútuas:
- Meu pai nunca foi um homem político, mas, em determinado momento, decidiu se candidatar. Estava meio brigado com meu avô. O que eu acho é que, na época, o PT o convidou pra se filiar pra atingir meu avô, que acabou morrendo sem falar com o filho. Isso deixou ele bem desgostoso no final da vida. Agora, eu e meus irmãos somos PDT roxos.
Irmã do vereador carioca Leonel Brizola Neto e do deputado federal Carlos Daudt Brizola, Juliana preserva o sabor da maravilha gastronômica do clã:
- Nasci numa família onde se falava de política no café da manhã, no almoço e no jantar. Sempre militei no partido, mas não sabia se ia seguir. Veio aos poucos. Primeiro, me filiei na juventude do PDT. Sempre era cobrada, sobretudo depois que meu avô faleceu. Na eleição de 2008, estava preparada.
Tanto quanto Christopher, a jovem vereadora porto-alegrense guarda melancolias infantis sobre o exílio da família, lançada ao ostracismo em 1964.
- Meu avô estava no Uruguai e deram 72 horas pra ele sair. Eu fui bem pequena pra lá, tinha três anos na casa dele. Acabei morando no Uruguai por quatro anos. O exílio influenciou a minha geração, talvez até a do meu filho. Deixou sequelas na família. Uma coisa é sair porque quer, outra é ser obrigado, não poder voltar. Causou muitos problemas na família.
Numa dissertação de mestrado, defendida na PUC-RS, Juliana desenvolveu um tema brizolista: "O papel dos Cieps na defesa do adolescente" (formada em Direito, até pensou em ser juíza, por desejo do avô). A educação será o principal ponto de sua campanha.
- Uma das razões de eu me candidatar é que, às vezes, é preciso ter votos pra ter voz. Eu me candidato pra manter as ideias de meu avô dentro do partido, porque notava o quanto ele abdicava do convívio familiar pra se dedicar ao PDT. Estou na vida pública pra dar continuidade ao meu avô, principalmente no que se refere à escola de ensino integral. Mas o maior legado dele foi o exemplo de vida: um homem coerente, íntegro, com um respeito único pelo dinheiro público.
Juliana relata que a mãe esteve próxima da pré-candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff. Tempos do movimento de mulheres do PDT. Enquanto põe fé na ex-pedetista, faz uma restrição ao governo federal:
- Admiro o presidente Lula. Minha única questão é a educação. Ele podia investir em escolas de turno integral, como os Cieps, que são um auxílio pro adolescente infrator. Tenho bastante esperança na Dilma, já que ela é oriunda do nosso quintal.
Sorriso na hora de recordar o ensinamento mais forte do avô: a arte de engolir sapos, amargada tantas vezes por Leonel Brizola.
- Vai passando a vida, e realmente acontece. A gente aprende que a política é mesmo a arte de engolir um sapo. Engole uma coisa aqui para conseguir inverter mais tarde. É um passo pra trás, para conseguir avançar dois. Admirava como ele sabia fazer esse jogo político, envolver as pessoas. Quando ele aceitou ser vice de Lula, foi um baita gesto de humildade. Ele poderia não querer ser vice, mas em prol do bem comum, aceitou - relata.
Era arte mais sofisticada, a de engolir um sapo barbudo.
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