domingo, 6 de junho de 2010

POLÍTICA - Entrevista com Itamar Franco.

Entrevista: Itamar Franco e o poder da simplicidade

Mauro Santayana, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - Quando assumiu a Presidência da República, durante o afastamento compulsório do titular, Fernando Collor – que seria definitivo meses depois, com o impeachment – Itamar Franco surpreendeu as elites, representadas pelos principais veículos de comunicação do país. Seu ministério foi tachado de “governo de compadres”, e “República do Pão de Queijo”. A resposta de Itamar foi uma pergunta, quase inocente: “As pessoas simples não podem governar?”.

Meses depois, o senador Antonio Carlos Magalhães pediu-lhe uma audiência. Queria fazer “graves revelações” contra Jutahy Magalhães Júnior, seu ex-aliado e então desafeto na Bahia, que ocupava o cargo de ministro de Bem-estar Social. Ao ser introduzido no gabinete, na hora marcada, Antonio Carlos encontrou todos os jornalistas credenciados no Planalto, com seus fotógrafos e as câmeras de televisão. Diante do espanto e constrangimento do Senador, Itamar explicou:

– Como o senhor me disse que faria uma denúncia, achei conveniente que a fizesse à nação inteira. O senhor pode apresentá-la diretamente aos jornalistas.

Modéstia

Antonio Carlos engoliu em seco. Seu “dossiê” era constituído de recortes de jornais, que nada provavam contra Jutahy. Ao minimizar a importância do episódio, que alguns atribuíram à sua astúcia de mineiro, Itamar confessou, modesto:

– Eu, astuto? Eu sou até meio bobo.

A República do Pão de Queijo pode ter sido, para o desdém de seus críticos, a república do pão, pão; queijo, queijo; orientada pelo pensamento óbvio, pelo senso comum. Mas é provável que Itamar tenha sido realmente ingênuo, ao deslumbrar-se pela retórica professoral do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e fazer dele seu sucessor. Itamar relembra o episódio:

– O nome de Fernando Henrique surgiu por exclusão. Diante da pressão dos fatos, que me levaram a aceitar a demissão do ministro Eliseu Resende, desloquei Fernando Henrique do ministério de Relações Exteriores e o nomeei para a Fazenda. A partir de então, seu protagonismo foi natural. Mas, naquele momento, eu pensava, e pensava firmemente, em dar a José Aparecido de Oliveira visibilidade que o credenciasse à sucessão. Aparecido – tal como hoje ocorre ao presidente Lula – se revelara excepcional diplomata, à frente de nossa embaixada em Lisboa. Coube-lhe articular, com grande sacrifício pessoal, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Teve que vencer a resistência de certos setores lusitanos, que não queriam dividir, com o Brasil, a influência sobre as suas antigas colônias. Com o apoio de Mário Soares, Aparecido partiu para a segunda etapa: a de convencer os novos países que podiam confiar na CPLP, porque a presença brasileira neutralizava a suspeita, natural, de que a instituição viesse a ser instrumento de novo colonialismo. Foi assim que, sem linhas aéreas regulares, que lhe possibilitassem as viagens sucessivas e rápidas pelo continente africano, Aparecido teve que se deslocar de um país para outro em aviões monomotores. O Brasil deve também ao Aparecido a oportunidade de hoje estar presente na Ásia: ele nos revelou a existência de Timor-Leste e incluiu essa realidade em nossa política externa. Eu não tive dúvida em convidá-lo para ocupar a Secretaria de Estado. Os elitistas do Itamaraty se levantaram contra a indicação, mas eu não recuaria. Quem recuou foi o próprio Aparecido, e com razões ponderáveis: estava enfermo, sujeito a uma cirurgia arriscada e, com sua sensibilidade, entendeu que não teria condições para ocupar o cargo. Foi então que – e mais uma vez eu lhe louvo a perspicácia diplomática – ele me sugeriu o nome do embaixador Celso Amorim. Acatei, com prazer, a sugestão. Em primeiro lugar porque, não podendo contar com Aparecido, era mais razoável que me valesse de um quadro do Itamaraty, para servir-me no curto mandato que me restava. Além da recomendação de Aparecido, tive outras referências que confortaram a minha escolha. Quanto à sucessão, o nome de Aparecido se tornou inviável pela enfermidade. Optei então pelo jornalista Antonio Brito, que se destacara como ministro da Previdência e estava à frente das pesquisas. Brito declinou: era muito jovem, e preferia governar o Rio Grande do Sul. Fernando Henrique era a terceira opção.

Elogios

a Amorim

e à política externa

Já que falamos em diplomacia – e Itamar foi embaixador em Portugal, na OEA e na Itália – conversamos algum tempo sobre a política externa de Lula. Itamar sorri: ele se sente parceiro de seus êxitos, uma vez que lhe coube levar Amorim para a chancelaria.

– Senti-me homenageado quando, na presença do embaixador Amorim, em uma recepção na Embaixada do Brasil no Vaticano, o presidente Lula me disse que o havia convocado para a chefia do Itamaraty por ele ter sido meu chanceler. É claro que Lula me fazia um afago político, e que a razão da escolha não fora só a nomeação de Amorim pelo meu governo, mas, de qualquer forma, eu dera ao diplomata de Santos a chance de revelar-se como um dos mais importantes negociadores internacionais de nosso tempo. Só tenho a lamentar que Amorim tenha ido a Juiz de Fora participar de um comício em favor da candidatura de Nilmário Miranda, do PT, com Lula, e ao lado de Newton Cardoso, contra a reeleição de Aécio. Um ministro de Relações Exteriores não deveria intervir em disputa regional, e muito menos na cidade natal de quem nele confiara a execução da política externa brasileira. Magalhães Pinto, que era político, nunca fez isso. Esse episódio, que me entristeceu profundamente, não diminui a admiração pelo grande diplomata que ele é.

Comento com Itamar curiosa circunstância histórica. Celso Amorim é de Santos, e em Santos nasceram dois dos mais importantes diplomatas brasileiros, decisivos em momentos cruciais da nacionalidade. O primeiro foi Alexandre de Gusmão, que deu ao Brasil os seus limites continentais, com o Tratado de Madri, de 1750, em que se reconheceu o princípio do utis possidetis que legitima a posse de fato. O segundo foi José Bonifácio de Andrada, o primeiro-ministro de Relações Exteriores do Brasil.

Continuando na política externa, Itamar faz pequeno reparo a Celso Amorim:

– O ministro disse que, para não ter direito a um voto independente, é melhor não fazer parte do Conselho de Segurança da ONU. No meu entendimento, trata-se de falsa questão. A nação que faz parte do Conselho tem a liberdade de votar como quiser, de acordo com seus princípios e interesses e em favor da paz mundial. O que deve ser contestado é o ainda poder de veto exclusivo aos cinco países que são membros permanentes do órgão. O Brasil sempre teve direito, pelas suas dimensões geográficas e pela sua formação histórica, a participar do Conselho de Segurança. Em 1926, com forte presença na Liga das Nações, teve a sua candidatura, como membro efetivo do Conselho das Nações, preterida em favor da Alemanha – da mesma Alemanha que fora derrotada em 1918. Como era nosso presidente o grande estadista mineiro Artur Bernardes, e seu representante na Liga outro invulgar homem de Estado, também mineiro, o embaixador Afrânio de Mello Franco, o Brasil preferiu a honra e abandonou a Liga, que se revelara instrumento dócil do eurocentrismo. Um país que defendera, com Rui, em Haia, a plena igualdade entre as nações, não poderia compactuar com a ditadura dos grandes.

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