Sugerido por Almeida
Do IHU Unisinos
Crítico feroz do neoliberalismo, de seus
ícones e verdades, de suas políticas de “crescimento” que destroem a
natureza, do consumo que empobrece as vidas, do Estado que as administra
(não sem constrangimentos) e da esquerda (conservadora e
antropocêntrica). “A felicidade, diz, tem muitos outros caminhos”.
Enquanto esperamos que a Tinta Limón Ediciones termine a edição (mais ou menos alterada) do livro de entrevistas com Eduardo Viveiros de Castro, o sítio Lobo Suelto! convida à leitura da última – muito transcendental – conversa com o antropólogo brasileiro.
A entrevista é de Julia Magalhães, publicada por Lobo Suelto!, 04-12-2013. A tradução é doCepat.
Eis a entrevista.
Qual é a sua percepção acerca da participação política da sociedade brasileira?
Prefiro começar com uma
“des-generalização”: vejo a sociedade brasileira profundamente dividida
em relação à visão sobre o país e seu futuro. A ideia de que existe “um”
Brasil – no sentido de que as ideias de “unidade” e “brasilidade” não
são triviais – parece uma ilusão politicamente conveniente (para os
setores dominantes), mas antropologicamente equivocada. Há, pelo menos,
dois ou muito mais “Brasis”.
O conceito geopolítico de estado-nação
unificado não é descritivo, mas normativo. Há rachaduras profundas na
sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação
conservadora enorme, que não necessariamente compreendem uma classe
específica, apesar de que as chamadas “classes médias”, ascendentes ou
descendentes, estão bem representadas aqui. Grande parte da chamada
“sociedade brasileira” – temo que seja a maioria – se sentiria muito
satisfeita com um regime autoritário, especialmente se conduzido
midiaticamente por uma autoridade paternal de personalidade forte. Mas,
esta é uma das coisas que a minoria liberal que existe no país – e,
inclusive, é uma certa minoria “progressista” – prefere manter-se
envolta em um silêncio constrangedor. Repete-se o tempo todo, e para
qualquer propósito, que o povo brasileiro é democrático, “cordial” e amante da liberdade e da fraternidade, o que é uma ilusão muito perigosa.
É assim que vejo a “participação
política do povo brasileiro”: como a de um povo fragmentado, dividido,
polarizado. Uma polarização que não necessariamente condiz com as
divisões políticas (partidos oficiais etc.). O Brasil segue como uma
sociedade visceralmente escravocrata, obstinadamente racista e
moralmente covarde. Enquanto não nos darmos conta deste inconsciente,
não iremos “em frente”.
Em outras ocasiões, fui claro:
insurreições esporádicas e uma certa indiferença pragmática em relação
aos poderes constituídos, é o que se evidência entre os mais pobres – ou
os mais alheios ao drama montado pelos setores de cima, na escala
social – que inspiram modestas utopias e moderado otimismo por parte
daqueles que a história situou na confortável posição de “pensar o
Brasil”. Nós, em suma.
O que é necessário para mudar isto?
Falar, resistir, insistir, olhar além do
imediato. E, obviamente, educar. Mas, não “educar o povo” (como se a
elite fosse muito educada e devesse – ou pudesse – conduzir o povo até
um nível intelectual superior), mas criar as condições para que as
pessoas se eduquem e acabem educando a elite – e, quem sabe, inclusive,
se livrem dela.
O panorama da educação do Brasil é,
hoje, o de um deserto. Um deserto! E não vejo nenhuma iniciativa
consistente para tentar cultivar neste deserto. Pelo contrário, tenho
pesadelos de conspirações, em que sonho que os projetos de poder não se
interessam realmente em modificar o panorama da educação do Brasil:
domesticar a força de trabalho – se é isto que está se tentando (ou
planejando) – não é, de nenhuma maneira, o mesmo que educar.
Isto é apenas um pesadelo, obviamente:
não é assim, não pode ser assim... Espero que não seja assim. Mas o fato
é que não se vê uma iniciativa para mudar a situação. Considerando a
espetacular abertura de dezenas de universidades sem a mínima
infraestrutura física (para não falar de boas bibliotecas, um luxo quase
impensável no Brasil), enquanto a escola secundária segue muito
deficitária, com professores que ganham uma miséria, com as greves dos
professores universitários reprimidas, como se fossem ladrões. A “falta”
de educação – que é uma forma de instrução muito particular e perversa,
imposta de cima para baixo – é talvez o principal fator responsável
pelo conservadorismo reacionário de grande parte da sociedade
brasileira. Por fim, é urgente uma reforma radical da educação
brasileira.
Em “A floresta e a escola”, Oswald de
Andrade sonhava. Infelizmente, parece que já deixamos de ter uma e ainda
não temos a outra. Pois sem escola, já não cresce a floresta.
Por onde se começa a reforma da educação?
Começa-se de baixo, é claro, a partir da
escola primária. A educação pública deveria ter uma política unificada,
orientada a partir de uma – com perdão da expressão – “revolução
cultural”. Ela não será alcançada através da redistribuição da renda (ou
melhor, com o aumento da quantidade de migalhas que caem da mesa dos
ricos) apenas para comprar um televisor e para assistir ao BBB, e ver a
mesma merda. Não é assim que se redistribui a cultura, a educação, a
ciência e a sabedoria. Deve-se oferecer ao povo as condições de fazer
cultura ao invés de consumir aquela produzida “para” eles.
Está havendo uma melhora nos níveis de
vida dos mais pobres, e talvez também nos da velha classe média. Uma
melhora que vai durar todo o tempo em que a China continuar comprando do
Brasil ao invés de comprar da África. Mas, apesar da melhora no chamado
“nível de vida”, não vejo nenhuma melhora real na qualidade de vida, na
vida cultural ou espiritual, se me permite usar essa palavra arcaica.
Pelo contrário. Será que é necessário destruir as forças vivas, naturais
e culturais das pessoas, do povo brasileiro de instrução, para
construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Neste cenário, atualmente, quais são os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira?
Vejo a “sociedade brasileira”
magnetizada – ao menos em termos de sua autorrepresentação normativa,
por parte dos meios de comunicação – por um patriotismo oco, uma espécie
de besta orgulhosa, deslumbrados pela certeza de que, de uma vez por
todas, o mundo se inclinou frente ao Brasil. Copa do Mundo, Jogos Olímpicos...
Não vejo mobilização acerca de temas urgentíssimos, como poderiam ser o
da educação e da redefinição da nossa relação com a terra, quer dizer,
com o que há debaixo do território. Natureza e cultura, enfim, que agora
se encontram, não apenas, mediadas, midiatizadas, pelo mercado, mas
mediocrizadas por ele. O Estado se uniu ao Mercado contra a natureza e a
cultura.
E estas questões não mobilizam?
Existe certa preocupação da opinião
pública por questões ambientais, um pouco mais do que em relação às
questões da educação, o que não deixa de ser algo para se lamentar, pois
as duas vão juntas. Contudo, tudo me parece “too little, too late”:
muito pouco e muito tarde. Está se demorando tempo demais para difundir
a consciência ambiental. Uma conscientização que o planeta requer, com
absoluta urgência, de todos nós. E esta inércia se traduz na escassa
pressão sobre os governos, corporações e empresas que apenas investem
nesse conto chinês do “capitalismo verde”.
Em particular, evidencia-se muito pouca pressão sobre as grandes
empresas, sempre distraídas e incompetentes quando se trata do problema
da mudança climática.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte,
uma monstruosidade provada e comprovada, mas que conta com o apoio
desinformado (é o que se deduz) de uma parte significativa da população
do sul e do sudeste, para onde irá a maior parte da energia que não for
vendida – a um preço extremamente barato – para multinacionais de
alumínio fazerem latas de saquê – no baixo Amazonas – para o mercado
asiático.
Necessitamos de um discurso político
mais agressivo em relação às questões ambientais. É necessário,
sobretudo, falar com as pessoas, chamar a atenção a respeito de que o
saneamento básico é um problema ambiental, de que a dengue é um problema
ambiental. Não se pode separar a dengue do desmatamento e do
saneamento. Temos que convencer aos mais pobres de que melhorar as
condições ambientais é assegurar as condições de existência das pessoas.
No entanto, a esquerda tradicional, como
está sendo demonstrado, apresenta-se completamente inútil para
articular um discurso sobre os temas ambientais. Quando suas cabeças
mais pensantes falam, parece haver a sensação de estar “indo para trás”,
tratando desastradamente de capturar e de reduzir um tema novo ao já
conhecido, um problema muito real que não está em seu DNA ideológico e
filosófico. Mesmo quando a esquerda não se alinha com o insustentável
projeto “ecocida” do capitalismo, revela sua origem comum a este, com as
névoas e obscuridades da metafísica antropocêntrica do cristianismo.
Enquanto continuarmos sustentando que
melhorar a vida das pessoas é lhes dar mais dinheiro para comprar uma
televisão, ao invés de melhorar o saneamento, abastecimento de água,
saúde e educação primária, nada mudará. Escuta-se o governo dizer que a
solução é consumir mais, mas não se percebe a menor ênfase para abordar
estes aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições do
presente século.
Isto não significa, obviamente, que os
mais favorecidos pensem melhor e que possam ver além dos mais pobres.
Não há nada mais estúpido que estas Land Rovers que vemos em São
Paulo ou noRio de Janeiro, andando com adesivos do Greenpeace, de
slogans ecológicos, coladas no para-brisa. As pessoas vão às ruas nestes
4x4 e bebem um diesel venenoso... Gente que pensa que o contato com a
natureza é fazer um Rally no Pantanal...
É uma questão difícil: falta educação
básica, falta o compromisso dos meios de comunicação, falta
agressividade política no tratamento da questão do meio ambiente.
E sempre que se pensa que existe um
problema ambiental, algo que está longe de ser o caso dos governantes
atuais, estes mostram, ao contrário, e, por exemplo, a preocupação em
formar jovens que possam manobrar com segurança e, ao mesmo tempo,
mantém firme sua aposta no transporte individual, em carros, em uma
cidade como São Paulo,
em que já não cabe nem uma agulha. Um governo que não se cansa de se
orgulhar pela quantidade de carros produzidos por ano. É absurdo
utilizar os números da produção de veículos como um indicador de
prosperidade econômica. Essa é uma proposta podre, uma visão estreita e
uma proposta muito empobrecedora para o país.
Você está dizendo que os apelos
ao consumo vêm do próprio governo, mas também há um apelo muito forte
procedente do mercado. Como avalia isto?
O Brasil é um país capitalista
periférico. O capitalismo industrial-financeiro é visto por quase todo o
mundo como uma evidência palpável, o modo inevitável em que se vive no
mundo atual. Diferentemente de alguns companheiros de caminhada, eu
entendo que o capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos. E
que nossa atual forma de vida econômica é realmente evitável. Então,
simplesmente, nossa forma de vida biológica (quer dizer, a espécie
humana) não será mais necessária e a Terra irá favorecer outras
alternativas.
As ideias de crescimento negativo, ou de
objeção ao crescimento, ou a ética da suficiência são incompatíveis com
a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A
ideia de manter certo nível de equilíbrio em relação ao intercâmbio de
energia com a natureza não se ajusta na matriz econômica do capitalismo.
Este impasse, gostemos ou não, será
“resolvido” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período
muito mais curto do que pensávamos. As pessoas fingem não saber o que
está se passando, preferem não pensar nisso, mas o fato é que temos que
nos preparar para o pior. E o Brasil, pelo contrário, sempre se prepara
para o melhor. Este otimismo nacional frente a uma situação planetária é
extremamente preocupante, assim como perigoso... E a aposta de que
vamos bem dentro do capitalismo é um tanto ingênua, se não
desesperada...
O Brasil segue como um país periférico,
uma plantação “high tech” que abastece com matérias-primas o capitalismo
central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja,
açúcar, carne bovina, para os países industrializados: são estes quem
têm a última palavra, os que controlam o mercado. Estamos bem neste
momento, mas de modo nenhum em condições de controlar a economia
mundial. Se a coisa muda um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil
simplesmente pode perder esse lugar no qual se encontra hoje. Para não
mencionar, claro, o fato de que estamos vivendo uma crise econômica
mundial que se tornou explosiva em 2008, que está longe de terminar e
que ninguém sabe aonde irá parar. O Brasil, neste momento de crise, é
uma espécie de contracorrente do tsunami, mas quando a onda quebrar vai
molhar muita gente. Deve-se falar sobre estas coisas.
E como você avalia a
macropolítica em relação a esta realidade, as políticas macroeconômicas,
com as realidades rurais do Brasil, os indígenas ribeirinhos?
O projeto de Brasil, que tem a atual coalizão do governo sob o mando do Partido dos Trabalhadores (PT), considera os ribeirinhos, os indígenas, os campesinos, os quilombolas como
pessoas com atraso, um atraso sociocultural, e que devem ser conduzida
para outro estado. Esta é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é
visceralmente paulista, o projeto é uma “paulistização” do Brasil.
Transformar o interior do país em um país de fantasia: muita festa de
peão de vaqueiro, caminhonetes 4x4, muita música country, botas,
chapéus, rodeios, touros, eucaliptos, gaúchos. E do outro lado, cidades
gigantescas e impossíveis como São Paulo.
O PT vê a Amazônia brasileira como um
lugar para civilizar, para domar, para obter benefícios econômicos, para
capitalizar. Em uma lamentável continuidade entre a geopolítica da
ditadura e a do governo atual, este é o velho “bandeirantismo” que hoje
faz parte do projeto nacional. Mudaram as condições políticas formais,
mas a imagem do que é ou deveria ser a civilização brasileira, daquilo
que é uma vida digna de ser vivida, do que é uma sociedade que está em
sintonia consigo mesmo, é muito, muito similar.
Estamos vendo hoje uma ironia muito
dialética: o governo, liderado por uma pessoa perseguida e torturada
pela ditadura, realizando um projeto de sociedade que foi adotado e
implementado por esta mesma ditadura: a destruição da Amazônia, a
mecanização, a “transgenização” e a “agrotoxicação” da agricultura,
migração induzida pelas cidades.
E por detrás de tudo isso, certa ideia
de Brasil que se vê, no início do século XXI, como se devesse ser, ou
como se fosse, o que os Estados Unidos eram no século XX. A imagem que o
Brasil tem de si mesmo é, em vários aspectos, aquela projetada
pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywoodnos anos 50: muitos carros,
muitas autopistas, muitas geladeiras, muitas televisões, todo mundo
feliz. Quem pagou por tudo isso? Entre outros, nós. Quem irá nos pagar
agora? A África, outra vez?Haiti? Bolívia? Para não falar da massa de
infelicidade bruta gerada por esta forma de vida (e de quem se enriquece
com isto).
Isto é o que vejo com tristeza: cinco
séculos de maldade continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como
os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios.
Nosso governo “de esquerda” governa com a permissão da oligarquia e
necessita destes capangas para governar. Pode-se fazer várias coisas,
desde que a melhor parte fique com ela. Toda vez que o governo ensaia
uma medida que a ameaça, o Congresso – que sabemos como é eleito –, a
imprensa bombardeia, o PMDB sabota.
Há uma série de becos para os quais eu
não vejo saída ou que não têm saída no jogo da política tradicional, com
suas regras. Vejo um caminho possível pelo lado do movimento social –
que hoje está desmobilizado. Mas, se não for pelo lado do movimento
social, seguiremos vivendo neste paraíso subjetivo de que um dia tudo
vai ficar bem. O Brasil é um país dominado politicamente pelos grandes
proprietários de terra e grandes empreiteiros que jamais sofreram uma
reforma agrária e ainda dizem que atualmente não é mais necessário
fazê-la.
Acredita que as coisas começarão a mudar quando chegarmos a um limite?
É provável que a crise econômica mundial
afete ao Brasil em algum momento próximo. Contudo, o que vai ocorrer,
com certeza, é que o mundo vai passar por uma transição ecológica,
climática e demográfica muito intensa durante os próximos 50 anos, com
epidemias, fome, secas, catástrofes, guerras, invasões. Estamos vendo
como as condições climáticas mudaram muito mais rápido do que
pensávamos. E há grandes possibilidades de desastres, de perdas de
colheitas, de crises alimentares. Neste meio tempo, hoje em dia, o
Brasil até se beneficia, mas um dia a fatura irá chegar.
Climatologistas, geofísicos, biólogos e ecologistas são profundamente
pessimistas sobre o ritmo, as causas e consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve a vida atual da espécie. Por que deveríamos ser otimistas?
Acredito que se deve insistir que é
possível ser feliz sem ficar hipnotizado por este frenesi de consumo que
os meios de comunicação impõem. Não sou contrário ao crescimento
econômico no Brasil, não sou tão estúpido para pensar que tudo se
resolveria mediante a distribuição do dinheiro de Eike Batista entre
os agricultores do nordeste semiárido ou cortando os subsídios à classe
política-mafiosa que governa o país. Não que não seja uma boa ideia.
Sou contrário, isto sim, ao crescimento da “economia” do mundo, e sou a
favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. E também sou,
obviamente, a favor de que todos possam comprar uma geladeira e, por que
não, uma televisão. Sou a favor de uma maior utilização das tecnologias
solar e eólica. E estaria encantado em deixar de dirigir o carro, se
pudéssemos trocar este meio de transporte absurdo por soluções mais
inteligentes.
E como vê os jovens neste contexto?
É muito difícil falar de uma geração a
qual não se pertence. Nos anos 1960, tínhamos ideias confusas, mas
ideais claros: pensávamos que poderíamos mudar o mundo e imaginávamos
que tipo de mundo queríamos. Acredito que, em geral, os horizontes
utópicos têm retrocedido enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou a sua atenção?
No Brasil, a aceleração difusa do que
poderíamos chamar de uma cultura “agro-sulista”, tanto da direita quanto
da esquerda, pelo interior do país. Vejo isto como a consumação do
projeto de branqueamento da nacionalidade, deste modo muito peculiar da
elite governante no poder acertar as contas com seu próprio passado
(passado?) escravista.
Outra mudança importante é a
consolidação de uma cultura popular vinculada ao movimento evangélico
popular. O evangelismo da Igreja Universal do Reino de Deus associa, por
certo, a religião ao consumo.
O como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Essa é uma das poucas coisas a respeito
das quais sou muito otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento
do controle total dos meios de comunicação de cinco ou seis
conglomerados midiáticos. Esse enfraquecimento está muito vinculado à
proliferação das redes sociais,
que são grande novidade na sociedade brasileira e que estão
contribuindo para que circule um tipo de informação que não tinha lugar
na imprensa oficial. E estão habilitando formas, antes impossíveis, de
mobilização. Há movimentos inteiramente produzidos pelas redes sociais,
como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”,
os diversos movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas.
As redes são nossa saída de emergência
frente à aliança mortal entre o governo e os meios de comunicação. São
um fator de desestabilização – no melhor sentido da palavra – do poder
dominante. Se puder ocorrer alguma mudança importante na cena política,
acredito que será através da mobilização pelas redes sociais.
E por isso se intensificam as tentativas de controlar estas
redes, em todo o mundo, por parte do poder constituído. Contudo,
controlar o acesso é um instrumento vergonhoso, como o caso do“projeto” da banda larga brasileira,
que parte do reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade.
Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular,
equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha
acesso pleno à circulação das produções culturais.
Parece, às vezes, que haveria uma
conspiração para evitar que os brasileiros tenham uma boa educação e um
acesso à Internet de qualidade. Essas duas coisas andam de mãos dadas e
têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social que, diga-se
de passagem, é necessário vigiar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no Ministério do Meio Ambiente, na época de Marina Silva, criticava-me
dizendo que meu discurso, feito à distância do Estado, era romântico e
absurdo, que tínhamos que tomar o poder. Eu respondia que, se tomássemos
o poder, tínhamos que, sobretudo, saber como mantê-lo depois, pois aí é
que a coisa se complica. Não tenho um desenho, um projeto político para
o Brasil, eu não pretendo saber o que é melhor para o povo brasileiro
em geral, e em seu conjunto. Só posso expressar minhas preocupações e
indignações, apenas aí é que me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve
insistir na ideia de que o Brasil tem – ou a esta altura tinha – as
condições geográficas, ecológicas, culturais para desenvolver um novo
estilo de civilização, que não seja uma cópia empobrecida do modelo da
América do Norte e da Europa. Poderíamos começar a experimentar,
timidamente, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos
desenvolvidos na Europa moderna.
Todavia, imagino que se algum país do
mundo irá fazer isso, esse país é a China. É certo que os chineses têm
5.000 anos de história cultural praticamente contínua e o que nós temos
para oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste
história de etnocídio, deliberado ou não. Ainda assim, é imperdoável a
falta de inventividade da sociedade brasileira – ao menos de sua elite
política e intelectual – que já perdeu várias ocasiões de gerar soluções
socioculturais – tal como o povo brasileiro historicamente ofereceu – e
articular, assim, uma civilização brasileira minimamente diferente da
que propõem os comerciais de televisão.
Temos que mudar completamente e,
primeiramente, a relação secularmente depredadora da sociedade nacional
com a natureza, com a base físico-biológica de sua própria
nacionalidade. Já é hora de começar uma nova relação com o consumo,
menos ansioso e mais realista frente à situação de crise atual. A
felicidade tem muitos outros caminhos.
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