Sugerido por Lair Amaro
Do blog do Thomas Conti
O título não poderia deixar de ser uma
provocação, mas bem intencionada – peço perdão aos colegas historiadores
pelo anacronismo.
Em 1 de Fevereiro de 1960, quatro jovens
universitários negros, vestidos com suas melhores roupas, entraram na
lanchonete Woolworth’s em Greensboro, no Estado da Carolina do Norte,
EUA. Os estudantes compraram alguns itens da mercearia sem nenhum
problema, e em seguida pediram um lanche no balcão de serviços da
lanchonete.
O evento, aparentemente banal, é um
marco histórico da luta por direitos civis nos Estados Unidos. Tudo
porque os estudantes, contrariando a política da loja, fizeram
seus pedidos na área do balcão que era reservada para as pessoas
brancas, quando havia indicações explícitas de que a área para as
pessoas “de cor” era mais ao canto da loja.
Os funcionários da loja se recusaram a
atender ao pedido dos jovens, e o gerente pediu que se retirassem do
estabelecimento. Os quatro jovens ficaram sentados até o horário que a
loja fecharia, esperando pacientemente serem atendidos – o que não
aconteceu.
No momento da foto, uma mulher branca
idosa ia em direção aos quatro. Um deles, Franklin McCain, relembra o
que sentiu no momento: “Eu estava pensando comigo mesmo, ela deve ter
uma faca de amolar e tesouras naquela bolsa dela e elas estão prestes a
me atravessar direto. Quero dizer, nós estávamos invadindo o espaço
dela, um espaço que nos era dito que nós não podíamos habitar.” A
citação vem de uma entrevista dada por McCain em 2010, no aniversário de
50 anos do protesto de Greensboro.
No dia seguinte ao protesto, mais de
vinte afro-americanos reuniram-se na loja, onde novamente tiveram seu
pedido recusado e sofreram discriminação por parte dos clientes brancos
do recinto. No terceiro dia, por volta de 60 pessoas juntaram-se ao
protesto, e a loja protegeu-se alegando estar “de acordo com a lei
estadual”, que era favorável à segregação.
No quarto dia, mais de 300 pessoas, que
aprenderam a dinâmica do protesto, juntaram-se e começaram a ocupar mais
lojas da região. Os protestos, que ficariam conhecidos como “sit-ins”,
espalharam-se para outras cidades e Estados, e foram um ponto de
inflexão crucial na luta por direitos civis nos Estados Unidos, atraindo
a atenção da mídia e da Casa Branca, com o então presidente Eisenhower
declarando ser “profundamente simpático aos esforços de qualquer grupo a
gozarem dos direitos de igualdade que lhes é garantido pela
Constituição”.
Os protestos continuaram por meses,
ainda que não raro sofrendo reações violentas por parte de lojistas ou
clientes. Mas, em julho daquele mesmo ano, a rede de lojas onde os
jovens protestaram aboliram a segregação por cor dentro do
estabelecimento, e outros recintos do sul dos Estados Unidos também
começaram a desfazer as divisões raciais. Hoje, os quatro bancos onde os
jovens se sentaram fazem parte do museu do Instituto Smithsonian da
História Americana, e a sessão específica do museu foi construída onde
era a loja onde os jovens protestaram pela primeira vez.
O lugar que os quatro jovens se sentaram preservado em museu da história americana.
Rolezinhos, Brasil, 2012-2013
Estou em vias de terminar um artigo
apenas para tratar da questão atual dos “rolezinhos” em nosso país, mas
gostaria de já deixar aqui algumas provocações.
Por que as pessoas dos shoppings tem medo destes jovens?
Quando relembramos o acontecimento dos
Estados Unidos, nos é difícil entender como os funcionários da loja e
seus clientes puderam agir da forma que agiam, ou como a lei do sul dos
Estados Unidos podia permitir tamanha discriminação. Parecem coisas
muito distantes, de um passado longínquo. Mas é na verdade muito
recente, e fato é que temos poucos motivos para crer que aquelas pessoas
eram biologicamente diferentes de nós em qualquer sentido. Elas
reagiram com uma mistura de sentimentos que, colocadas lado a lado com o
impacto que teve o “rolezinho”, é muito similar.
Primeiro, elas tem medo. Penso que os
dois maiores medos do ser humano são o desconhecido, e outros seres
humanos. Junte os dois e multiplique o número de componentes e o
potencial para o medo irracional é quase irreversível. Assim como os
brancos do sul dos EUA, acostumados com o distanciamento e o
preconceito, não conheciam nada da vida dos negros, quem eles eram, qual
sua cultura, etc, parte significativa da sociedade brasileira hoje não
tem a menor ideia de como é a vida e os costumes de seus novos jovens
adolescentes, negros, pobres, ou que seja. Conseguem apenas evidenciar
que de fato são “gente diferenciada“.
Em outras palavras, ignorância, preconceito e má vontade, atreladas à
racionalidade estatística e contábil que organiza os shoppings centers
conforme o público-alvo e que já de partida segrega seus frequentadores
por classe. Basta ver como rolezinhos tradicionais da alta classe nunca geraram polêmica ou balas de borracha.
Outra provocação é como as regras dos
espaços privados e a lei pública são colocadas em tensão nesses
acontecimentos. A lei federal dos Estados Unidos colocava todos como
iguais e em tese não permitia a discriminação. Forças da tradição,
aliadas ao elitismo muito bem apadrinhado financeiramente, eram contudo
fortes suficientes para que em diversos Estados o dia a dia pudesse ser
organizado numa lógica que era diretamente contrária à lei. Após os
protestos, evidente que houve a vitória da lei federal sobre as
inclinações pessoais dos lojistas, mas só depois de anos de luta, muito
sangue derramado e desconfortos por toda parte. Aqui no Brasil as coisas
não chegaram ao ponto de haver placas indicando onde brancos e negros
devem ir, ou pobres e ricos devem ir, mas é completamente lícito fazer
estabelecimentos para as classes altas em regiões onde o transporte
público é péssimo ou inexistente, ou adotar uma política que permita
apenas lojas de alto padrão e altos preços no estabelecimento de modo a
não convidar “populares”, ou cobrar taxas abusivas de estacionamento
onde não se quer os pobres, dentre outras táticas que, alega-se, são
apenas métodos matemáticos e estatísticos de aumentar as vendas. Talvez
isso seja em parte verdade, mas definitivamente não são “só” isso.
Para concluir, com este artigo não era
meu intuito realmente classificar uma luta decidida por direitos civis
dos EUA como um “rolezinho”, nem dizer que o rolezinho é uma luta
consciente por direitos civis no Brasil. Entretanto, os jovens dos EUA
não tinham a menor ideia que estavam marcando a história do país – na
verdade deviam estar pensando mais no quanto estavam arriscando a vida.
Nesse momento tampouco sabemos o que significa esses rolezinhos. Enfim,
com ressalvas, acredito que existem paralelos e lições importantes que
devemos nos dispor a refletir sobre, uma vez que ainda vivemos, sim, num
dos países mais desiguais do mundo, herança que, ao menos do meu ponto
de vista, não lutamos um centésimo do que seria necessário para de fato
combatê-la.
E ah, já ia esquecendo. Sobre a mulher
que se aproximara do jovem manifestante McCain na lanchonete dos EUA,
ela não o atacou. Na verdade, surpreendentemente, ela sorriu para ele e
disse: “Garotos, estou tão orgulhosa de vocês. Apenas lamento não terem
feito isso há 10 anos atrás”. Segundo o próprio, as palavras dela foram
uma fonte de inspiração para ele durante toda a sua vida.
Fonte: Luis Nassif on line.
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