Do blog do Ricardo Kotscho.
Memória: Globo e Collor contra Lula, tudo a ver.
O problema de ficar velho nesta profissão de jornalista é que a gente viu,
ouviu e viveu as coisas de perto, testemunha ocular e auricular.
Sempre que ressurge no noticiário uma história de 20, 30, 40 anos atrás,
pedem-me para escrever sobre o evento.
Estudantes frequentemente me procuram para contar como aconteceram
variados episódios da vida brasileira no último meio século.
De vez em quando, a memória falha, mas tem certas passagens que testemunhei
e nunca vou esquecer.
Uma delas, certamente, foi o que aconteceu no debate decisivo entre Collor
e Lula no segundo turno das eleições presidenciais de 1989.
Eu era assessor de imprensa do então candidato Lula e participava das
reuniões com as emissoras e representantes dos adversários para definir o
formato dos debates na televisão junto com algum dirigente do PT ou outro
membro da campanha.
Na última reunião para o segundo debate, na TV Bandeirantes, em São Paulo,
fui sozinho no meu carro para a emissora porque morava lá perto.
Cheguei cedo e me surpreendi quando vi Cláudio Humberto, o assessor de
imprensa de Collor, entrando na sala junto com Alberico Souza Cruz, da TV
Globo, promovido a diretor de jornalismo após a campanha..
Até brinquei com eles _ "estou f...." _, mas me garantiram que tudo não
passara de uma coincidência.
Os dois pegaram por acaso o mesmo vôo no Rio para São Paulo.
Por acaso também, certamente, os dois tinham as mesmas propostas para o
debate e eu me senti meio isolado na discussão.
Lembrei-me na manhã desta terça-feira de novembro de 2011 do que aconteceu
naquela tarde do final de 1989 ao ler na "Folha" o título da página
A11: "Ex-executivo da Globo mentiu sobre debate, diz Collor".
A polêmica surgiu após uma entrevista concedida no sábado à Globo News por
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, manda-chuva da Globo na
época, que agora está lançando seu livro de memórias.
Nesta entrevista, Boni contou como a principal rede de televisão do país
ajudou o candidato Fernando Collor de Mello na preparação para o debate
decisivo.
"Nós fomos procurados pela assessoria do Collor", revelou Boni, ao contar
que recebeu ordens de Miguel Pires Gonçalves, então superintendente da
Globo, para que "desse alguns palpites" na preparação do candidato do PRN.
Boni contou mais: "Conseguimos tirar a gravata do Collor, botar um pouco de
suor com uma glicerinazinha, e colocamos as pastas todas que estavam ali,
com supostas denúncias contra o Lula, mas que estavam vazias ou com papéis
em branco".
Principal executivo da Rede Globo na época, Boni afirmou na entrevista
que "todo aquele material foi produzido, na parte formal", cabendo a
Collor "o conteúdo".
Collor, ao seu estilo deixa que eu chuto, negou tudo: "Nunca pedi a ninguém
para falar com o Boni, meu contato era direto com o doutor Roberto
(Roberto Marinho, dono da emissora). Nunca tirei a gravata nos debates.
Mentira. Suor: nem natural nem aspergido pelo Boni. Glicerina: mais uma
viajada na maionese. Pastas vazias: ao contrário, cheias de papéis,
números da economia, que sequer utilizei. Em resumo, o Boni despirocou".
O que de fato aconteceu do outro lado da disputa presidencial, só os dois
podem dizer. Da minha parte, só sei que Collor sofreu uma derrota
acachapante, como se diz no futebol, no primeiro debate, na TV Manchete,
no Rio, e resolveu partir para o tudo ou nada no segundo.
Furioso, demitiu quase toda sua equipe de campanha naquela mesma noite ao
voltar para o hotel. Chamou seu irmão Leopoldo Collor de Mello,
ex-executivo da Rede Globo, para comandar a mudança, contratou novos
marqueteiros, gastou o que tinha e o que não tinha, dinheiro não era
problema.
Levou os últimos dias da campanha para a sarjeta e assim surgiu garboso e
desafiante no palco do segundo debate. Estava de gravata e carregava um
monte de pastas.
Também escrevi um livro de memórias para me ajudar nestas horas ("Do Golpe
ao Planalto _ Uma vida de Repórter", Companhia das Letras, 2006) e foi de
lá que tirei o texto transcrito abaixo sobre o que vi acontecer naquela
noite:
Chovia forte em São Bernanrdo do Campo, e estava em cima da hora para irmos
à TV Bandeirantes, no Morumbi. Lula já se encontrava no carro com Marisa
quando Marcos, o filho mais velho, veio avisar que ligaram de Brasília
informando que Collor levaria algumas pastas amarelas para o debate, com
novas acusações contra ele no campo pessoal. No estúdio, Lula seguiu para
o seu púlpito, sem sequer olhar para o oponente.
Mas, em vez de partir para o ataque, quando Boris Casoy lhe fez a primeira
pergunta _ sobre a queda do Muro de Berlim, poucas semanas antes _, ele
entrou direto na resposta. Com as mangas compridas do paletó escuro
cobrindo-lhe até a metade das mãos, dispersivo, Lula em nada lembrava o
candidato combativo da campanha.
Quando o debate terminou, eu o aguardava no corredor que liga os estúdios à
sala reservada aos candidatos. Ele me deu um tapa nas costas e balançou a
cabeça: "Perdemos a eleição. Eu me sinto como um lutador sonado".
Já de madrugada, fomos jantar em sua casa, mas a comida ficou esfriando na
mesa. Nas 48 horas seguintes, Lula ainda seria obrigado a enfrentar toda
espécie de boatos difundidos pela imprensa marrom e no boca a boca. Caso
vencesse a eleição, diziam, fecharia os templos não católicos, tomaria
casas, barracos, carros, televisões, bicicletas e até galinhas de quem
tivesse duas para dividir com os mais pobres.
(...) Sábio Frei Chico, o irmão mais velho de Lula que o levou para o
sindicalismo.
Homem de boa paz e comunista, ele foi buscar lá nas origens da família as
explicações para a implosão do candidato no final da campanha,
especialmente no último debate: "Lá em Pernambuco, quando alguém ofende a
família, o sertanejo só tem dois tipos de reação: ou mata o desafeto ou
fica magoado. Lula ficou magoado...".
Deu para perceber isso na edição do debate que foi ao ar no telejornal
Hoje, da TV Globo, na hora do almoço do dia seguinte. Lula não estava bem,
perdeu.
Mas o que se viu à noite, no Jornal Nacional, da mesma emissora, foi o
resumo de outro debate.
Editaram só os melhores momentos de Collor e os piores de Lula.
O resultado do jogo, que tinha sido 2 X 1 na edição do Hoje,
transformou-se magicamente em 10 X 0.
Empolgados, os seguidores de Collor, quietinhos até então, saíram às ruas
com bandeiras para comemorar.
A história pode ser reescrita de várias formas, mas os fatos não podem ser
reinventados.
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