“A maioria daqueles que hoje escrevem contra o SUS não conhece o SUS, apesar de muitas vezes terem sido atendidos ou usado serviços do sistema”
Dr. Rosinha
Por excesso de trabalho, entro neste debate atrasado. Mas, como sempre, antes tarde do que nunca. Não poderia deixar de fazê-lo mesmo que muitos já tenham se manifestado sobre o tema.
Alguns, como Nina Crintzs, no ótimo texto “Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto”, contaram o seu drama pessoal. Ao iniciar, peço desculpas, porque sei que aqui não é um espaço autobiográfico, mas também conto um pouco da minha vida.
Nunca me esqueço, nem hei de esquecer, uma pequena e triste história que meu pai contava. Contou-me ele que adoeci quando tinha menos de um ano de idade. Pegou-me no colo e caminhou por mais de doze quilômetros, a pé, para me levar a um médico.
Não tinha dinheiro no bolso. Levava no seu íntimo a esperança e, na sua honradez, a promessa. A esperança de que o médico me atendesse, e a promessa de pagá-lo depois que vendesse a colheita ou algum animal (porcos ou galinhas). Ele era um pobre lavrador, empregado em uma propriedade rural.
Caminhou de volta o mesmo percurso, trazendo nos braços o mesmo fardo e, na alma, a tristeza, pois mataram sua esperança e não acreditaram na sua honradez. O médico não me atendeu. Esse fato ocorreu há mais de 60 anos.
Quando estudante de medicina, na década de 1970, antes da criação do SUS (Constituição de 1988), o cidadão ou cidadã tinha a carteira de trabalho assinada ou então não era atendido pelos serviços de saúde, principalmente o atendimento médico.
Se tinha carteira assinada, ia para as enfermarias dos hospitais públicos e filantrópicos. Caso contrário, ia para outras enfermarias, com maior número de leitos, com uma anotação na cabeceira da cama: “N/C” (não contribuinte). E, no jargão do serviço médico, a pessoa era identificada pelo número do leito (raramente tinha nome) e chamada de “indigente”.
A história da saúde pública brasileira é cheia de fatos, de casos e descasos com os cidadãos e cidadãs, principalmente pobres. Para que deixassem de ocorrer casos e descasos é que um grupo de militantes da saúde, entre os quais me incluo, lutamos para construir um sistema público, que garantisse a saúde como direito do cidadão e da cidadã. Assim começamos, na década de 1980, na contramão do que ocorria no mundo, que privatizava tudo, a construir o Sistema Único de Saúde (SUS).
A maioria daqueles que hoje escrevem contra o SUS não conhece o SUS, apesar de muitas vezes terem sido atendidos ou usado serviços do sistema. Baseiam sua críticas tendo como referência as TVs, principalmente a Globo, ou matérias jornalísticas suspeitas.
Por não conhecerem o SUS, no geral, as críticas têm um viés preconceituoso e de desqualificação do SUS e, no caso especifico do Lula, duplamente preconceituoso. Poderia fazer uma lista enorme de governantes e ex-governantes que, quando adoecem, são atendidos pelo sistema privado ou mesmo vão para o exterior, mas o Lula não pode, ele tem que ir para o SUS, como se fosse obrigado.
Há que lembrar que ser atendido pelo SUS é um direito, não uma obrigação. É obrigação do Estado oferecer o atendimento, que ainda é falho por culpa de muitos dos governantes, como, por exemplo, no Estado de São Paulo (governado há mais de uma década e meia pelo PSDB), que não priorizam a saúde pública e trabalham para privatizar ou terceirizar todos os serviços públicos de saúde.
Dias atrás, um amigo foi convidado para ir numa sala de aula do Ensino Médio para falar sobre o SUS. Disse-me que entrou na sala e entregou uma bala (o que é politicamente incorreto) para cada um dos alunos e, em seguida, perguntou se algum deles já tinha usado o SUS naquele dia.
Como era de manhã, a reposta foi um unânime “não”. Pois bem, disse ele, no momento em que vocês estiverem chupando a bala, estarão usando o SUS. Todo cidadão ou cidadã, no momento em que está se alimentando ou vacinando seu filho ou tomando medicamentos, queira ou não, saiba ou não, está usando o SUS, pois todos os produtos são submetidos à vigilância sanitária.
O controle de epidemias é feito pela vigilância epidemiológica, ou seja, pelo SUS. Portanto, dobrem a língua para falar do SUS.
O SUS atende em todas as áreas, e, para ficar em uma só – em função da infelicidade do ex-presidente Lula, a quem sou solidário por ser vítima duas vezes, pela doença e pelo preconceito –, cito só o câncer. São feitos pelo SUS cerca de 30 milhões de procedimentos por ano no atendimento a pessoas que têm câncer.
Cobram que o Lula vá ao SUS, o que pode ser considerado correto, se não pagassem seguro saúde ou atendimento particular. Tanto num como noutro caso, buscam o ressarcimento das despesas médicas no imposto de renda, ou seja, descontam o que pagaram no imposto. Essa prática faz com que, por ano, o governo deixe de arrecadar aproximadamente 5 bilhões de reais. Dinheiro que iria para o SUS.
Joga-se a conta do médico particular ou do seu seguro de saúde para que, indiretamente, o povo pague. Sobre isto, nenhum comentário.
Termino com o recado da Nina Crintzs: “Fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é mau gosto. É, talvez, falha de caráter. E falar do que não se conhece, é coisa de gente burra”. Luana Piovani, isto também é para você.
Estamos construindo o SUS para quem ninguém mais volte para casa com os filhos nos braços sem serem atendidos.Sobre o autor
Dr. Rosinha
* Médico, com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, destacou-se como líder sindical antes de se eleger vereador, deputado estadual e deputado federal. Também foi presidente do Parlamento do Mercosul (Parlasul). Exerce o quarto mandato na Câmara dos Deputados, pelo PT do Paraná.
Fonte: Congresso em Foco.
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