Do Terra Magazine.
Paquito
De Salvador (BA)
Nemésio Sales é um advogado trabalhista bem sucedido, homem culto e afável, morador do bairro do Canela, em Salvador. Quem o conhece assim, de pronto, nem desconfia do que era capaz, nos anos da ditadura militar, no Brasil.
Ligado ao Partido Comunista, como muitos dissidentes do regime, Nemésio foi perseguido pelos órgãos da repressão. No entanto, nunca foi preso, o que fazia de sua figura um ícone para os adolescentes da nossa família, que ouviam os pais, aflitos e receosos de que nos tornássemos um exército de Nemesinhos, questionamentos à flor da pele:
- Nemésio é subversivo, e vive fugido, subtraído do direito de ir e vir!
Aparentemente, Nemésio pouco se dava ao impedimento de seus direitos. Morou em países da Europa, mas, volta e meia, vinha ao Brasil ver a mãe, Dona Laura, parentes e amigos. Documentos frios, e um sangue da mesma temperatura, faziam-no dar bailes nos seus perseguidores.
Procurado, não se furtou a ir receber uma cadeira cativa do Maracanã, que ganhara em sorteio, no Rio. Apareceu, na cerimônia de entrega, para quem quisesse ver, numa daquelas reportagens do Canal 100, que antecedia aos filmes, nas salas de cinema.
Também no Rio de Janeiro, teve o pressentimento de que o lugar em que morava estava visado. Numa noite, antes de voltar pra casa, pediu ao irmão mais velho, que não tinha implicações com a esquerda, para entrar no apartamento e acender duas vezes a luz, se tudo estivesse bem, enquanto ele esperava dentro do carro, na rua.
Assim que o irmão entrou, foi derrubado por um bando de soldados, enquanto o que parecia ser o líder deles, disse:
- A gente lhe procurou tanto, Seu Nemésio! O senhor vai dizer à gente onde está o Marighella!
O irmão apresentou a identificação, os milicos se convenceram de quem ele realmente era, e o soltaram. Quanto a Nemésio, não vendo a luz se acender como fora combinado, escapou.
Quando morava em Moscou, era chamado pelos colegas de partido de "italiano", por conta de ser questionador, feito pensadores marxistas, como Gramsci. Antes de entrar no Partidão, tinha fama de nietzschiano e, portanto, rebelde. Não era a favor da luta armada, por saber que os militantes não tinham experiência alguma de combate. Um marxista, enfim, nada sectário.
Na minha infância, não lembro de tê-lo visto em Jequié, cidade onde nasci, em 1964, e vivi até os 10 anos.
Muito tempo depois, numa sessão de cinema em Salvador, no antigo Teatro Maria Bethânia, ele me cumprimentou, sentado atrás de mim, durante uma sessão de O sétimo selo, de Bergman. Foi a primeira vez que assisti a esse filme impressionante, e é a primeira lembrança que tenho de Nemésio, como sempre, jeito manso, tranqüilo, na dele. Se a memória não me engana, a anistia já havia sido decretada e ele podia circular sem ser incomodado. Mas no fundo, ele é que incomodava seus algozes.
O que me intrigava, no entanto, era o afeto demonstrado por mestres da música popular a Nemésio. Caetano, quando eu disse ser seu primo, falou, sem pestanejar:
- Nemésio é um amor!
Tom Zé, de vez em quando, cita o seu nome em entrevistas, ao contar histórias dos tempos do CPC. E Paulinho da Viola, em uma vez que falei conhecer Nemésio, respondeu, animado:
- Onde anda esse cara? Me dá notícia dele!
Meu pai, decididamente a favor dos militares do antigo regime, em uma das inúmeras discussões que travávamos, naqueles tempos estranhos, declarou:
- Nemésio é perigoso, tem ligações com a China e Mao Tsé-Tung!
Anos mais tarde, em uma conversa com Nemésio, perguntei qual a veracidade da história. Nema, como é chamado pelos amigos, minimizou o fato, esclarecendo que fora à China para um congresso internacional de estudantes, ainda quando fazia direito, em 1957 - antes da Revolução Cultural - com um grupo da Une, quando contava apenas 22 anos, e encontrou com Mao à frente de uma turma de brasileiros, em um palácio na Praça da Paz Celestial.
Nemésio disse que Mao só parou para falar com a delegação de dois países, Brasil e Nigéria e, ao se dirigir a ele, falou duas vezes o nome do Brasil, em chinês, afirmando que o nosso país e a China tinham de estar unidos. Em seguida, Mao apertou sua mão. Segundo Nema, a mão de Mao era imponente, imensa. E arrematou:
- Foi só um aperto de mão e poucas palavras, nada mais.
Quando contei o caso ao meu amigo João Reis, o historiador, Jonga não se conteve:
- E não é pouco! Quantas pessoas que você conhece apertaram a mão de Mao Tsé-Tung?
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