El comandante deixou o prédio [1]
6/3/2013, Pepe Escobar, Asia Times Online
Parece filme, a história de um homem do povo que cresce, contra todas as probabilidades até se tornar o Elvis político da América Latina. Muito maior que Elvis, na verdade, presidente que venceu 13 de 14 eleições nacionais democráticas. Chance zero de alguém ver esse filme premiado com algum Óscar – nem, jamais, de ser produzido em Hollywood. A menos, é claro, que Oliver Stone convença a HBO a fazer um especial para a televisão a cabo e DVD.
Que inspirador, que iluminador assistir às reações dos líderes mundiais à morte de El Comandante Hugo Chávez da Venezuela. O presidente do Uruguai Jose Mujica – homem que rejeita 90% do salário, porque insiste que precisa de muito menos para atender às suas necessidades básicas – mais uma vez lembrou que, para ele, Chávez sempre foi “o líder mais generoso que jamais conheci”; e elogiou a “fortaleza da democracia” da qual Chávez foi grande construtor.
Compare-se isso com o presidente dos EUA Barack Obama – no que parece ser requentamento, tipo corta-cola, de circular interna da Casa Branca – reafirmando o apoio dos EUA “ao povo venezuelano”.
Estaria apoiando o mesmo “povo venezuelano” que elegeu e reelegeu Chávez, sem interrupção, desde o final dos anos 1990s? Ou é apoio só ao “povo venezuelano” que vive a entornar Martinis em Miami, enquanto demoniza Chávez como perigoso comunista do mal?
El Comandante pode até já ter deixado o prédio – o corpo derrotado pelo câncer –, mas a demonização post mortem prosseguirá para sempre. Uma das razões disso salta aos olhos. A Venezuela é dona da maior reserva de petróleo do mundo. Washington e aquela cidadela kafkiana, em ruínas, também conhecida como União Europeia vivem a cantar All You Need is Love, sem parar, aos pés daqueles fantasmagóricos, espectrais, feudais petromonarcas do Golfo Persa (nunca, claro, para “o povo”), em troca do petróleo deles. Mas, diferente disso, na Venezuela, El Comandante Chávez apareceu lá com a ideia subversiva de usar a riqueza do petróleo para, pelo menos, minorar o sofrimento dos venezuelanos. O turbocapitalismo ocidental, como é bem sabido, não faz redistribuição de riqueza nem dá força e poder a valores comunitários.
Odeio você, cabron
Segundo o Ministro de
Relações Externas, o vice-presidente Nicolas Maduro – e não o presidente da
Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, íntimo dos chefes militares – assumirá a
presidência até as próximas eleições, a serem realizadas dentro de 30 dias. Tudo
autoriza a prever que Maduro será eleito. A oposição política na Venezuela é uma
piada em formato de colcha de retalhos. Pode-se começar a pensar em chavismo sem
Chávez – para imenso desgosto e ira infinita da vasta indústria pan-americana e
pan-europeia de odiadores de Chávez.
Não aconteceu por acaso, que El Comandante tenha-se tornado imensamente popular entre “o povo”, não só em vastas regiões da América Latina mas, também, em todo o Sul Global. Esse “o povo” – e não é o mesmo “o povo” de que Barack Obama fala – viu claramente a correlação direta que há entre o neoliberalismo e a expansão da miséria (hoje, milhões de europeus estão duramente conhecendo o mesmo gosto amargo). Especialmente na América do Sul, foi a reação popular contra o neoliberalismo que desencadeou – mediante eleições democráticas – uma onda de governos de esquerda na última década, da Venezuela à Bolívia, Equador e Uruguai.
O governo Bush detestou tudo isso – para dizer o mínimo. Nada pôde fazer contra Lula no Brasil – operador inteligente que vestiu terno neoliberal (Wall Street o adorava), mas manteve o coração progressista. Washington – incapaz de pensar fora da caixa dos vícios dos golpes e mais golpes dos anos 1960s e 1970s – supôs que Chávez seria o elo fraco. Assim aconteceu, em abril de 2002, o golpe chefiado por uma facção de militares, que pôs no poder (digamos!) um rico empresário venezuelano. O golpe, apoiado pelos EUA, durou menos de 48 horas; Chávez foi devidamente reimpossado, apoiado pelo “o povo” (o verdadeiro) e grande parte do Exército.
Exatamente por isso, nada há de surpreendente em Maduro ter anunciado, algumas horas antes da morte de El Comandante, que dois empregados da embaixada dos EUA estavam sendo expulsos do país: o adido David Delmonaco e o adido-assistente Devlin Costal. Delmonaco foi acusado de fomentar – e o que mais essa gente “fomenta”?! – um golpe, com alguns grupos de militares venezuelanos. Esses gringos não aprendem!
Há entre os chavistas imensíssima suspeita de que El Comandante tenha sido envenenado – e bem se pode prever algum tipo de replay talvez um pouco mais complexo do que aconteceu a Yasser Arafat em 2004. Pode ter sido envenenado por Polônio-210 radiativo, como no caso de Arafat. A CIA, menina dos olhos de Hollywood, talvez tenha também algumas ideias sobre mais esse assassinato.
Estou todo mexido... [2]
Está aberto o veredicto sobre que exato tipo de revolucionário foi Chávez. Sempre elogiou todos, de Mao a Che, no Pantheon revolucionário. Sem dúvida foi líder popular muito habilidoso, com fino olhar geopolítico para identificar os padrões centenários de subjugação da América Latina. Daí suas repetidas referência à tradição revolucionária hispânica, de Bolívar a Martí.
O mantra de Chávez era que a única saída para melhor futuro na América Latina teria de ser a integração; daí os muitos e muitos mecanismos que criou e impulsionou, da ALBA (Aliança Bolivariana) a Petrocaribe, do Banco do Sul à UNASUL (União dos países latino-americanos).
Quanto ao seu “socialismo do século 21”, que escapava de todas as camisas-de-força ideológicas, fez mais para explorar o verdadeiro espírito dos valores comuns e partilhados – como um antídoto contra a putrefação do capitalismo financeiros super turbinado – que toneladas de análises acadêmicas neomarxistas.
Não surpreende que, para a gangue e asseclas de Goldman Sachs, Chávez pareça mais perigoso que a Peste Negra. A Venezuela comprou jatos Sukhoi de combate; criou e aprofundou laços estratégicos com dois grandes BRICS, Rússia e China – além de outros atores em todo o Sul Global; mantém mais de 30 mil médicos cubanos em treinamento de medicina preventiva, vivendo em comunidades pobres –, o que gerou uma explosão de jovens venezuelanos estudando medicina.
Números impressionantes contam grande parte da história que tem de ser conhecida. O déficit público na Venezuela não passa de meros 7,4% do PIB. A dívida pública alcança apenas 51,3% do PIB – muito abaixo da média da União Europeia. O setor público – ao contrário do que pretendem as apocalípticas acusações de “comunismo!” – equivale a apenas 18,4% da economia, menos que a estatizada França e que toda a Escandinávia. Em termos de geopolítica do petróleo, as quotas são estabelecidas pela OPEC; assim, o fato de que a Venezuela esteja exportando menos para os EUA implica que está diversificando seu portfólio de clientes (e exportando mais e mais para a China, parceira estratégica).
E eis o grande trunfo: a pobreza desgraçava 71% dos cidadãos venezuelanos em 1996. Em 2010, a porcentagem já fora reduzida para 21%. Para análise séria da economia venezuelana na era Chávez, vide http://venezuelanalysis.com/analysis/7513.
Anos atrás, foi preciso que aparecesse um romancista soberbo, como Garcia Marquez, para ver e explicar que o segredo de El Comandante estava em ele ser o grande Comunicador; era um deles (do seu “povo”, não no sentido de Barack Obama); da aparência física às atitudes e maneirismos, à cordialidade, ao palavreado (o mesmo se aplicava a Lula, em relação a muitos brasileiros).
Assim sendo, enquanto Oliver Stone sonda o mercado cinematográfico, temos de esperar por algum Garcia Marquez, que eleve Chávez ao Walhalla literário. Uma coisa é certa: em termos da narrativa do Sul Global, a história recordará que El Comandante, sim, deixou o prédio. Mas, depois dele, o prédio nunca mais foi o mesmo.
Não aconteceu por acaso, que El Comandante tenha-se tornado imensamente popular entre “o povo”, não só em vastas regiões da América Latina mas, também, em todo o Sul Global. Esse “o povo” – e não é o mesmo “o povo” de que Barack Obama fala – viu claramente a correlação direta que há entre o neoliberalismo e a expansão da miséria (hoje, milhões de europeus estão duramente conhecendo o mesmo gosto amargo). Especialmente na América do Sul, foi a reação popular contra o neoliberalismo que desencadeou – mediante eleições democráticas – uma onda de governos de esquerda na última década, da Venezuela à Bolívia, Equador e Uruguai.
O governo Bush detestou tudo isso – para dizer o mínimo. Nada pôde fazer contra Lula no Brasil – operador inteligente que vestiu terno neoliberal (Wall Street o adorava), mas manteve o coração progressista. Washington – incapaz de pensar fora da caixa dos vícios dos golpes e mais golpes dos anos 1960s e 1970s – supôs que Chávez seria o elo fraco. Assim aconteceu, em abril de 2002, o golpe chefiado por uma facção de militares, que pôs no poder (digamos!) um rico empresário venezuelano. O golpe, apoiado pelos EUA, durou menos de 48 horas; Chávez foi devidamente reimpossado, apoiado pelo “o povo” (o verdadeiro) e grande parte do Exército.
Exatamente por isso, nada há de surpreendente em Maduro ter anunciado, algumas horas antes da morte de El Comandante, que dois empregados da embaixada dos EUA estavam sendo expulsos do país: o adido David Delmonaco e o adido-assistente Devlin Costal. Delmonaco foi acusado de fomentar – e o que mais essa gente “fomenta”?! – um golpe, com alguns grupos de militares venezuelanos. Esses gringos não aprendem!
Há entre os chavistas imensíssima suspeita de que El Comandante tenha sido envenenado – e bem se pode prever algum tipo de replay talvez um pouco mais complexo do que aconteceu a Yasser Arafat em 2004. Pode ter sido envenenado por Polônio-210 radiativo, como no caso de Arafat. A CIA, menina dos olhos de Hollywood, talvez tenha também algumas ideias sobre mais esse assassinato.
Estou todo mexido... [2]
Está aberto o veredicto sobre que exato tipo de revolucionário foi Chávez. Sempre elogiou todos, de Mao a Che, no Pantheon revolucionário. Sem dúvida foi líder popular muito habilidoso, com fino olhar geopolítico para identificar os padrões centenários de subjugação da América Latina. Daí suas repetidas referência à tradição revolucionária hispânica, de Bolívar a Martí.
O mantra de Chávez era que a única saída para melhor futuro na América Latina teria de ser a integração; daí os muitos e muitos mecanismos que criou e impulsionou, da ALBA (Aliança Bolivariana) a Petrocaribe, do Banco do Sul à UNASUL (União dos países latino-americanos).
Quanto ao seu “socialismo do século 21”, que escapava de todas as camisas-de-força ideológicas, fez mais para explorar o verdadeiro espírito dos valores comuns e partilhados – como um antídoto contra a putrefação do capitalismo financeiros super turbinado – que toneladas de análises acadêmicas neomarxistas.
Não surpreende que, para a gangue e asseclas de Goldman Sachs, Chávez pareça mais perigoso que a Peste Negra. A Venezuela comprou jatos Sukhoi de combate; criou e aprofundou laços estratégicos com dois grandes BRICS, Rússia e China – além de outros atores em todo o Sul Global; mantém mais de 30 mil médicos cubanos em treinamento de medicina preventiva, vivendo em comunidades pobres –, o que gerou uma explosão de jovens venezuelanos estudando medicina.
Números impressionantes contam grande parte da história que tem de ser conhecida. O déficit público na Venezuela não passa de meros 7,4% do PIB. A dívida pública alcança apenas 51,3% do PIB – muito abaixo da média da União Europeia. O setor público – ao contrário do que pretendem as apocalípticas acusações de “comunismo!” – equivale a apenas 18,4% da economia, menos que a estatizada França e que toda a Escandinávia. Em termos de geopolítica do petróleo, as quotas são estabelecidas pela OPEC; assim, o fato de que a Venezuela esteja exportando menos para os EUA implica que está diversificando seu portfólio de clientes (e exportando mais e mais para a China, parceira estratégica).
E eis o grande trunfo: a pobreza desgraçava 71% dos cidadãos venezuelanos em 1996. Em 2010, a porcentagem já fora reduzida para 21%. Para análise séria da economia venezuelana na era Chávez, vide http://venezuelanalysis.com/analysis/7513.
Anos atrás, foi preciso que aparecesse um romancista soberbo, como Garcia Marquez, para ver e explicar que o segredo de El Comandante estava em ele ser o grande Comunicador; era um deles (do seu “povo”, não no sentido de Barack Obama); da aparência física às atitudes e maneirismos, à cordialidade, ao palavreado (o mesmo se aplicava a Lula, em relação a muitos brasileiros).
Assim sendo, enquanto Oliver Stone sonda o mercado cinematográfico, temos de esperar por algum Garcia Marquez, que eleve Chávez ao Walhalla literário. Uma coisa é certa: em termos da narrativa do Sul Global, a história recordará que El Comandante, sim, deixou o prédio. Mas, depois dele, o prédio nunca mais foi o mesmo.
[1] A expressão
tradicional, já idiomática, é Elvis has just left the building [Elvis
deixou o prédio], expressão que se usava, ao final dos concertos de Elvis
Presley, para que a multidão se dispersasse. Frank Zappa usou a expressão como
título da trilha de abertura do álbum “Broadway the Hard Way” (ouve-se em http://www.youtube.com/watch?v=mvNV5IxxB4A)
[NTs].
[2] Orig. All
shook up, rock and roll que Elvis Presley gravou em 1957, que se ouve
em http://letras.mus.br/elvis-presley/31545/
(mais sobre a canção em http://en.wikipedia.org/wiki/All_Shook_Up
) [NTs].
da Vila Vudu
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