Do Valor
Prendam os suspeitos de sempre
Luiz Gonzaga Belluzzo
04/05/2010
O pacote de 120 bilhões de euros apresentado como a “salvação da Grécia” é apenas o início de seu calvário. As condições do ajustamento impostas ao país mediterrâneo são quase as mesmas já conhecidas dos periféricos abalroados por desastres financeiros e cambiais. A diferença, não desprezível, está na impossibilidade de desvalorização cambial, circunstância que certamente lançará o país num doloroso processo de deflação de salários e preços, queda do PIB, desemprego e revolta social.
Os gregos podem figurar seu destino ao observar as agruras da desditosa Letônia. Enredados num regime de taxa fixa com o euro, os letões foram abençoados por um turbilhão de crédito externo que, nos “bons tempos”, alimentou uma eufórica valorização de ativos (surpresa!, sobretudo imobiliária). O país acabou no Irajá da deflação: três anos de queda do PIB (-17,5% em 2009), contração da capacidade produtiva, desemprego de 25% da PEA, com fuga da mão de obra qualificada. As previsões para 2010 apostam em mais do mesmo.
Ainda assim, os porta-vozes do mundo financeiro celebram a experiência “bem sucedida” da Letônia e recomendam os métodos da “desvalorização interna” para a Grécia. A revista The Economist comemorou: “a despeito de uma queda do PIB de 17,5%, a Letônia conseguiu aquilo que parecia impossível: uma desvalorização interna. Isso significa recuperar competitividade, não mediante uma desvalorização da moeda, mas através de duros cortes de salários e do gasto público.” Yarkin Cabeci do JPMorgan escreveu no New York Times: “Os investidores internacionais estão agora confiantes na Letônia e apresentam o país como um exemplo para outros que precisam ‘entregar a mercadoria’ na política fiscal”. Salvos da bancarrota, os senhores do universo exigem que se cumpra a sentença prolatada pelo Captain Renault, o inspetor de polícia de Casablanca, personagem de Claude Rains no filme protagonizado por Humphey Bogard e Ingrid Bergman: “Prendam os suspeitos de sempre”.
Diante dessas e outras, o jornal alemão Berliner Zeitung entrou na contramão do fluxo de crueldades e bateu duro nas hesitações da liderança alemã no encaminhamento de soluções para a tragédia grega. O jornal diz que a crise bancária chegou ao auge no final de 2008. Os governos e seus parlamentos tomaram medidas extraordinárias para conter o colapso do sistema financeiro global. Políticos como Ângela Merkel proclamaram que a política, finalmente, recuperou o poder diante dos mercados desaçaimados e dos malabaristas financeiros.
“Quanta decepção. Agora, no caso da Grécia, o mercado está caçando os políticos que correm como um rebanho de ovelhas assustadas. Os mercados financeiros ‘não dão bola’ para a primazia da política. Muito ao contrário, apostam e ganham contra os esforços desesperados dos políticos para manter as coisas sob controle.”
O mundo da finança viveu uma relativa calmaria, nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída, em boa medida, à chamada “repressão financeira”. Esta incluía a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities), a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de capitais.
As políticas anticíclicas da era keynesiana cumpriram o que prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização do capital”. Mas, ao garantir o valor da riqueza já existente, as ações de estabilização ex-post ampliaram, sem dúvida, o chamado “risco moral”. Os episódios de valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques de riqueza se multiplicaram, mas os Bancos Centrais desprezaram a sucessão de crises financeiras e cambiais, sempre atribuídas à imperícia e imprudência de governos ineptos e gastadores da periferia. Quanto aos financiadores da orgia, bico calado.
O descaso das autoridades com a adoção de medidas prudenciais e a confiança dos mercados nas técnicas de proteção mediante o uso de derivativos levaram à alavancagem abusiva e à recorrência dos processos de inflação de ativos, assim como à ampliação das oportunidades de ganhos patrimoniais mediante fusões e aquisições. As massas de capital financeiro, concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais – fundos de pensão, fundos mútuos e fundos de hedge – moveram-se celeremente entre as economias nacionais, na busca de oportunidades de arbitragem ou de ganhos especulativos, sempre envolvendo apostas quanto aos movimentos de preços dos ativos.
A visão convencional supõe que as decisões privadas são “estabilizadoras”. As expectativas são racionais e, portanto, os “erros” de avaliação são residuais e absorvidos pela capacidade dos agentes – diante das informações disponíveis- de decidir de acordo com o modelo “correto”. Isso quer dizer: conforme as leis universais – válidas em qualquer tempo e lugar – que regem a trajetória de longo prazo da economia de mercado competitiva.
Quem tem um mínimo conhecimento do assunto sabe que, na história da economia mercantil-capitalista, as incessantes transformações nos regimes monetários e financeiros resultam do conflito permanente, entre as “regras” do jogo e a compulsão dos possuidores de riqueza para transgredi-las. Não há, portanto, um “modelo” e muito menos um conjunto de regras de gestão que possam ser tomados como absolutos.
Nos dia de hoje, é impossível ignorar que as inovações financeiras, a liberalização das contas de capital e a desregulamentação dos mercados tornaram inviável a pretensão conservadora de se deixar aos mercados os cuidados da prudência e da disciplina.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
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