Algumas lições de Nuremberg
O Conversa Afiada republica artigo de Mauro Santayana no Jornal do Brasil:
Coisas da Política
A cruzada americana e as lições de Nuremberg
Mauro Santayana
Os filhos de bin Laden – conforme pronunciamento publicado ontem – acusam os Estados Unidos de terem violado os princípios imemoriais de justiça, como os do devido processo legal, ao assassinarem o chefe da família em Abottabad. De forma clara, eles reclamam das Nações Unidas investigação sobre os fatos, e admitem levar o caso à Corte Internacional de Justiça. Um grupo de advogados britânicos já foi contatado.
Eles argumentam que sempre estiveram contra os atos de seu pai e, tal como os condenavam, condenam hoje o assassinato de um homem desarmado, que poderia ter sido preso vivo e submetido, como tantos outros, a um julgamento legal.
A idéia é clara: se o presidente Obama violou os princípios assumidos pela comunidade internacional e pela consciência do homem, tal como outros os violaram, e foram submetidos a julgamento, ele deverá ter o mesmo tratamento. É certo que isso não ocorrerá. Desde que o mundo existe, só são realmente punidos pelos tribunais os eventualmente mais débeis. O grande intelectual católico e resistente francês François de Menthon, procurador da França no Tribunal de Nuremberg, pronunciou duas frases marcantes sobre aquele momento. Em uma delas, ele define o que é o crime contra a humanidade: “crime contre le statut d’être humain, motivé par une ideologie qui est contre l’espirit, visant a rejeter l’humanité dans la barbarie”. A definição terá servido, naquele momento, mas sempre temos dificuldade em definir que ideologia é contra o espírito e visa a reconduzir a humanidade à barbárie. Como cada um de nós tem sua ideologia, é normal que defendamos a nossa e rejeitemos a que se contrapõe. A outra frase de Menthon é mais incisiva como ajuda ao raciocínio. Quando todos sorriam diante da estupidez dos lemas e idéias nazistas, o francês comentou, com lúcido ceticismo: “Nós consideramos ridículos tais slogans, mas, se eles houvessem vencido a guerra, nós os estaríamos repetindo, e, em alguns casos, com entusiasmo”.
É com entusiasmo que muitos repetem os argumentos de Washington, que se resumem a um só: dispondo de força suficiente para impor a democracia made in United States e a sua peculiar exegese dos Human Rights, o governo de Obama agiu corretamente, ao invadir um país estrangeiro, ali matar algumas pessoas desarmadas, seqüestrar um cadáver que devia ser sepultado pelos familiares, e ameaçar, veladamente, países soberanos e outros inimigos, de agir da mesma forma, se assim considerar necessário. É com esse entusiasmo que têm reagido, em sua maioria, os veículos de comunicação do mundo e alguns homens de Estado e dos meios acadêmicos.
Não têm faltado, desde o Iluminismo, os que profetizam nova barbárie para o homem. Essa barbárie se fundaria na aplicação tecnológica das descobertas da ciência e do mito da eficiência e do progresso. Essa visão profética e triste, que teve sua formulação admirável em Vico, quase se realizou sob o nazismo, com sua organização bélica e administrativa próxima da perfeição, de que foram exemplos os campos de concentração. E já que falamos em Nuremberg, o substituto de François de Menthon na parte final do julgamento, Champetier de Ribes, foi preciso em seu pronunciamento final:
“O historiador do futuro, como o cronista de hoje, saberá que a obra de vinte séculos de uma civilização que se acreditava eterna escapou de desabar no retorno de uma nova forma da antiga barbárie, mais selvagem, por ser mais científica”.
Ainda não escapamos da barbárie que nos ameaçam o “pensamento único” e a arrogância de uma nação que se considera senhora da civilização ocidental, com a cumplicidade de seus grandes e pequenos vassalos. Diante disso, só a reação dos homens e mulheres do mundo (no que de humano ainda nos resta) poderá salvar o melhor da nossa experiência histórica.
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