Do blog Náufrago da Utopia.
No artigo O debate que o Brasil não fez, o veterano analista político Clóvis Rossi apresenta interessantes observações sobre a atitude de argentinos e brasileiros face aos genocídios e atrocidades dos anos de chumbo.
Vale a pena reproduzirmos o essencial do sua coluna que, neste dia de Natal, fugiu à mesmice do tema obrigatório:
"...não me sentiria confortável se me omitisse na polêmica, algo abafada, mas polêmica, em torno da Lei de Anistia, em especial depois da condenação à prisão perpétua do ditador argentino Jorge Rafael Videla.
Antes, já houvera o vexame de uma instituição multilateral, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ter discutido (e decidido) a respeito de uma legislação que a sociedade brasileira, por meio de suas organizações representativas, deveria ter debatido há muito mais tempo.
Deixo para o final entrar no mérito da decisão da Corte de declarar nula a Lei de Anistia.
Até lá, meu ponto é a necessidade de um debate interno em torno do assunto.
A Lei de Anistia foi emitida para, na essência, proteger um lado, o dos vencedores. Eram, a rigor, os únicos que não haviam sido punidos.
Os derrotados, ou seja, os opositores ao regime militar, tenham ou não adotado a luta armada, sofreram punições de acordo com a legislação convencional (prisão, por exemplo), punições por uma legislação de exceção (o banimento, por exemplo) e até punições à margem de qualquer lei, convencional ou de exceção, como mortes em supostos enfrentamentos, suicídios que foram assassinatos (caso Vladimir Herzog, por exemplo) e torturas.
Aqui entra o julgamento do general Videla para entroncar com a falta de debate em torno da anistia no Brasil. Na Argentina, houve uma punição inicial, logo após a redemocratização de 1983, revertida depois como consequência de levantes militares que perseguiam a impunidade para os perpetradores da matança em massa ocorrida na ditadura de 1976-83.
Entre parêntesis, cabe lembrar que a condenação de Videla serve de compensação para os familiares de brasileiros vítimas da Operação Condor, o mecanismo multinacional de repressão criado no Cone Sul nos anos 70. A iniciativa surgiu em uma reunião de Exércitos americanos realizada em 1975 no Hotel Carrasco de Montevidéu. Videla era então comandante do Exército argentino e representou seu país nessa reunião.
Fecha parêntesis. A Argentina precisou de 20 anos para retomar a discussão da anistia, mas o fez em todos os âmbitos que a democracia inventou. As leis que concediam a anistia para os militares foram revogadas primeiro pelo Congresso, em 2003, e depois pela Corte Suprema, no ano seguinte.
Como a iniciativa havia sido do Executivo, tem-se pois que a revogação tramitou por todos os três Poderes clássicos. Alguém aí é capaz de conceber algo mais democrático?
E no Brasil? Nada, salvo esparsas iniciativas do atual governo. Termino com o mérito, como prometido: convém revogar a Lei de Anistia? Agora é tarde. Tivesse havido o debate nos governos FHC e/ou Lula, seria uma coisa. No governo Dilma Rousseff, vítima de punição extralegal, na forma de tortura, seria considerada revanchismo, o que abriria uma crise que só aproveitaria a pescadores de águas turvas".
Premissas corretas, conclusão errada.
Convém, sim, revogarmos a Lei de Anistia, para legarmos aos pósteros um enfoque civilizado dessas questões:
o de que os cidadãos têm o direito de resistir às tiranias, inclusive pegando em armas contra elas;
o de que os esbirros dessas tiranias não podem ser igualados aos resistentes por meio de anistias recíprocas que, promulgadas em pleno regime de exceção, equivalem apenas a habeas corpus preventivos para os carrascos, artifício inaceitável por eles adotado para evitarem responder futuramente por seus crimes contra a humanidade.
É crassa tolice e vil propaganda enganosa a alegação das viúvas da ditadura, de que, revogada a anistia de 1979, os resistentes também teriam de responder por crimes.
Os atos coerentes com o objetivo geral da luta contra a ditadura militar não têm caracterização criminal, como não tiveram nos países europeus que resistiram ao nazifascismo nas décadas de 1930 e 1940, p. ex.
A Resistência Francesa matou muito mais e foi acentuadamente mais violenta do que a brasileira, praticando atos como o de explodir pontes, trens e quartéis, justiçar traidores, etc., nos quais, obviamente, vários civis acabaram pegando as sobras e inocentes foram sacrificados por engano (nem sempre o aparente colaboracionista o é realmente, mas, nas circunstâncias dramáticas de lutas desiguais, cometem-se compreensíveis erros de julgamento).
Enfim, tudo isso é tido como ou como necessário, ou como inevitável, numa luta contra a tirania.
É claro que, se um resistente tiver aproveitado a situação para beneficiar-se pessoalmente ou acertar contas com desafetos (apenas como hipótese, não tenho conhecimento de que algo assim haja ocorrido), isto haveria mesmo sido um crime comum.
Mas não as expropriações de agências bancárias para sustentar a resistência, roubos de armas e de dinamite, sequestros de diplomatas para trocá-los por presos políticos, tomada de aviões, ocupação de emissoras para colocar manifestos no ar, atentados contra expoentes do regime ditatorial, e que tais: estas ações, com ou sem a Lei de Anistia, só mereceriam medalhas, jamais processos.
Então, na verdade, a revogação da Lei de Anistia ameaçaria apenas os criminosos envolvidos com o terrorismo de estado, não suas vítimas.
E o fato de Dilma Rousseff ter sido uma dessas vítimas não interfere em nada, absolutamente em nada, com a essência da questão. Como presidente da República, ela deve fazer o que é certo, sem medo de bichos papões.
O problema, a meu ver, é outro: a idade avançada dos possíveis réus e a tradicional lerdeza da Justiça brasileira, não só por ineficiência burocrática como por propiciar recursos protelatórios praticamente infinitos a quem pode bancar os melhores advogados.
Então, o que deve ser ponderado é o seguinte:
valeria a pena introduzirmos um rito sumário apenas para tais casos, o que levantaria previsíveis acusações de desigualdade de tratamento?
ou se deixaria que as ações seguissem o andamento normal, com 99.9% de chances de os réus morrerem antes de as sentenças serem executadas?
Como alternativa, haveria a possibilidade de, revogada a anistia de 1979, aprovar-se uma nova, estabelecendo a responsabilidade dos usurpadores do poder e dos que administraram/executaram o terrorismo do estado, mas poupando-os de punição concreta por motivo exclusivamente humanitário: o de serem hoje anciães e não haverem sido processados no momento certo em função da imperdoável omissão do Estado.
Esta última solução teria a vantagem de não ensejar a canalhas a chance de posarem como vítimas, angariando simpatias e solidariedade imerecidas.
Evitaria fornecer pretextos golpistas aos pescadores em águas turvas a que Clóvis Rossi se referiu.
Deixaria os parâmetros corretos para nortearem enfoques futuros da mesma questão (torcendo para que jamais isto venha a ser necessário...). A partir daí, saberíamos exatamente como agir numa saída de ditadura, então não discutiríamos em 2010 o que deveria ter sido feito em 1985.
E fecharia de forma digna essa página vergonhosa de nossa História, afixando nas testas dos torturadores e seus mandantes a etiqueta de criminosos que eventualmente escaparam da punição, mas fizeram jus ao opróbrio eterno.
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