A 15 estações do centro de Buenos Aires, o trem de subúrbio da linha San Martín custa a alcançar 60 quilômetros por hora e vai arranhando os trilhos visivelmente mal conservados até chegar ao município de José C. Paz, um reduto ultrakirchnerista de 263 mil habitantes. É uma viagem que não atrai turistas, só trabalhadores cansados que sequer fecham as portas manuais dos vagões quando terminam de embarcar. Mas o trem revela uma Argentina de dois tempos diferentes. Ele sai da centenária estação do Retiro, de estilo francês, atravessa ruas arborizadas e extensos gramados onde garotas adolescentes jogam hóquei sobre patins. Passa por distritos como W. Morris e Hurlingham, que entregam o passado de colônia econômica dos ingleses.
A reportagem é de Daniel Rittner e publicada pelo jornal Valor, 30-05-2011.
A paisagem é europeizada, com casinhas geminadas de dois andares na metade inicial do percurso. Aos poucos, o cenário ganha elementos mais latino-americanos, como uma favela em formação bem ao lado da ferrovia. Na chegada a José C. Paz, o visual é conhecido por qualquer habitante da periferia de uma metrópole situada abaixo da linha do Equador: lixo atirado nas calçadas, tênis pendurados na fiação elétrica, viralatas perambulando, ruas de terra, lojas de eletrodomésticos com alto falantes na porta e uma permanente sensação de insegurança.
Ali, a pouco mais de uma hora de onde turistas brasileiros caminham nas ruas da Recoleta brincando de passear pela Europa, a presidente Cristina Kirchner inaugurou há duas semanas o primeiro de uma série de mercados populares para a classe baixa, os "sacolões" da Cristina.
A ideia do governo é abrir os chamados "mercados concentradores" nos subúrbios das grandes cidades, levando produtores e cooperativas de alimentos a vender diretamente para a população, sem a "intermediação" de distribuidores e varejistas. O ministro da Economia, Amado Boudou, sugeriu recentemente à população "caminhar para encontrar bons preços" e assegurou que a presidente do Banco Central comprava abacate no mercadão central de Buenos Aires para poupar seus pesos.
A inflação continuou subindo. Então, se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé. Nas próximas semanas, o segundo mercado concentrador será aberto em Resistencia, capital da Província de Chaco, uma das mais pobres do país.
Todos os produtos são vendidos a preços tabelados pelo governo. As comparações com os "mercales", supermercados bolivarianos criados por Hugo Chávez na Venezuela, são inevitáveis.
Mas, com uma inflação dos alimentos acima de 40% ao ano, os clientes argentinos não estão nem aí para estudos de política comparada quando têm a oportunidade de comprar um quilo de batatas pelo equivalente a R$ 0,32, merzula a R$ 5,60 o quilo ou um litro de leite a R$ 0,80.
"Bem ou mal, isso mostra que estão preocupados e fazendo alguma coisa pela gente", afirma José Gatica, 28 anos, que saía do Mercado Concentrador ao lado da mulher e três filhos pequenos, em um dia de semana à tarde, abastecido com cinco quilos de batata, dois de pimentão e outros dois de cebola. Gatica é pedreiro e, como quatro em cada dez trabalhadores argentinos, não tem carteira assinada.
Para esse pessoal, os reajustes salariais negociados pelos poderosos sindicatos argentinos não recompõem o poder aquisitivo corroído pela inflação, há cinco anos no patamar de dois dígitos, e a iniciativa do governo de criar "sacolões" populares é bem-vinda. "Comer carne todos os dias virou um hábito só para os ricos", diz a aposentada Juana Ramírez, na fila de um açougue que vende cortes populares a preços combinados com a Secretaria de Comércio Interior, do polêmico Guillermo Moreno.
No ano passado, os preços da carne quase dobraram e o consumo por habitante caiu 14%, para o menor índice desde a crise de 2002. Por isso, Juana não se intimida com a fila de mais de 80 pessoas, que lhe consome uma meia hora. "Aqui eu compro um quilo de bife à milanesa por 21 pesos. Fora daqui, sai por 38."
Diferentemente dos mercales de Chávez, os produtores que vendem barato nos "sacolões" argentinos não saem perdendo - seja porque ganham em escala, seja porque fazem um favor ao governo que lhes pode ajudar em outro negócio.
O empresário Alberto Samid, dono da rede de açougues La Lonja, explicou à mídia local sua decisão de abrir uma unidade no mercado de José C. Paz: "A ideia é acompanhar esse projeto para que as pessoas de menos recursos tenham acesso. Com essa loja não ganho dinheiro, mas não é grave. Como tenho 81 açougues que funcionam muito bem, posso me dar ao luxo de sair no zero a zero ou até de perder um pouco de dinheiro em uma ou duas lojas".
"Não chegamos a ter prejuízo porque faturamos bem com a quantidade", despista Yamil Maggi, gerente do comércio que vende peixes no mercado. Orgulhoso do trabalho, Maggi aponta os retratos que adornam as paredes: eles mostram caminhões da indústria pesqueira Albatroz, de Mar del Plata, em várias cidades do interior. Eram percursos feitos no âmbito do "Pescado para Todos", programa oficial lançado para fomentar o consumo de peixes e mariscos a preços populares. O favorito dos clientes é a merluza. "Equivale a mais de 70% das vendas", diz o gerente. "É produto de qualidade, a empresa é exportadora."
O galpão que abriga o mercado concentrador de José C. Paz pertence à prefeitura e já existia desde 2007. Tem oito mil metros quadrados, uma praça de alimentação com lanchonetes modestas, quase 100 estandes de roupas, CDs e DVDs piratas, algumas lojas de tatuagens e até um sex shop. "Reparamos celulares molhados e celulares chineses", avisa um cartaz no corredor principal, que indica uma loja de bugigangas eletrônicas.
O administrador do mercado, Martín Ledesma, disse que as negociações com a Casa Rosada para sediar o projeto do governo começaram em setembro. A Secretaria de Comércio Interior aluga os espaços. Em um primeiro momento, 20 produtores ou cooperativas aderiram à iniciativa. Em breve, serão instalados quiosques para vender embutidos e até carne de cordeiro. "O objetivo é que os produtores ponham suas mercadorias na mesa dos consumidores, sem intermediários, a preços justos e razoáveis", explica ele.
Se a popularidade da presidente no município aumentar junto com o fluxo de gente, ela ganhou muitos votos. "No sábado anterior à inauguração dos postos de alimentos, passaram por aqui de oito a nove mil pessoas. No sábado seguinte, foram 12 mil. E vamos chegar logo a 20 mil", afirma Ledesma. Os preços não vão subir? Isso vai durar ou termina depois das eleições presidenciais de 23 de outubro?
"A intenção é manter os preços acordados com o governo e dar às pessoas a possibilidade de ter produtos da cesta básica por um valor bem acessível. E, pelo que tenho conversado com os produtores, eles vieram para ficar. Muitos fizeram investimentos em freezers, em câmaras frigoríficas. Isso não é coisa que se tira de um dia para o outro."
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