"Governo termina aprovado por 84% da população; no debate público e intelectual, ainda suscita muitos ódios", comenta Vinícius Torres Freire, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 21-12-2010.
Segundo ele, "este país" ainda não entende quão selvagem e violento ainda é, que mesmo um Estado corrupto e ineficaz oferece o "sossega-leão" que mantém certa paz social".
Eis o artigo.
Até nos últimos dias de seu governo, os juízos públicos sobre o desempenho de Lula contêm um teor de raiva, quando não de ódio, que ainda surpreende. É verdade que a fúria do PT e das esquerdas com o governo FHC não é menos contaminada por bílis. Os desastrosos governos de José Sarney (1985-1990) e Fernando Collor (1990-1992) não merecem tanta fúria, talvez porque objeto de desprezo. Até o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) é lembrado com mais complacência.
O país, porém, vive notável calmaria social e política. Lula é elogiado por mais de 80% da população. Em quase nenhum setor da elite empresarial ou financeira há críticas virulentas ao conjunto da obra lulista -petista. Não vem ao caso, aqui, julgar se tal satisfação se deve aos melhores motivos. Chama-se apenas atenção para o fato de o país em geral estar mais pacificado do que sugere o debate público sobre Lula - e sobre a memória restante de FHC.
Note-se que PT e PSDB são primo-irmãos políticos - um primo pobre e um primo rico. Fizeram governos parecidos, nas linhas econômicas gerais, mas não na política. Em muitos aspectos, foram governos complementares, até porque cacoetes ideológicos debilitantes tanto de um partido como de outro os impedem de tratar de certos assuntos - no PT, a racionalização da economia de mercado; no PSDB, a urgente necessidade de atenuar horrores sociais. Claro, tais diferenças se devem também a uma questão de classe.
Ainda assim, espanta a raiva burra de muita crítica que se ouve de parte a parte. Petistas ignoram quase totalmente a influência da economia mundial no destino dos governos FHC (desastrosa) e de Lula (favorável). Tucanos se eximem dos seus maus resultados os atribuindo apenas às crises internacionais que enfrentaram; petistas ignoram a ajuda da bonança internacional.
Uma crítica que parece fácil, líquida e certa é aquela dirigida à "enorme carga tributária", que Lula teria tornado ainda mais escorchante. Mas Lula quase não aumentou impostos; FHC o fez. Lula, porém, não economizou nada do dinheiro extra que seu governo recebeu devido ao crescimento econômico. Nem isso, porém, é o mais importante. A carga de impostos é alta provavelmente porque o país é ainda muito desigual e pobre. Sem impostos para pagar serviços públicos e transferências sociais (metade da carga federal) haveria tumultos e revoltas.
Verdade que parte relevante dos impostos é absorvida por uma elite burocrática e por subsídios para ricos, mas o grosso se destina a suavizar as feridas deste país ainda muito bruto. O dinheiro paga um sistema universal de saúde, ruim mas único entre "países de renda assemelhada", paga aposentadorias e assistência social para pobres.
Parte da elite raivosa, ou seus porta-vozes, abomina o governo Lula pelos piores motivos. Há tantos bons, como sua falta de imaginação ou ignorância do lulismo. Mas o que se vê é uma crítica com gosto de ódio de classe, sem que as classes interessadas se movam politicamente na direção dessas críticas. É curioso. "Este país" ainda não entende quão selvagem e violento ainda é, que mesmo um Estado corrupto e ineficaz oferece o "sossega-leão" que mantém certa paz social. O custo do calmante está no limite, decerto. Mas não parece esse o problema de fato dos odientos ideológicos.
Fonte:IHU
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